Para muito além de indicadores, precisamos lutar pelo mesmo
direito: queremos bibliotecas na escola, à mão cheia
Sabemos
que, embora a leitura seja transversal na vida e na educação, ou seja, é
do cotidiano da existência humana, trata-se de uma habilidade só
conquistada por meio de interações desde a primeira infância com o texto escrito: somos primeiro leitores de ouvir, desde a fase intrauterina, e pouco a pouco nos tornamos leitores de ler.
E ler se aprende lendo, inicialmente com leituras mediadas por um adulto educador para que, pouco a pouco, ganhemos autonomia leitora.
Aprender a ler e a gostar de ler é resultado de um longo processo de
interações com livros, leitores e leituras. A biblioteca pública, em
especial a escolar é fundamental[1].
Pois bem. Para aprender a ler e gostar
de ler, aliás, para aprender o que quer que seja, é preciso contar com
insumos, ou seja, recursos que nos dão acesso aos meios necessários à
aprendizagem. No caso da educação e da dimensão aprender a ler e escrever,
é mais do que óbvia a importância de existir em todas as escolas uma
boa biblioteca, assim como o desenvolvimento do pensamento científico
passa pelo texto escrito e pela experimentação, daí a importância de
laboratórios de ciências.
Pois bem também, tudo indica que esta
obviedade tem estado ausente do planejamento das políticas públicas por
aqui. Pesquisa após pesquisa demonstram nossa falência pública e social
na arte de promover educação de qualidade e assegurar os insumos
necessários para garantir direito e resultados positivos.
A minha inquietude para a escrita deste artigo reacendeu com esta notícia sobre o lançamento do Anuário da Educação Básica 2019 ,
no dia 25 de junho, onde você vai encontrar uma longa relação sobre o
que as escolas não têm – entre as quais está a biblioteca e/ou sala de
leitura da escola, ausentes, segundo o Anuário, em 45% das escolas
públicas do País.
Eis que pouco mais de um mês depois, em
31/07, semana passada, um novo levantamento, desta vez realizado pelo
Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – a capital que ostenta
orgulhosa o lema “non dvcor dvco” (“não sou conduzido, conduzo”) –
revela o cenário caótico de 133 escolas públicas, urbanas e rurais,
visitadas em loco: cerca de um terço das escolas de anos iniciais
(32,4%). E as que “têm” estão em estado lastimável. É a naturalização do
descaso.
E eu já vi muito, mas muito mesmo em
visitas de campo Brasil adentro como é comum, sem ausência de parâmetros
de qualidade, a naturalização da precariedade, como você pode ver nas
fotos no link deste levantamento realizado pelo TCU. Depósitos com
livros desatualizados e sem interesse – e é de se perguntar onde habita o
acervo de literatura de qualidade que há tantos anos enviado pelo PNBE
(Programa Nacional Biblioteca da Escola), agora nominado PNLD Literário
–, paredes mofadas e trincadas, espaços onde mal e mal se anda de lado,
sem a mínima condição de encontrar um item de interesse para leitura e
pesquisa.
Eu me pergunto há vinte anos na estrada
por política pública de leitura e biblioteca porque raios a biblioteca
merece esse lugar de tamanho desamparo e desinteresse. Numa conversa
recente com Andressa Pellanda, coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ela me diz:
“As políticas de educação no Brasil
nunca tiveram financiamento adequado para a garantia de um direito à
educação pautado em infraestrutura de qualidade nas escolas, de forma a
promover o ensino e a aprendizagem. Essa prerrogativa, apesar de estar
na Lei do Plano Nacional de Educação, não tem sido prioridade, porque
toca em um ponto sensível para qualquer governo: a alocação
orçamentária.”
Segundo ela, “as bibliotecas estão presentes no Custo Aluno-Qualidade
como um dos insumos indispensáveis à uma escola digna. No entanto, a
vontade política para implementação desse mecanismo beira o inexistente.
Prioridade na educação precisa passar por investimentos adequados.
Apesar de essa premissa ser um consenso, ela não se configura na prática
e nossas escolas seguem sem o básico para nossa educação”.
O curioso e inquietante é que somos
obcecados por indicadores. Produzimos, contratamos e invejamos pesquisas
para medir desempenho em educação. Daí a pergunta que não quer calar:
para fazer o quê com os dados? A iniciativa privada e lucrativa sabe
muito bem o que fazer e faz: implementa melhorias para sanar pontos
fracos e assegurar sustentabilidade dos pontos fortes.
Então vamos a mais pesquisas para relembrar e inquietar.
Dados da pesquisa de 2018 do Índice de Alfabetismo Funcional no Brasil
(Inaf) revelam que “há uma significativa proporção de pessoas que, por
exemplo, mesmo tendo chegado ao Ensino Médio e ao superior, não
conseguem alcançar os níveis mais altos da escala de Alfabetismo,
como seria esperado para esses níveis de escolaridade. Com efeito, 13%
daqueles que chegam ou concluem o Ensino Médio podem ser caracterizados
como Analfabetos Funcionais. Por outro lado, apenas um terço (34%) das
pessoas que atingem o nível superior podem ser consideradas proficientes
pela escala do Inaf”.
Outra pesquisa, a 4ª Edição da Retratos da Leitura do Brasil,
revela que 44% da população, segundo critérios da pesquisa, não são
leitores. A este dado deve ser adicionado, para compreensão adequada do
cenário, que entre os 56% que leem a Bíblia e livros religiosos são, de
longe, os livros mais lidos: algo em torno de 60%. Ou seja, mesmo entre
os que são considerados leitores há uma enorme restrição acerca do
cardápio de leituras, ou bibliodiversidade.
Sem acesso cotidiano à diversidade
cultural expressa no texto escrito, seja em suporte impresso ou digital,
compromete-se profundamente a possibilidade da população brasileira em
atingir o nível pleno de alfabetismo, que segundo o Inaf significa:
“ habilidade na qual não mais se impõem restrições para compreender e
interpretar textos em situações usuais: são pessoas que leem textos mais
longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam
informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e
sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior
planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de
área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos”.
O Instituto Pró-Livro, responsável pela
pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, também realizou, em parceria com
o Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), pesquisa em aproximadamente
500 escolas, distribuídas em 17 unidades da federação, com o objetivo de
identificar o impacto da biblioteca escolar no desempenho de
estudantes.
Foi aplicado um questionário com cerca
de 60 questões para dirigentes da educação e professoras(es). Os dados
coletados foram correlacionados com dois importantes indicadores de
avaliação do desempenho do aluno: O IDEB – Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica e o SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica, por
meio da Prova Brasil. Os resultados confirmam o que já se sabia e são irrefutáveis:
1) A escola que possui espaço exclusivo
para biblioteca, acervo diversificado, atividades extraescolares como
visitas a museus e atividades culturais e integração do professor às
atividades das bibliotecas cria um diferencial significativo na aprendizagem dos alunos;
2) Nessa correlação entre espaço físico e o Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico – IDEB, a escola que tem uma biblioteca escolar em boas condições, alcança IDEB 0,2 ponto maior que uma escola com um espaço inferior;
3) O impacto da biblioteca é ainda maior nas escolas mais vulneráveis.
Neste caso a correlação com o IDEB aumenta em 0,5. Isso é muito
significativo já que o IDEB, entre 2015 e 2017, no Brasil inteiro,
cresceu 0,3 ponto;
4) Ter um responsável pela biblioteca que desenvolva suas ações ligadas às atividades pedagógicas é bastante relevante. Segundo a pesquisa, em correlação com o Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, o desempenho em Português dos alunos aumenta em 4 pontos,
ou seja, o equivalente a 1/3 de um ano de aprendizado para alunos entre
o 5º e o 9º ano. Nas escolas mais vulneráveis a relevância é da
magnitude de 16 pontos. Quatro vezes maior!
5) A pesquisa mostrou que ter um
professor de sala de aula que se envolva em atividades de pesquisa e
leitura e incentive os alunos a frequentarem a biblioteca, aumenta o
desempenho em Português em até 7 pontos na escala SAEB, o que pode representar um índice de 63% de um ano de aprendizado;
6) Outro dado significativo se refere à presença
de um bom acervo nas bibliotecas escolares, com um crescimento de 6
pontos na disciplina de Português e 10 pontos em Matemática. Já em relação ao IDEB o aumento é de 0,4 ponto.
“O impacto da biblioteca na escola é muito mais relevante onde as escolas são socialmente vulneráveis” – Pesquisa Instituto Pró-Livro, 2018
Então, a pergunta não é SE a biblioteca
da escola é importante, mas COMO ela deve ser para atender estudantes e
professores. E ao pensar em INOVAÇÃO, pensar como foi pensado nesta biblioteca americana, na universidade de Berkeley, considerada a melhor universidade pública do mundo no ranking da U.S. News & World Report,
com ações focadas em oferecer ambiente de aprendizagem, que oferece
apoio à busca de informação e espaços que incentivem estudos
colaborativos, que oferecem espaços para a concentração e até para um
cochilinho.
Ou seja: tudo para que se promova
leitura, aprofundamento, capacidade de localizar e filtrar dados. Ou
seja: ler, ler, ler. Nada de confundir biblioteca com sala de
espetáculos, teatro de marionete, oficina de reciclagem, a não que seja
para reciclagem de leituras, pensamentos e argumentos.
Assim como a pergunta não é SE temos
recursos, mas COMO mobilizar recursos públicos a partir de escolhas
afinadas com a lógica da educação pública de qualidade. Bons exemplos
estão citados na matéria Cidades que desistiram de sediar a copa para investir em bibliotecas,
onde são citados os casos de Alagoas e Maranhão, que incluíram em suas
agendas de prioridades INVESTIR EM BIBLIOTECAS, reconhecendo serem
equipamentos essenciais para a formação cidadã.
Nessa pegada, no caso do Maranhão, por
exemplo, foram revitalizadas bibliotecas públicas e outras foram
criadas, assim como assegurou a existência de Biblioteca Escolar no
programa Escola Digna.
Parafraseando uma célebre frase, não
pergunte o que uma boa biblioteca pode fazer pela educação, pergunte o
que você pode fazer para que todas as escolas do seu bairro, da sua
cidade, do seu estado e do nosso País tenham uma boa biblioteca. Acesse EU QUERO MINHA BIBLIOTECA e fale de pertinho com a(o) candidata(o) em quem votou no verão passado.
Igualmente vale a leitura se você é
uma(um) gestora(gestor) ou parlamentar. Cada um de nós faz a sua parte e
junt@s asseguramos os meios indispensáveis à “cidadania crítica”, como
bem pontuou a bibliotecária colombiana Silvia Castrillon no Painel Informação e leitura: uma questão de direitos, realizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em recente passagem pelo Brasil!
[1]
A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revela que a Biblioteca na
escola é o principal meio de acesso aos livros para estudantes.
---------
Fonte: https://biblioo.cartacapital.com.br/por-que-a-biblioteca-tem-suscitado-tamanho-desamparo-e-desinteresse/?utm_campaign=newsletter_rd_-_07082019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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