Claudio
Ferraz*
Afirmações que seriam
aceitáveis somente numa discussão de bar passaram a fazer parte do discurso
oficial do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros
A
implementação de políticas públicas efetivas requer diagnósticos precisos. E
para isso precisamos de dados e informações. Podemos ter opiniões diferentes
sobre como melhorar a educação, reduzir taxas de criminalidade ou se a maconha
deve ser legalizada ou não. Podemos inclusive sentar num botequim durante horas
para discutir esses assuntos. Mas para tomar decisões que afetam milhões de
pessoas precisamos de um diagnóstico correto e isso só é possível com dados e
estudos que nos digam as possíveis consequências de políticas alternativas.
Uma forma
de ofuscar essa necessidade é acabar com a confiabilidade dos dados e das
instituições que os produzem. Num mundo onde agências de governo coletam dados
equivocados, políticas públicas não precisam mais ser guiadas por esses dados.
Isso permite que os governantes façam qualquer coisa e não precisem prestar
contas. Afinal, se não existem dados confiáveis, não podemos julgar se uma
política melhora ou não a vida das pessoas.
Essa é
precisamente a estratégia do presidente Jair Bolsonaro e de vários dos seus
ministros – jogar lama em qualquer pessoa ou instituição que possa servir de
freio aos seus devaneios. Os eventos da semana passada, quando o presidente e o
ministro do Meio Ambiente atacaram o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais) e a forma como é medida a taxa de desflorestamento da Amazônia
ilustram bem a forma do presidente de fazer política pública. Se há algo que
não condiz com sua visão do mundo – muito limitada por sinal – ataca-se a
pessoa ou instituição que produz a informação.
A
estratégia de ignorar dados e evidência científica não é exclusividade do
presidente Bolsonaro. Parece que é condição para pertencer ao gabinete de
ministros e membros do alto escalão do governo. O ministro da Cidadania Osmar
Terra atacou a FioCruz por sua pesquisa sobre uso de drogas dizendo que não
confiava no estudo e na instituição. O presidente do Ipea defendeu o acesso a
armas durante a apresentação do Atlas da Violência, ignorando as evidências
sobre seus efeitos. O chanceler Ernesto Araújo nega a existência do aquecimento
global com base na sua visita a Roma em maio. Os exemplos abundam e acontecem
quase que semanalmente. Afirmações que seriam aceitáveis somente numa discussão
de boteco passaram a fazer parte do discurso oficial do presidente e ministros.
A
cegueira e escuridão que o presidente Jair Bolsonaro
quer disseminar pelo
Brasil são incompatíveis com a democracia
que consumiu tanto esforço para ser
construída.
A onda
antidados e anticiência acontece em diversos países do mundo, dos EUA de Donald
Trump à Itália de Matteo Salvini. Mas em democracias emergentes, onde as
instituições ainda estão se consolidando, essa onda é um enorme passo atrás. O
Brasil evoluiu muito desde os anos 1990. Em áreas como educação, meio ambiente,
saúde, mercado de trabalho, combate à pobreza e muitas outras o governo federal
passou a sistematizar informações e usá-las para o monitoramento de políticas
públicas.
Durante
mais de 15 anos o combate à pobreza foi feito por meio de diagnósticos que
utilizaram dados de Censo, pesquisas domiciliares e informações do cadastro
único. A política educacional usou informações do censo escolar e da prova
Brasil para saber como estava a infraestrutura e o aprendizado nas escolas
brasileiras, quem estava em piores e melhores condições e quem estava
aprendendo mais ou aprendendo menos. Na saúde, as informações do Datasus são
usadas para sabermos a cobertura de vacinação, a proliferação de doenças e o
déficit de enfermeiras, médicas e leitos hospitalares. Sem essas informações
seria impossível saber onde falta sala de aula, professor, ou medicamentos.
Mas a
coleta desses dados depende de um sistema de confiança que foi desenvolvido por
décadas. Os agentes que coletam acreditam que os informantes dizem a verdade e
os informantes dizem a verdade porque acreditam que essas informações serão
usadas para decisões de políticas públicas. A partir do momento em que acharmos
que é tudo mentira, que a taxa de desmatamento não mede desmatamento, que a
taxa de desemprego não mede desemprego e que cobertura de vacinação não mede
cobertura de vacinação, entramos no jogo do vale-tudo. E esse jogo é um perigo
para a democracia porque governantes podem dizer qualquer coisa e inventar
estatísticas sobre seu desempenho.
Sistemas
de informação não pertencem ao governo e sim ao Estado. O Inpe levou anos para
se tornar uma referência mundial em georreferenciamento, o Ministério de
Desenvolvimento Social demorou para aprimorar a forma como são colhidos os
dados do cadastro único e o Inep levou anos aprimorando a Prova Brasil. Esses
sistemas não podem ser desmantelados por um governo simplesmente porque não
acredita na ciência e no uso de dados. A cegueira e escuridão que o presidente
Jair Bolsonaro quer disseminar pelo Brasil são incompatíveis com a democracia
que consumiu tanto esforço para ser construída.
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* Claudio
Ferraz é professor titular da University of British Columbia, Canadá, professor
adjunto do Departamento de Economia da PUC-Rio e diretor científico do JPAL
(Poverty Action Lab) para a América Latina. É formado em economia pela
Universidade da Costa Rica, tem mestrado pela Universidade de Boston, doutorado
pela Universidade da Califórnia em Berkeley e foi professor visitante na
Universidade Stanford e no MIT. Sua pesquisa inclui estudos sobre as causas e
consequências da corrupção e a avaliação de impacto de políticas públicas. Ele
escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/Quem-quer-pol%C3%ADtica-p%C3%BAblica-de-boteco?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo
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