Anselmo Borges*
1. Vivemos num tempo com algumas características deletérias. Por
exemplo, não penso que seja muito favorável assistirmos em restaurantes a
famílias inteiras a dedar num smartphone: o pai, a mãe, os filhos...,
que quase se esquecem de comer e sem palavra uns com os outros. É bom estar
informado, mas neste dedar constante perde-se o contacto autêntico da e com a
família, esse estar presente aos outros mais próximos. E, com o tsunami das
informações, incluindo as fakenews, fica-se sujeito ao engano, à
confusão, e corre-se o risco de se estar a criar personalidades fragmentadas,
alienadas, interiormente desestruturadas. E, ao contrário do que se pensa,
dentro da conexão universal através das redes sociais, sofrendo uma imensa
solidão.
A nossa sociedade é também avassalada pelo ruído e pela pressa. Toda a
gente corre, sempre com a vertigem da pressa - para onde?, poder-se-ia
perguntar. Para longe de si. Quando é que alguém está
autenticamente consigo, sem narcisismo, evidentemente? E o ruído atordoador?
Quem é que ainda consegue ouvir o silêncio e aquilo que só no silêncio se pode
ouvir? A voz da consciência, a orientação para o sentido da vida, Deus? Quem se
lembra do dito famoso de Calderón de la Barca, que escreveu que "o idioma
de Deus é o silêncio"?
Parece que esta situação vem de longe. O dramaturgo Eugène Ionesco, já
em 1961, se lhe referiu numa conferência, com estas palavras: "Vejam como
as pessoas correm atarefadas pelas ruas. Não olham para a direita nem para a
esquerda, preocupadas, de olhos fixos no chão, como cães. Caminham a direito,
mas sempre sem olhar em frente, pois seguem maquinalmente um percurso já bem
conhecido. Em todas as grandes cidades do mundo, é assim que acontece. O homem
moderno, universal, é o homem atarefado, que não tem tempo, que é escravo da
necessidade, que não compreende que uma coisa possa não ser útil; que não
compreende sequer que, na realidade, o útil pode ser um peso inútil, opressivo.
Se não se compreende a utilidade do inútil e a inutilidade do útil, não se
compreende a arte; e um país onde não se compreende a arte é um país de
escravos ou de autómatos, um país de pessoas infelizes, de pessoas que não riem
nem sorriem, um país sem espírito; onde não há humor, não há riso, há raiva e
ódio." No mesmo sentido, chamando a atenção para "as ameaças que
pesam sobre uma humanidade que não tem tempo para reflectir", Ítalo
Calvino escreveu: "Essas pessoas atarefadas, ansiosas, que perseguem um
objectivo que não é um objectivo humano ou que é apenas uma miragem, podem de
repente, ao ouvir o som de uma qualquer trombeta ou o chamamento de algum louco
ou demónio, deixar-se arrastar por um fanatismo populista."
2. Chegámos, deste modo, cavando mais fundo, à raiz da desorientação
deste nosso tempo. Ela encontra-se na mercantilização de tudo, em função do
lucro, na subordinação à lógica dos mercados. Afinal, como observou agudamente
o filósofo Giorgio Agamben, "Deus não morreu. Tornou-se Dinheiro". E
Jesus já tinha prevenido: "Não podeis servir a Deus e a Dinheiro"
(com maiúscula, como se fosse um nome próprio, um deus, Mammôn, em
aramaico, a língua materna de Jesus). Como escreveu Nuccio Ordine, com a lógica
do lucro, grande parte da Humanidade perdeu o direito de ter direitos,
multidões morrem de fome; "transformando os homens em mercadoria e em
dinheiro, este perverso mecanismo económico gerou um monstro, sem pátria e sem
piedade, que acabará por negar também às gerações futuras qualquer forma de
esperança".
A citação recebo-a emprestada de Nuccio Ordine no seu livro A
Utilidade do Inútil, um manifesto a favor do "inútil". De facto,
com a mercantilização de tudo e quando só vale o útil, o que serve na lógica do
lucro, o que é eficaz e produtivo, a razão técnica e calculadora, tem sentido
perguntar: o que vale a poesia, a grande literatura, a música, o saber pelo
saber, as humanidades? É claro que neste universo utilitarista, "um
martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave
inglesa mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um
utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a
literatura, a arte".
Com a financeirização especulativa da economia, só ficam as leis cínicas
do mercado e a aparente omnipotência do dinheiro. E a própria política fica
reduzida a negócio(s). Já Rousseau tinha
observado no seu tempo: "Os antigos políticos falavam sem descanso de
costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de
dinheiro", como se tudo o que não dá lucro fosse supérfluo ou até perigoso.
Mas, então, no quadro da lógica economicista do lucro, tem sentido perguntar:
porque é que nos queixamos da teia infindável da corrupção?
Martin Heidegger chamou vigorosamente a atenção para os perigos do
monopólio da razão técnica, instrumental. Porque a técnica não pensa, apenas
calcula. E aí temos nós a razão que apenas se interessa pelo que se mede e
calcula, pela quantidade, ignorando a qualidade. Mas, então, quem somos e o que
é que somos, na abertura constitutiva à Transcendência? Pensando apenas nas
"finalidades técnicas" e no "para que serve?", pergunta-se:
onde está a beleza de um pôr do Sol, para que serve a ternura de um beijo, o
florir de um sorriso de criança, a honra, a dignidade, o pensamento crítico, a
gratuidade, a filosofia, o estudo das Humanidades, o mistério do Ser e de se
ser? Tudo isso é inútil? No entanto, como disse o biofísico e filósofo Pierre
Lecomte du Noüy, "na escala dos seres, só o Homem executa actos
inúteis", acrescentando dois psicoterapeutas, Miguel Benasayag e Gérard
Schmidt, que "a utilidade do inútil é a utilidade da vida, da criação, do
amor". No seu livro A Cerimónia do Chá (1906), o japonês Kakuzo
Okakura intuiu que a passagem do bruto ao humano se deu com a descoberta do
inútil: "O homem primitivo superou a sua condição de bruto ao oferecer a
primeira grinalda à sua namorada. Elevando-se acima das necessidades naturais
primitivas, tornou-se humano. Quando percebeu o uso que se podia fazer do
inútil, o homem fez a sua entrada no reino da arte." Kant apresentou o
belo como o que agrada desinteressadamente; o belo tem a sua finalidade em si
mesmo, não é para outra coisa, é "uma finalidade sem fim".
Frente à desertificação galopante do espírito, impõe-se voltar à
aparente inutilidade do "inútil", ao "fascinante esplendor do
inútil", na expressão de George Steiner, que tem a ver com os valores
irrenunciáveis da cultura e da educação livre, da grande música, da arte, do
estudo dos clássicos e da filosofia, da dignidade livre e da liberdade na
dignidade, do pensar crítico.
Concluo, com Nuccio Ordine: "Se deixarmos morrer o gratuito, se
renunciarmos à força geradora do inútil, se ouvirmos unicamente este canto das
sereias que nos impele a procurar o lucro, só seremos capazes de produzir uma
colectividade enferma e desmemoriada que, confusa, acabará por perder o sentido
de si mesma e da vida." E uma previsão que dá que pensar: cerca de um
terço dos portugueses pode vir a ter perturbações de ansiedade. Um facto: está
a aumentar o consumo de ansiolíticos, antidepressivos... Sem pôr em questão a
imensa dívida para com a razão tecnocientífica, impõe-se interrogarmo-nos sobre
se não acabámos por criar uma civilização contra nós.
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Português de Portugal
* É um padre católico, professor universitário e ensaísta português.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/elogio-do-inutil--11198254.html 11 Agosto 2019
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