terça-feira, 27 de agosto de 2019

O que há por trás das falas do presidente?

Paulo Martins*
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Após oito meses de governo algo deve ser dito: o padrão comportamental do presidente é absolutamente coerente. Afinal não há uma semana sequer que não sejamos pegos “de assalto” por uma fala que não possa ser considerada intempestiva, pouco qualificada, desmedida, ou mesmo, inconveniente. São “tiros para todos os lados”, com a devida vênia. Ainda que “seu alvo predileto” seja um espectro político específico – a esquerda – e o episódio com os governadores do Nordeste é paradigmático[1], antigos aliados ou atuais colaboradores e parceiros também são “alvejados” por seu fel. Gustavo Bebiano, Alberto Santos Cruz, Ricardo Vélez Rodrigues e Alexandre Frota são exemplos notáveis. Qual seria o próximo? Há quem aposte na pasta da Justiça, já que os atos contra a autonomia da Receita Federal, da Polícia Federal e do extinto Coaf afetam diretamente o “superministro” Moro. 
 
Entretanto, mesmo que seja típico de Bolsonaro personalizar os ataques embebidos com sua atrabílis, suas ações somenos muita vez causam espanto, já que diante de uma crise sem precedentes no emprego – os 13% são respeitáveis –, com uma saúde em frangalhos – o SUS está em perigo – e uma educação vilipendiada – é melhor nem comentar –, o presidente pauta seu dia a dia numa agenda completamente deslocada de problemas reais do País. Afora o fato de que paradoxalmente indo por esse caminho acaba por destruir algo que havia sido construído para o bem da população: velocidade nas estradas, cadeirinhas de criança nos automóveis, a questão dos armamentos, a embaixada para “o seu número 3”, o deputado Eduardo, censura na Ancine, as ONGs incendiárias, etc. Já nos habituamos ao blá-blá-blá, mas sexta-feira, 23 de agosto, houve um repique de panelas.

Limitasse Jair Messias Bolsonaro a operar ações apequenadas no cenário do comezinho nacional, menos pior, mas seus vitupérios e impropriedades internacionais solapam a tradição das relações exteriores brasileiras, respeitadíssima no concerto das nações. Desqualificar e vituperar o possível próximo presidente da Argentina, Alberto Fernández – “bandidos de esquerda começaram a voltar ao poder”[2] –, o cancelamento do encontro com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian a fim de dar conta de sua “urgência capilar”[3], são alguns exemplos de como não fazer política internacional. Entretanto o pior haveria de vir: as bravatas contra a Alemanha de Angela Merkel[4] e a Noruega de Erna Solberg[5], com a questão do Fundo Amazônia, eram a ponta do iceberg que culminaria na maior crise internacional que o Brasil já vivenciou. Às vezes o “tiro sai pela culatra”. E isso um bom militar saberia. Sabe um miliciano qualquer. Hoje estamos à beira de assistir ao malogro do acordo União Europeia e Mercosul que foi construído nos últimos anos. Mas vejamos. Embora nesse caso a boca-rota tenha levado a um grande problema, parece-me que no cotidiano suas falas encobrem uma estratégia de “governo” que se deseja Estado. Isso sim um problema terrível, quem não se lembra da aula de história: “L’État, c’est moi”?.

Há quem diga que a boca de trapo desnuda idiossincrasias, outros afirmam despreparo, alhures afirmam que são “gozações”, “tiração de sarro”, mas Frota na semana passada foi um pouco mais forte, “um idiota ingrato que nada sabe”[6]. Em recente artigo no El País, Juan Arias afirma quanto à linguagem de Bolsonaro: “Desde o surgimento da psicanálise, e depois de Freud e Lacan, conhecemos muito bem o perigo contido na linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso interior. […] Nada seria pior do que tomar suas bravatas e loucuras linguísticas como algo sem importância a que deveríamos nos acostumar. Pode ser trágico”[7]. Acredito exatamente nisso. Entretanto, assomo às falas certas ações que conspiram pari passu. Todo esse aparato que, aos olhos de pessoas esclarecidas, pode parecer apenas motivo de galhofa, é, antes de qualquer coisa, caso pensado, projeto estratégico, cortina de fumaça.

Porém não quero dizer que estas ações e falas de Bolsonaro não afetem o Brasil, não destruam aparelhos do Estado ou não limitem ações governamentais, mas, antes de quaisquer efeitos danosos maiores, essas obnubilam as reformas de cunho estrutural cuja característica primeira é a redução do Estado, o tornando ínfimo, como é do gosto ultraliberal. O que seguramente afeta a maior parte da população brasileira – somos um pobre país rico –, pois que essa depende de políticas de Estado em diversas esferas: saúde, educação, habitação, segurança, trabalho, previdência são apenas algumas.

O sucateamento das universidades federais e das duas agências federais de fomento, Capes e CNPq, literalmente aniquila o sistema de educação e de pesquisa no País. Não imaginemos que esse projeto está apenas limitado ao desprezo do presidente ao meio universitário por conta de uma agenda pessoal, ideológico-religiosa – não que isso não exista. Na verdade, o “Future-se” é o “braço armado” do mercado na “guerrilha” contra a educação pública, principalmente com implemento das parcerias entre as IFES e as organizações sociais (OSs) que irão fraudar, fraturar, por fim, “eliminar” a autonomia universitária garantida nos artigos 205 e 206 da CF[8].

Por seu turno, reforma da Previdência, cuja “economia” para os cofres seria da ordem de 1 trilhão de reais, tem no estrato social daqueles que perfazem entre um a cinco salários mínimos – “os privilegiados” – a “economia” em torno de 600 bilhões de reais, que cumulada com o sistema de capitalização – esse “a menina dos olhos” de Paulo Guedes –, um presente ao mercado financeiro, não só diminuirão o tamanho do Estado, mas o entregarão à iniciativa privada, perpetuando as graves distâncias entre esse grupo – a maioria da população – e os super-ricos, esses, sim, intocados pela reforma previdenciária.

Devemos ficar atentos, pois “a mãe de todas as reformas”, como é conhecida, começa a tramitar no Congresso. Se a reforma tributária vier para qualificar a cobrança de impostos, amparando a premissa de “quem ganha mais, paga mais” seja implantada ou diferenciando os conceitos de salário e renda, regulando a aplicação dos recursos arrecadados, corrigindo as distorções da tabela do IRPF, criando novas alíquotas para os mais ricos, não creio que haverá alguém efetivamente contra, a não ser os privilegiados pelo atual sistema tributário brasileiro que indubitavelmente existem. Mas, nas atuais circunstâncias, isso seria fechar um acordo com elfos e hobbits. Como não creio em seres, tanto pior…

Sintetizando, ainda que certas falas e atos de Bolsonaro possam e devam ser alvos de chacota como fez o deputado Marcelo Freixo[9] – perguntado se o presidente falaria dia sim, dia não apenas – quando da proposta daquele para redução da poluição ambiental[10]; ainda que algumas vezes possam se tornar um imbróglio internacional com consequências devastadoras[11]; ainda que sinalizem muitas vezes para um desvio que, pautado por discurso moralizante, se associa ao escatológico e ao sexual[12], na maior parte das vezes seu discurso e sua ação são absolutamente descolados de algo útil ou eficaz para seu governo e para o Estado, entretanto ocupam um enorme espaço midiático, o que acaba por encetar desvio do olhar atento dos cidadãos para as reformas que estão claramente desestruturando o Estado brasileiro e que, certamente, irão produzir danos provavelmente duradouros.
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[8] Cf. meu artigo neste jornal: “Future-se ou devoro-te”, de 31 de julho de 2019. (https://jornal.usp.br/artigos/future-se-ou-devoro-te/).

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 * Paulo Martins é professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP)
Por - Editorias: Artigos - URL Curta: jornal.usp.br/?p=268272
Fonte:  https://jornal.usp.br/artigos/o-que-ha-por-tras-das-falas-do-presidente/

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