quinta-feira, 22 de agosto de 2019

A democracia brasileira corre perigo?


Filipe Campante*
Resultado de imagem para democracia
Mais relevante do que o foco em uma ruptura à moda antiga é perguntar 
se há risco de uma erosão democrática significativa

Desde a eleição de 2018, abriu-se um debate sobre os rumos da democracia brasileira. De um lado, os que a veem em risco; de outro, os que consideram tal preocupação um exagero beirando o absurdo. Como tudo nos últimos tempos, esse debate deu margem a uma polarização, com aqueles vendo estes como contribuindo para alimentar o risco, e estes vendo aqueles como responsáveis por poluir a discussão com receios infundados.

Quem tem razão? Em certa medida, a resposta é a tradicional favorita dos economistas: depende. De quê? Do que se avalia como o risco de fundo: ruptura ou erosão.

É corriqueiro entre os estudiosos do tema classificar regimes políticos
não de forma binária – democracia ou ditadura – mas sim
de modo mais contínuo.

Tradicionalmente, e mais ainda em países com o histórico de rupturas institucionais que temos no Brasil (ou na América Latina em geral), pensar em risco à democracia tende a conjurar a imagem de tanques nas ruas (como em 1964), de fechamento do Congresso (como em 1968), de censura explícita à imprensa (como ao longo de praticamente todo o regime militar). São essas imagens que, provavelmente, têm em mente os que desconsideram o risco nas circunstâncias atuais.

Não chego a discordar. A despeito dos arroubos autoritários do presidente Bolsonaro, considero improvável que venham a se repetir em futuro próximo quaisquer desses elementos “tradicionais”, por assim dizer, dos colapsos democráticos ao longo de nossa história. Não chego a tomar isso como grande consolo, visto que há poucos anos eu atribuiria probabilidade zero a eventos dessa natureza, e hoje considero tal probabilidade apenas bastante remota. De por si, esse pequeno aumento já é para mim chocante.

Porém, é uma visão bastante limitada da democracia a que a considera fora de risco a menos de rupturas. De fato, é corriqueiro entre os estudiosos do tema classificar regimes políticos não de forma binária – democracia ou ditadura – mas sim de modo mais contínuo. Por exemplo, a medida mais utilizada para aferir se um regime político é democrático é a divulgada pelo projeto Polity IV, que vai de -10 (autocracia) a 10 (democracia).

A evolução histórica dessa medida, no caso brasileiro, ilustra bem que há variações mais sutis do que as marcadas por um golpe militar. O Brasil passou de 6 em 1960 para 3 em 1963 – uma deterioração democrática ainda antes da ruptura completa. Esta veio, evidentemente, em 1964, e em consonância a medida caiu para -9 em 1965. Porém, mesmo durante o regime militar houve variação, com a nota subindo para -4 com as eleições legislativas de 1974. A restauração democrática vem em 1985, representada com um 7 e chegando a 8 com a Constituição de 1988 – escore esse que mantivemos até o último ano disponível na série até o momento (2017).

Portanto, mais relevante do que o foco em uma ruptura à moda antiga é perguntar se há risco de uma erosão democrática significativa. Parece-me que a resposta a essa questão é indubitavelmente positiva, e por dois motivos.

O primeiro deles é que temos aprendido ao longo dos últimos anos que muito do funcionamento da democracia depende de normas não codificadas, e não do ordenamento jurídico. Não há exemplo mais claro do que o fornecido pelos Estados Unidos ao longo dos últimos anos. Trata-se de uma das democracias mais consolidadas do mundo, e ainda assim pode-se ver que comportamentos antes tidos como impensáveis – por exemplo, um presidente que pode receber propinas por meio de um hotel de sua propriedade, ou direcionar dinheiro público para seu bolso ao se hospedar em seus próprios resorts – não o eram por conta da solidez de “pesos e contrapesos”, mas em larga medida por pura convenção.

Em cenários menos sólidos do que o americano, também temos visto como a democracia tem sido enfraquecida sem necessidade de golpes ou grandes rupturas internacionais. O governo de Viktor Orbán na Hungria, aliado de primeira hora do bolsonarismo, exemplifica como é possível capturar instituições ao ponto de profunda degradação democrática – e mantendo a nota 10 na medida do Polity IV.

O segundo elemento é talvez ainda mais sutil. Os agentes políticos não guiam seu comportamento apenas pelo que acontece, mas também pelo que eles sabem que poderia acontecer se eles fizessem certas escolhas. Por exemplo, consideremos um cenário em que, numa eleição aparentemente livre e democrática, é sabido ou especulado que as Forças Armadas do país apoiam um candidato, e não veriam com bons olhos a eleição de outro. Sem necessidade de qualquer intimidação explícita, é de se imaginar que as forças políticas e institucionais levariam isso em conta ao tomar suas decisões. O resultado é que o jogo eleitoral não ocorre num terreno neutro, e isso representa a erosão de uma condição básica para o bom funcionamento de uma democracia. Tal fenômeno, que o jargão dos economistas descreve como ameaças “fora da trajetória de equilíbrio” (“off the equilibrium path”, em inglês) infelizmente já se faz presente no contexto brasileiro.

Tampouco pode-se considerá-lo restrito à figura do presidente Bolsonaro. Afinal de contas, uma das normas democráticas recém-quebradas no Brasil é a do afastamento dos militares da política. De fato, hoje em dia é corriqueiro ler na imprensa considerações sobre o que o General A ou B pensa sobre o cenário político, numa kremlinologia absolutamente estranha ao jogo democrático saudável. É perfeitamente natural supor que no futuro continuaremos tendo candidaturas implícita ou explicitamente ungidas pelas Forças Armadas.

Esses dois elementos interagem, e seu alcance não se limita apenas à dimensão política da democracia. Não é preciso qualquer mudança de leis para criar um cenário em que as forças de segurança do Estado – a polícia, em bom português – se sentem autorizadas a cercear as liberdades civis dos indivíduos em função de suas preferências ou status políticos.

Em suma, não me parece alarmismo que nos preocupemos com a erosão da democracia brasileira. Todos aqueles que têm compromisso com os valores da democracia liberal, em suas manifestações políticas e no âmbito dos direitos civis, têm a meu ver motivos para estar em alerta.
 ------------------------
*Filipe Campante é Bloomberg Distinguished Associate Professor na Johns Hopkins University. Sua pesquisa enfoca temas de economia política, desenvolvimento e questões urbanas e já foi publicada em periódicos acadêmicos como “American Economic Review” e “Quarterly Journal of Economics”. Nascido no Rio, ele é PhD por Harvard, mestre pela PUC-Rio, e bacharel pela UFRJ, todos em economia. Foi professor em Harvard (2007-18) e professor visitante na PUC-Rio (2011-12). Escreve mensalmente às quintas-feiras.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/A-democracia-brasileira-corre-perigo?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo 21/Ago 19
Imagem da Internet


Nenhum comentário:

Postar um comentário