Filipe
Campante*
Mais
relevante do que o foco em uma ruptura à moda antiga é perguntar
se há risco de
uma erosão democrática significativa
Desde a eleição de 2018, abriu-se um debate sobre os rumos da democracia
brasileira. De um lado, os que a veem em risco; de outro, os que consideram tal
preocupação um exagero beirando o absurdo. Como tudo nos últimos tempos, esse
debate deu margem a uma polarização, com aqueles vendo estes como contribuindo
para alimentar o risco, e estes vendo aqueles como responsáveis por poluir a
discussão com receios infundados.
Quem tem razão? Em certa medida, a resposta é a tradicional favorita dos
economistas: depende. De quê? Do que se avalia como o risco de fundo: ruptura
ou erosão.
É corriqueiro entre os estudiosos do tema classificar regimes políticos
não de forma binária – democracia ou ditadura – mas sim
de modo mais contínuo.
Tradicionalmente, e mais ainda em países com o histórico de rupturas
institucionais que temos no Brasil (ou na América Latina em geral), pensar em
risco à democracia tende a conjurar a imagem de tanques nas ruas (como em
1964), de fechamento do Congresso (como em 1968), de censura explícita à
imprensa (como ao longo de praticamente todo o regime militar). São essas
imagens que, provavelmente, têm em mente os que desconsideram o risco nas
circunstâncias atuais.
Não chego a discordar. A despeito dos arroubos autoritários do
presidente Bolsonaro, considero improvável que venham a se repetir em futuro
próximo quaisquer desses elementos “tradicionais”, por assim dizer, dos
colapsos democráticos ao longo de nossa história. Não chego a tomar isso como
grande consolo, visto que há poucos anos eu atribuiria probabilidade zero a
eventos dessa natureza, e hoje considero tal probabilidade apenas bastante
remota. De por si, esse pequeno aumento já é para mim chocante.
Porém, é uma visão bastante limitada da democracia a que a considera
fora de risco a menos de rupturas. De fato, é corriqueiro entre os estudiosos
do tema classificar regimes políticos não de forma binária – democracia ou
ditadura – mas sim de modo mais contínuo. Por exemplo, a medida mais utilizada
para aferir se um regime político é democrático é a divulgada pelo projeto
Polity IV, que vai de -10 (autocracia) a 10 (democracia).
A evolução histórica dessa medida, no caso brasileiro, ilustra bem que
há variações mais sutis do que as marcadas por um golpe militar. O Brasil
passou de 6 em 1960 para 3 em 1963 – uma deterioração democrática ainda antes
da ruptura completa. Esta veio, evidentemente, em 1964, e em consonância a
medida caiu para -9 em 1965. Porém, mesmo durante o regime militar houve variação,
com a nota subindo para -4 com as eleições legislativas de 1974. A restauração
democrática vem em 1985, representada com um 7 e chegando a 8 com a
Constituição de 1988 – escore esse que mantivemos até o último ano disponível
na série até o momento (2017).
Portanto, mais relevante do que o foco em uma ruptura à moda antiga é
perguntar se há risco de uma erosão democrática significativa. Parece-me que a
resposta a essa questão é indubitavelmente positiva, e por dois motivos.
O primeiro deles é que temos aprendido ao longo dos últimos anos que
muito do funcionamento da democracia depende de normas não codificadas, e não
do ordenamento jurídico. Não há exemplo mais claro do que o fornecido pelos
Estados Unidos ao longo dos últimos anos. Trata-se de uma das democracias mais
consolidadas do mundo, e ainda assim pode-se ver que comportamentos antes tidos
como impensáveis – por exemplo, um presidente que pode receber propinas por
meio de um hotel de sua propriedade, ou direcionar dinheiro público para seu bolso
ao se hospedar em seus próprios resorts – não o eram por conta da solidez de
“pesos e contrapesos”, mas em larga medida por pura convenção.
Em cenários menos sólidos do que o americano, também temos visto como a
democracia tem sido enfraquecida sem necessidade de golpes ou grandes rupturas
internacionais. O governo de Viktor Orbán na Hungria, aliado de primeira hora
do bolsonarismo, exemplifica como é possível capturar instituições ao ponto de
profunda degradação democrática – e mantendo a nota 10 na medida do Polity IV.
O segundo elemento é talvez ainda mais sutil. Os agentes políticos não
guiam seu comportamento apenas pelo que acontece, mas também pelo que eles
sabem que poderia acontecer se eles fizessem certas escolhas. Por exemplo,
consideremos um cenário em que, numa eleição aparentemente livre e democrática,
é sabido ou especulado que as Forças Armadas do país apoiam um candidato, e não
veriam com bons olhos a eleição de outro. Sem necessidade de qualquer
intimidação explícita, é de se imaginar que as forças políticas e
institucionais levariam isso em conta ao tomar suas decisões. O resultado é que
o jogo eleitoral não ocorre num terreno neutro, e isso representa a erosão de
uma condição básica para o bom funcionamento de uma democracia. Tal fenômeno,
que o jargão dos economistas descreve como ameaças “fora da trajetória de
equilíbrio” (“off the equilibrium path”, em inglês) infelizmente já se faz
presente no contexto brasileiro.
Tampouco pode-se considerá-lo restrito à figura do presidente Bolsonaro.
Afinal de contas, uma das normas democráticas recém-quebradas no Brasil é a do
afastamento dos militares da política. De fato, hoje em dia é corriqueiro ler
na imprensa considerações sobre o que o General A ou B pensa sobre o cenário
político, numa kremlinologia absolutamente estranha ao jogo democrático
saudável. É perfeitamente natural supor que no futuro continuaremos tendo
candidaturas implícita ou explicitamente ungidas pelas Forças Armadas.
Esses dois elementos interagem, e seu alcance não se limita apenas à
dimensão política da democracia. Não é preciso qualquer mudança de leis para
criar um cenário em que as forças de segurança do Estado – a polícia, em bom
português – se sentem autorizadas a cercear as liberdades civis dos indivíduos
em função de suas preferências ou status políticos.
Em suma, não me parece alarmismo que nos preocupemos com a erosão da
democracia brasileira. Todos aqueles que têm compromisso com os valores da
democracia liberal, em suas manifestações políticas e no âmbito dos direitos
civis, têm a meu ver motivos para estar em alerta.
------------------------
*Filipe Campante é Bloomberg Distinguished Associate Professor na Johns
Hopkins University. Sua pesquisa enfoca temas de economia política,
desenvolvimento e questões urbanas e já foi publicada em periódicos acadêmicos
como “American Economic Review” e “Quarterly Journal of Economics”. Nascido no
Rio, ele é PhD por Harvard, mestre pela PUC-Rio, e bacharel pela UFRJ, todos em
economia. Foi professor em Harvard (2007-18) e professor visitante na PUC-Rio (2011-12).
Escreve mensalmente às quintas-feiras.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/A-democracia-brasileira-corre-perigo?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo 21/Ago 19
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/A-democracia-brasileira-corre-perigo?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo 21/Ago 19
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário