José de Souza Martins*
Em dias
recentes, indo ao velório de um amigo na catedral de São Paulo, vi mais uma vez
as numerosas pessoas que, na noite excepcionalmente fria deste inverno,
deitavam-se no chão da praça e na escadaria da igreja, agasalhando-se com
trapos e jornais velhos, para mais uma noite de pesadelo. Uma senhora, com duas
meninas pequenas, de uns 6 ou 7 anos, que levava um cobertor, tentava
acomodá-las num dos degraus. No rosto de uma delas, lágrimas corriam,
reluzentes à luz amarelada da lâmpada de um poste próximo. O silêncio de sua
tristeza era ruidoso. O número de desabrigados era grande.
Na mesma hora, em outras praças, a alma desalmada do Brasil concentra todas as noites os filhos de sua hipocrisia social, política e religiosa sob marquises de prédios, pontes e viadutos. Ao pé da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o da igreja do santo que fizera a opção preferencial pelos pobres, inúmeras pessoas tentam esconder-se da noite e da vida.
Na mesma hora, em outras praças, a alma desalmada do Brasil concentra todas as noites os filhos de sua hipocrisia social, política e religiosa sob marquises de prédios, pontes e viadutos. Ao pé da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o da igreja do santo que fizera a opção preferencial pelos pobres, inúmeras pessoas tentam esconder-se da noite e da vida.
Sob o
antigo minhocão Costa e Silva, hoje minhocão João Goulart, numerosos
brasileiros da rua escondem a cabeça sob o cobertor maltratado, para apagar a
luz do quarto sem paredes e abrigar-se ao som da sinfonia dodecafônica do ruído
dos muitos veículos que trafegam pela avenida General Olímpio da Silveira, dia
e noite.
Na praça
Antônio Prado, antigo largo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e
do seu cemitério dos escravos, desfalecem nestas noites de hoje brancos e
negros, jovens e velhos, cujo destino não influencia os índices da Bolsa. E não
mobilizam os sábios e especialistas em altos e baixos das estatísticas
econômicas. Nem os gestores da economia da iniquidade.
São
brasileiros que se acomodam entre os sacos de lixo que serão recolhidos em
algum momento da noite para a indústria da reciclagem das coisas inúteis.
Ninguém passará para recolher e abrigar os humanos úteis que foram descartados
e colocados à margem da sociedade e da história.
Notícia
destes dias diz que na noite das ruas de São Paulo cresce o número de mulheres
e de crianças, como as que vi naquela, que se albergam nas calçadas e praças do
seu desamparo. São os seres humanos ameaçados em sua já precária humanidade, os
sem futuro e sem destino. Não são simplesmente sem-teto. São os sem-tudo, os
sem Brasil, os sem-pátria. Os que a economia sem metas sociais reguladoras do
lucro e da lucratividade tem empurrado para a situação de quem está aquém da
dos cachorros de estimação.
Cães de
estimação, no Brasil, tem hoje assistência médica, hospital, hotel, boa comida
e muito afago. Não seria o caso de inscrever em nossa consciência social o
reconhecimento desses mesmos direitos em favor dos humanos vitimados pelo
descarte injusto que decorre da política econômica sem política social? Eles
poderiam ter, assim, significativa ascensão social se conseguissem ter as
mesmas condições de vida dos animais de estimação.
A
proclamada mais rica cidade do Brasil só o é se fecharmos os olhos para a
realidade. Unidade dos contrários e síntese anômala de desencontros, terra do
acobertamento do que somos e no que não queremos nos reconhecer.
Mais de
uma vez, observei entre os moradores de rua e de cemitérios da cidade de São
Paulo indícios de uma organização social paralela, de sobrevivência em situação
adversa e de crise. Uma sociedade de emergência, muito parecida com a que
costuma ser constatada entre vítimas de situações de guerra e de ausência ou
inoperância do Estado. Uma sociedade invisível, mas razoavelmente eficaz.
Nunca nos
perguntamos como se arrumam essas pessoas quando precisam fazer uma necessidade
fisiológica ou tomar algo equivalente a um banho. São acolhidas nos sanitários
dos bares das áreas próximas e cumprem a regra não escrita de que devem
deixá-los limpos depois do uso. Entre elas circula de boca em boca um
verdadeiro guia de sobrevivência sobre os melhores banheiros públicos da
cidade, que são os de determinados cemitérios. Sobre os restaurantes que servem
refeições gratuitamente após o expediente normal. Sobre horários e estratégias
para se chegar aos melhores túmulos ainda vagos e estratégias para neles se
abrigar antes de ser descoberto.
A noite
das ruas e praças dos miseráveis de nossas cidades é a noite de um imenso
funeral. O funeral da civilidade, da justiça, do direito e, não percebem os que
lucram com tudo isso e não sabem, do próprio capitalismo especulativo que nos
domina sem capitalismo ser. Em suma, o funeral do capitalismo rentista, do
lucro sem princípios. O funeral do liberalismo de botequim, o da liberdade de
criar a miséria alheia e a degradação da vida do outro. O funeral da esperança
e o funeral da pátria. O funeral do Brasil possível.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).
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