O despacho que impõe a ideologia de género nas escolas foi
ignorado pela imprensa: a primeira notícia foi dada, três dias depois,
por uma rede social.
O Governo, por via dos secretários de Estado para a Cidadania e a
Igualdade e da Educação, publicou no passado dia 16 o Despacho nº
7247/2019, que “estabelece as medidas administrativas para a
implementação do previsto no nº 1 do artigo 12º da Lei nº 38/2018”,
enquanto o país estava a banhos e a imprensa entretida com a greve dos motoristas de combustíveis.
Esta lei é a que impõe a ideologia de género nas escolas. Por ser de
muito duvidosa constitucionalidade, a sua fiscalização foi recentemente
pedida por mais de um terço dos deputados. À socapa do parlamento e no
mais absoluto desrespeito pelo Tribunal Constitucional, dois membros do
governo, em fim de mandato, apressaram-se a implementar, às escondidas
dos órgãos de soberania e do país – numa sexta-feira de Agosto, em plena
ponte do feriado do dia 15! – medidas que decorrem de uma ideologia que
não tem qualquer fundamento científico e, muito provavelmente, é
inconstitucional.
Como se todos estes atropelos ao normal
funcionamento das instituições democráticas não bastassem, a notícia foi
praticamente silenciada pelos principais meios de comunicação social.
Com efeito, o referido despacho foi publicado no passado dia 16, mas a
primeira notícia do mesmo só foi dada, a 19, pelo Notícias Viriato. O
que diz muito da imprensa e das redes sociais que temos.
No caso
Watergate, um jornal norte-americano conseguiu o que parecia impossível:
a demissão de um presidente dos EUA! Mas, quase meio século depois
desta façanha, a imprensa não foi capaz de evitar as eleições de Trump e
de Bolsonaro.
Quase toda a imprensa norte-americana empenhou-se
em impedir a eleição de Donald Trump, apresentado invariavelmente como
um louco e um potencial detonador da terceira guerra mundial. Hoje,
estas acusações devem fazer sorrir até os maiores inimigos do dito. Apesar das suas evidentes limitações, a verdade é que
Trump parece ter derrotado o Estado islâmico e travado a ameaça nuclear
norte-coreana, ou seja, fez muito mais pela paz mundial do que o seu
antecessor que, no entanto, recebeu, não se sabe bem porquê, o Nobel da
paz. Mas, se a imprensa norte-americana – que, mais do que pró-Hillary
Clinton, era furiosamente anti-Trump – não conseguiu evitar a sua
eleição presidencial, é porque os eleitores já não ligam ao que alguns
media dizem.
O mesmo aconteceu no Brasil: alguma imprensa e muitos
intelectuais também tentaram, por todos os meios, que o denominado
fascista-nazi-antidemocrático Jair Bolsonaro não ganhasse as eleições
presidenciais. Mais uma vez, os cidadãos fizeram orelhas moucas a tais
paternalistas advertências e presságios de mau agoiro, e o horrível
candidato da direita, passe o pleonasmo, foi mesmo eleito, sem que o seu
país tenha mergulhado no caos que muitos profetizaram (e alguns,
decerto, desejavam). Decididamente, a imprensa já não é o que era.
Estes
acontecimentos criaram uma situação paradoxal: a de pretensos
democratas criticarem, em nome da democracia, eleições democráticas. A
mal disfarçada irritação dos media pôs também a nu a sua falta de
isenção: afinal, os meios de comunicação social não são, salvo honrosas
excepções, instâncias de reflexão crítica do poder instituído, mas
instrumentos desse mesmo poder. Na realidade, já foi assim no fascismo
(Estado Novo) e no social-fascismo (PREC) quando, para saber o que
realmente acontecia no país, era preciso recorrer às agências noticiosas estrangeiras.
realmente acontecia no país, era preciso recorrer às agências noticiosas estrangeiras.
É
verdade que a imprensa é essencial à democracia, mas não é um poder
democrático, porque os jornais, rádios e televisões têm donos e
interesses que não estão legitimados pelo voto popular. Em geral, a
imprensa está alinhada com o politicamente correcto e, por isso, quem
queira aceder a um discurso livre, tem que recorrer a meios
alternativos, como são as redes sociais, os blogues e sites
independentes, que têm também, como é óbvio, as suas debilidades:
recorde-se a censura, feita pelo Facebook, a ‘sites’ católicos e o seu
fraudulento uso, para fins eleitorais, de dados pessoais.
Um sinal
significativo desta perda de influência de alguma comunicação social é o
seu insucesso entre a gente mais nova. Durante três semanas deste mês
participei num curso de verão, frequentado por mais de três dezenas de
profissionais com formação universitária, com idades entre os vinte e
cinco e os oitenta anos. Curiosamente, só vi os mais velhos a assistir
aos telejornais, porque todos os outros preferiam informar-se por outras
vias. Eu próprio, que já não sou jovem, há já vários anos que não vejo
um telejornal, não só por falta de tempo, mas também de interesse.
Por
acaso, no referido curso, ao passar por uma sala onde três pessoas de
idade viam a televisão, vi-me obrigado a ouvir, durante alguns minutos, o
telejornal da RTP. Era na antevéspera da greve dos motoristas de
combustíveis e essa estação tinha repórteres em várias bombas de
gasolina do norte, centro e sul do país. O pivot fez a ligação para os
jornalistas destacados e todos, em directo, informaram … que não havia
nada para informar! Foi como naquela
tempestade que era para haver mas depois não houve, da qual as televisões fizeram uma impressionante cobertura! Não
critico os infelizes profissionais destacados para tão inglórias
missões, mas quem faz questão em informar o país inteiro de que … não há
nada para informar! Como alguém disse: bem-aventurados os que, nada
tendo para dizer, o não explicam com muitas palavras!
Enquanto as
televisões estavam entretidas a noticiar o que não aconteceu, ocorreu
uma coisa muito importante e grave, não só porque afecta milhares de
crianças e famílias, mas também porque é, pela certa, inconstitucional: a
publicação, de forma sorrateira, de um despacho que implementa a
perniciosa ideologia de género nas escolas. Mas, como se trata de uma
manigância muito politicamente correcta, alguma comunicação social fez o
favor de nada dizer. Ante esta cúmplice conspiração do silêncio, valeu-nos a rede social que se ufana de ter sido o primeiro
meio de comunicação a denunciar o escandaloso despacho, três dias depois
da sua publicação.
Não estranha que haja quem não esconda o seu
propósito de controlar, ou mesmo proibir, as redes sociais. Em nome da
qualidade da democracia, claro! As redes sociais, na medida em que dão
voz a quem a não tem nas televisões, rádios e jornais detidos pelo poder
politicamente correcto, são hoje um dos mais importantes espaços de
liberdade de pensamento e expressão, religiosa e política, dos cidadãos.
Felizmente, como dizia o poeta, “há sempre alguém que resiste, há
sempre alguém que diz não”!
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* Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e
doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em
Roma. É, desde 1986, sacerdote da prelatura do Opus Dei. Capelão de
várias instituições educativas, colabora regularmente em diversos
jornais nacionais. É autor, entre outras obras, de A Igreja e a vida
(Diel, 2004), Crítica da razão dialéctica de Aristóteles (INCM, 2006),
Os defeitos de Maria (Lucerna, 2007), Porque não, com Pedro Vaz Patto
(Alêtheia, 2009), Via Sacra (Verbo, 2010), Histórias e Morais (Alêtheia,
2011), e de, com Zita Seabra, Auto-de-fé (Alêtheia, 2012) e As Palavras
da Palavra (Alêtheia, 2013).
Fonte: https://observador.pt/opiniao/a-ideologia-de-genero-a-imprensa-e-as-redes-sociais/ 24/08/2019
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