MISTURA -
Marcella: anjo da guarda e amuletos (Eduardo Monteiro/VEJA)
À medida que os jovens se afastam das religiões tradicionais, cresce a
procura por 'serviços místicos', mercado que alcançou US$ 2,2 bi nos EUA em
2018
Por Maria
Clara Vieira
Como a maioria dos brasileiros, a publicitária carioca Marcella Farias, de
24 anos, foi batizada na Igreja Católica e reza toda noite a oração do anjo da
guarda, que aprendeu em criança. Nem por isso dispensa cobrir o umbigo com
esparadrapo e pôr um punhado de cristais na bolsa para se proteger contra
“energias ruins”. Além, claro, de ler religiosamente o horóscopo — ela é
virginiana. “Acredito que tudo está conectado. E me interesso por qualquer
coisa que ajude a me conhecer melhor”, diz. Nesse ponto, Marcella é o espelho
de sua geração. Pesquisas no Brasil e no exterior mostram que os jovens dos
dias de hoje, os pragmáticos e individualistas millennials, querem
distância dos rituais da religião tradicional e se aproximam cada vez mais das
práticas esotéricas. Entre os brasileiros, os que se dizem
ateus saltaram de 1,6% para 8% em três décadas — e são justamente os jovens que
mais deixam a igreja. Mas não param de cultivar crenças. Segundo uma pesquisa
da Universidade de Kent, na Inglaterra, com entrevistados de seis países, 35%
dos brasileiros não crentes acreditam em “forças do bem e do mal” — ou, como
reza o famoso ditado espanhol, “não creio em bruxas, mas que existem, existem”.
As explicações para o fenômeno variam do místico ao sociológico. Um fator
sempre citado para o esvaziamento das igrejas é o impacto dos recorrentes escândalos
e tragédias protagonizados por líderes religiosos e militantes extremistas. Há
quem jure que a culpa é da Era de Aquário — o novo “alinhamento astrológico”
prometido para o início do século XXI traria a derrocada das grandes religiões
e a consciência coletiva de que todos somos um pouco deuses. E contam muito,
claro, a ultraveloz troca de informações e a disseminação de novos conceitos
permitidas pela internet. “Pós-modernidade é justamente a contestação das
verdades absolutas. Mas, como o ser humano é essencialmente moral, a saída que
vem encontrando é adotar preceitos não convencionais emprestados da filosofia
oriental”, explica o filósofo Francisco Razzo. Ele ressalta que,
historicamente, a adesão ao esoterismo está ligada a períodos de transformação social
e alta insegurança como o que estamos vivendo. “No Renascimento, vimos a
ascensão de Giordano Bruno, que morreria queimado pela Santa Inquisição. Mais
recentemente, tivemos a onda esotérica de 1960-1970, ao fim da euforia do
pós-guerra”, lembra. Nos tempos modernos, Razzo ressalta a influência do físico
austríaco Fritjof Capra na concepção de um mundo onde “tudo está conectado”.
PROFISSÃO
– A astróloga Isabella (à esq.): cursos com maioria jovem (Eduardo
Monteiro/VEJA)
Encaixa-se
neste movimento o que o papa Francisco definiu como religião self-service — alimenta-se
o que se deseja, descarta-se o resto. “A internet tem um papel fundamental na
proliferação das práticas místicas”, diz o youtuber Bruno Gimenes, de 42 anos,
dono do canal Luz da Serra, destinado a desvendar o universo de chacras, auras,
signos e que tais, com mais de 4,5 milhões de visualizações por mês. “A faixa
etária da audiência rejuvenesceu dez anos nos últimos dois. O assunto ficou cool”,
afirma Gimenes, que contrata funcionários com base no mapa astral. Dos tempos
em que tinha consultório, o químico, hoje terapeuta holístico, lembra que a
maior procura era por limpeza de aura, exercício que consiste em inspirar,
expirar e imergir em luzes imaginárias. “Nas religiões tradicionais, muita
gente desobedece aos dogmas e se conforma com a mentira. Hoje, há quem troque a
mentira pela conveniência”, critica o youtuber.
No estilo
vida saudável (veja reportagem),
cabeça feita e ceticismo que os caracteriza, os millennials esotéricos
não gostam de dizer amém e usam a internet e as redes sociais para questionar e
refletir sobre as práticas milenares. “A gente quer pensar. Se fosse para
receber tudo de mão beijada, voltaríamos para as religiões tradicionais”,
alfineta Eduardo Mello, de 32 anos, naturólogo especializado em terapia com
cristais (a quem interessar: o quartzo rosa incentiva o amor-próprio e a
malaquita facilita curas espirituais). Em seu consultório em São Paulo, Mello
atende pacientes e também ministra cursos na área das terapias ligadas à
natureza. É evidente que, nesse contexto, a interpretação do zodíaco, que
precede a maioria das religiões, está na linha de frente — é difícil encontrar
um jovem atualmente que não tenha na ponta da língua que pessoas do signo de
Capricórnio são céticas, de Virgem, organizadas, e de Escorpião, rancorosas. A
paulista Tatiane Lisbon, de 27 anos, a Papisa, abandonou a carreira de design
de interiores e está entre as astroinfluencers (sim, esse é o
termo) que mais fazem sucesso nas redes com previsões astrais, numerologia e
tarô. Astrologia também é o ganha-pão de Isabella Heine, de 37 anos, outra
estrela do Instagram, que cobra 400 reais por mapa astral e dá cursos sobre o
tema. “Quando comecei, há vinte anos, era a única novinha entre um monte de
mulheres mais velhas. Hoje, quase todas as minhas alunas são jovens”, diz.
REFLEXÃO
– Mello, especialista em cristais: espiritualidade em pauta (Claudio
Gatti/VEJA)
Como era
de esperar de um universo em franca expansão, os negócios relacionados ao
misticismo crescem sem parar. No ano passado, o mercado de “serviços místicos”
nos Estados Unidos alcançou 2,2 bilhões de dólares. Dois aplicativos americanos
de leitura de horóscopo receberam aporte sem precedentes de grandes grupos
investidores: 1,5 milhão de dólares no Sanctuary, em que astrólogos atendem
on-line, e 5 milhões de dólares no Co-Star, baixado mais de 3 milhões de
vezes. No Astroloucamente, o campeão nacional do horóscopo no Instagram, com
cerca de 2,5 milhões de seguidores, a produtora de conteúdo Maria Talismã, nome
de guerra de uma potiguar de 26 anos que se recusa a revelar rosto e
identidade, fatura alto fazendo menção a empresas como a Universal Music e a
99Pop. “Chego a ganhar 12 000 reais em um mês com esse trabalho”, estima. “Ao
se associar aos signos, as marcas estabelecem um canal de conexão com o
cliente. O individualismo é a marca desta geração e esses sites abrem uma
possibilidade de identificação coletiva”, explica o sociólogo Dario Caldas, da
consultoria Observatório de Sinais. A busca pelo espiritual, que canaliza o
anseio ancestral do ser humano de ordenar o mundo à sua volta, continua firme e
forte — só que agora, de preferência, sem a interferência de dogmas. Com tantas
opções ao alcance de um clique, ser ateu à moda antiga virou coisa de gente sem
visão. Ou dos céticos capricornianos.
Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647
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