Os norte-americanos costumam festejar as duas grandes
gerações que marcaram sua história de forma definitiva: a geração dos
seus founding fathers, responsável pela criação do seu sistema político, na segunda metade do século XVIII; e a geração dos seus robber barons,
responsável pela criação do seu capitalismo monopolista, na segunda
metade do século XIX. Dentro da geração dos “barões ladrões”, destaca-se
a figura maior de John D. Rockefeller, que ficou associada de forma
definitiva ao petróleo e à criação da Standard Oil Company, a primeira
das “Sete Irmãs” que controlaram o mercado mundial do petróleo até o
final da II Guerra Mundial, e ainda ocupam lugar de destaque entre as 15
maiores empresas capitalistas do mundo.
A Standard Oil foi criada logo depois da Guerra Civil, em 1870, mas
no final do século XIX, a empresa de Rockefeller era a maior petroleira
dos EUA, e a maior fornecedora do querosene que iluminava as grandes
cidades de todo o mundo. Segundo seus biógrafos, Rockefeller era um
homem piedoso e costumava viajar acompanhado por dois pastores que lhe
davam assistência religiosa, [1] mas ao mesmo tempo
dirigia sua empresa com métodos impiedosos, na busca desenfreada da
ganância capitalista, chegando até a destruição de seus concorrentes
sempre que se fizesse necessário. Por isso talvez, seu irmão, William
Rockefeller, costumasse se referir à concorrência no mercado do petróleo
como um exercício de “guerra e paz” [2]. Na medida em que avançou a centralização do capital, e o petróleo se transformou na commodity
mais importante e estratégica do mundo, o comportamento de John
Rockefeller virou uma espécie de “paradigma ético” da indústria mundial
do petróleo.
No início do século XX, a indústria do petróleo se associou à
indústria da guerra e se transformou na “energia” que passou a mover
navios, tanques e aviões das Forças Armadas das Grandes Potências,
sobretudo na Segunda Guerra Mundial, e em todos os conflitos militares
que se seguiram até o século XXI. O petróleo teve papel decisivo na
Guerra do Pacífico, desencadeada pelo ataque japonês a Pearl Harbor, em
1941, e foi o motivo central do ataque alemão à União Soviética, em
1941, que se propunha chegar ao Azerbaijão, conquistando o petróleo do
Cáucaso e do Mar Cáspio. Depois disso, o petróleo foi decisivo para o
Golpe de Estado no Irã, em 1953, patrocinado pelos EUA e pela
Inglaterra, e também para a Crise do Canal de Suez em 1956. E voltou a
ter papel central na Guerra do Yom Kippur, em 1973, na Guerra Irã-Iraque
da década de 80, na Guerra do Golfo, em 1991, na Guerra do Iraque, em
2003, na Guerra da Líbia, em 2011, e na Guerra da Síria que se prolonga
até hoje.
Em 1945, logo depois do fim da guerra, os EUA firmaram sua principal
aliança estratégica em todo o mundo, e até hoje, com a Arábia Saudita,
que naquele momento detinha a maior reserva de petróleo do mundo. Em
1979, depois da Revolução Islâmica do Irã, o presidente Jimmy Carter
estabeleceu a sua famosa doutrina estratégica de que tudo o que
envolvesse o controle do petróleo do Golfo Pérsico (e do mundo, se
poderia agregar) passaria a ser considerado como uma questão de
segurança nacional dos EUA. Uma doutrina estabelecida com a plena
consciência de que o petróleo também é uma questão de segurança
estratégica para todas as demais potências do mundo que disputam as
mesmas reservas mundiais que têm dois terços concentrados no território
de apenas 15 países, dos quais em 13 as reservas são controladas por
seus próprios Estados-nacionais e suas empresas petroleiras estatais.
Essa consciência coletiva de que o petróleo é um recurso
indispensável à segurança estratégica dos países acabou consolidando uma
parceira indissolúvel entre seus Estados-nacionais e suas empresas
petroleiras, na luta pela expansão e monopolização dos recursos e dos
mercados petroleiros. Isto também no caso das grandes corporações
privadas norte-americanas que operam em conjunto com o governo dos EUA,
suas Forças Armadas e suas Agências de Informação. É esta estreita
aliança, e a visão do petróleo como uma “commmodity geopolítica”,
que explicam a utilização de todo e qualquer meio que seja necessário
para assegurar o controle dos novos recursos e mercados que apareçam,
mesmo que seja necessário mudar regimes e governos, ou corromper
governantes, políticos e executivos, ou mesmo juízes, procuradores,
religiosos e quem quer que seja necessário para a realização de seus
objetivos estratégicos.
Relembremos apenas alguns casos mais recentes e divulgados pela
imprensa internacional, de compra de favores e de promoção de mudança de
governos, ou mesmo de guerras civis, motivadas por questões
petroleiras, ou financiadas diretamente pelas grandes corporações do
petróleo.
i) Nos anos 1990, a Mobil e outras petroleiras americanas teriam pago
um suborno de US$ 80 milhões para a conta bancária suíça do presidente
do Cazaquistão, Nursultan Nazarbaev, numa operação casada com a Agência
Central de Inteligência (CIA) dos EUA; [3]
ii) Entre 2000 e 2002, a Chevron teria pago sobretaxas para corromper
o Programa Petróleo por Comida, da ONU, na época em que Condoleezza
Rice era conselheira daquela empresa; [4]
iii) Em 2003, a Exxon teria pago US$ 500 milhões ao presidente da
Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguem Mbasogo, depositados numa conta
bancária privada e pessoal nos Estados Unidos; [5]
iv) Ainda em 2003, a petroleira norueguesa Statoil teria pago US$ 2,9 milhões para garantir contratos no Irã; [6]
v) Entre 2004 e 2006, Gazprom, a maior empresa de gás natural da
Rússia, teria pago suborno em conexão com a construção do gasoduto
Yamal, que liga a Sibéria à Alemanha; [7]
vi) Em 2005, um inquérito independente liderado por Paul Volcker
denunciou um sistema regular de propinas, sobretaxas e pagamentos a
indivíduos com acesso ao petróleo iraniano, dentro do Programa Petróleo
por Comida, incluindo a petroleira francesa Total, que foi acusada de
suborno, cumplicidade e tráfico de influência no período 1996-2003,
apesar de ter sido depois inocentada por um tribunal criminal de Paris,
tão francês quanto a própria empresa; [8]
vii) Em 2006, a empresa francesa Total teria comprado o apoio de
políticos e empresários italianos para garantir concessões a preço
abaixo do mercado, num golpe avaliado em 15 milhões de euros; [9]
viii) Em 2009, a Exxon teria vencido uma concorrência na Nigéria com
uma proposta muito inferior a dos seus concorrentes, mediante suborno
das autoridades locais; [10]
ix) Em 2011, a Exxon teria se enredado na corrupção do setor
petroleiro da Libéria para a compra de um bloco petrolífero envolvendo
outras empresas, incluindo a de Visconde Astor, sogro do ex-primeiro
ministro da Inglaterra, David Cameron; [11]
x) Também em 2011 a Shell e a ENI teriam pago mais de US$ 1 bilhão como suborno a executivos nigerianos do petróleo; [12]
xi) Nesse mesmo ano, 2011, a Statoil foi denunciada por ter feito
pagamento sistemático de propinas para consultores da Líbia e de Angola,
no valor de US$ 100 milhões, pagos desde o ano de 2000;
xii) Em 2017, na própria Arábia Saudita, uma longa investigação de
corrupção no mundo do petróleo prendeu dezenas de príncipes e
empresários proeminentes; [13]
xiii) Mais recentemente, em 2019, na Guiana, segue avançando uma
investigação sobre o uso de suborno de autoridades governamentais, pela
ExxonMobil e a Tullow Oil, para obter o direito de exploração da mais
nova região petrolífera de águas profundas do mundo; [14]
xiv) Voltando um pouco atrás, ainda em 1994, a Halliburton teria pago
um suborno de U$ 182 milhões a governantes da Nigéria, para participar
do Projeto de Gás Natural Liquefeito de Bonny Island. [15]
xv) E já se pode acrescentar nesta lista a importante confissão do
Sr. Pedro Barusco, que foi gerente de Serviços da Petrobras, entre 1995 e
2010, e que participou das negociações com a empresa Halliburton para a
entrega das plataformas P43 e P48. [16] Segundo o
engenheiro, executivos da petrolífera brasileira já vinham recebendo
propinas, pelo menos desde 1997, as mesmas que depois foram pagas por
empresas brasileiras – como Odebrecht, OAS, entre outras – que
substituíram empresas estrangeiras como fornecedoras da Petrobras. [17]
Paremos por aqui, pois tais casos parecem intermináveis; basta dizer
que um estudo do cientista político da Universidade da Califórnia,
Paasha Mahdavi, constatou que dos 141 processos movidos entre 1977 e
2013 pela Security and Exchange Commission (SEC) e pelo Departamento de
Justiça norte-americano (DoJ), 41 – praticamente um terço – foram ações
anticorrupção relacionadas ao setor de óleo e gás.
Mas ainda assim, não há dúvidas de que o caso recente mais
emblemático de como opera este “mercado mundial” de petróleo, é o caso
da Guerra do Iraque de 2003, concebida pelo vice-presidente Dick Cheney,
e que foi travada em nome do combate às armas de destruição em massa.
Ainda que tenha servido de fato como uma forma de mudar o governo e o
regime político do Iraque, o objetivo final era mesmo impor a supremacia
das empresas americanas na exploração do petróleo iraquiano, incluindo o
escandaloso caso do favorecimento da empresa norte-americana
Halliburton, que havia sido presidida pelo próprio vice-presidente dos
EUA Dick Cheney, entre 1995 e 2000.
Todas estas histórias nos permitem extrair pelo menos três conclusões
que podem nos ajudar a entender os acontecimentos recentes aqui no
Brasil:
- O “mercado mundial” do petróleo nunca teve nada a ver com o que os economistas ortodoxos e liberais chamam de “livre concorrência”, e sempre foi um “campo de guerra” entre grandes corporações e grandes potências;”
- Dentro deste “campo de guerra”, aquilo que os pastores, os juristas e o “homem comum” chamam de “corrupção” – goste-se ou não – foi sempre uma prática regular da competição entre as grandes petroleiras, na sua disputa por novos recursos e novos mercados;
- Por fim, há fortes evidências de que estas mesmas corporações que subornam e “corrompem” costumam utilizar a surpreendente acusação de ”corrupção” contra seus concorrentes e contra todo e qualquer tipo de concorrentes ou adversário que se interponha no seu caminho.
Agora bem, se esta foi sempre a “ética do petróleo”, não causa
surpresa a confissão do Sr Pedro Barusco, de que as grandes petroleiras e
fornecedoras da Petrobras tenham pago propinas aos dirigentes da
empresa, pelo menos desde 1997, durante o governo do Sr. Fernando H.
Cardoso, e provavelmente desde muito antes. Por outro lado, conhecendo
as regras deste jogo extremamente violento, seria possível que tenham
sido estas mesma petroleiras americanas que tenham repassado a
informação do seu “suborno”, para o Departamento de Justiça americano,
no momento em que foram prejudicadas pela política do governo Lula de
proteção dos fornecedores nacionais da Petrobras, e muito mais ainda,
depois do anuncio da descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em
2006.
E por último, faz sentido pensar que o próprio governo americano
tenha repassado estas informações para os seus subordinados
brasileiros: escritórios de advocacia, juízes, procuradores,
jornalistas, militares, e todos que participaram da “conspiração de
Curitiba”. De qualquer forma, devido a performance presidencial desta
figura patética que foi parida pela conspiração, o mais provável é que
sejam os próprios norte-americanos que venham a revelar, em breve, os
detalhes desta história, como já passou com o documentário, “A Privacidade Hakeada”.
-------------------------- (*) José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ); pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP). William Nozaki é Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
NOTAS
[1] Yergin, D. O petróleo. Uma história mundial de conquista, poder e dinheiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010, p. 53.
[2] Idem, p. 37-54.
[3]https://www.rferl.org/a/After_Seven_Years_Kazakhgate_Scandal_Ends_With_Minor_Indictment_/2123800.html
[4] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0905200710.htm
[5] https://www.independent.co.uk/news/business/news/exxon-probed-over-500m-africa-scandal-104198.html
[6] http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/3849147.stm; https://www.ft.com/content/5451c3ee-5aed-11db-8f80-0000779e2340
[7] https://www.reuters.com/article/gazprom-investigation-switzerland-idUSL5N0R318S20140902; http://russia-ic.com/rus_international/in_depth/2384#.XVWdj-hKjIU
[8] https://www.reuters.com/article/us-france-total/total-and-ceo-acquitted-in-iraq-oil-for-food-scandal-idUSBRE9670QK20130708
[9] https://www.ft.com/content/6ef1109a-cb9f-11dd-ba02-000077b07658
[10] https://www.theguardian.com/business/2016/jun/23/exxonmobil-nigeria-oil-fields-deal-investigation
[11] https://www.theguardian.com/business/2018/mar/29/exxonmobil-liberian-oil-deal-went-ahead-despite-anti-corruption-concerns;https://www.globalwitness.org/en/press-releases/us-authorities-must-investigate-exxon-its-purchase-corruption-tainted-oil-block-liberia/
[12] https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-05-07/shell-eni-executives-named-in-1-billion-nigeria-bribery-suit
[13] https://www.aljazeera.com/news/2019/01/saudi-arabia-corruption-crackdown-ends-106bn-recovered-190131062458260.html ehttps://www.cnbc.com/2019/01/30/saudi-arabia-says-it-raised-106-billion-from-anti-corruption-drive.html
[14] https://www.worldoil.com/news/2019/5/23/guyana-investigating-offshore-leases-controlled-by-exxon-tullow
[15] https://indianexpress.com/article/world/world-others/files-point-to-182mn-halliburton-bribery-scandal-in-nigeria/
[16] Barusco, P., “Comecei a receber propina em 1997, 1998. Foi uma iniciativa minha, pessoal. De forma mais ampla, com outras pessoas da Petrobras, a partir de 2003, 2004”. In: “Barusco diz que começou a receber propina em 1997”, EBC, Agência Brasil, 10/03/2015.
[17] Fiori, J. L.; Nozaki, W. “Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável”. Disponível em: https://www.jb.com.br/pais/artigo/2019/07/1011357-conspiracao-e-corrupcao–uma-hipotese-muito-provavel.html
-------------
Fonte: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/08/petroleo-guerra-e-corrupcao-para-entender-curitiba-por-jose-luis-fiori-e-william-nozaki/ 27/08/2019
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