Por Cíntia Moscovich*
"Manual do Luto", de Fabrício Carpinejar, combate de frente a noção de que a dor deve ser logo substituída pelo estado de constante excitação e aparente alegria em que o mundo parece mergulhado
Sentimento inevitável, muitas vezes duradouro e para o qual as pessoas parecem total e eternamente despreparadas, o luto é uma grande zona de solidão e estranhamento. Manual do Luto (Bertrand Brasil), 51º livro do multitarefas Fabrício Carpinejar, é uma reunião de textos que refletem sobre a impermanência, a saudade e a ausência, obra que combate de frente a noção de que a dor deve ser logo substituída pelo estado de constante excitação e aparente alegria em que o mundo parece mergulhado. Fabrício ensina que a dor pode, e deve, virar memória e que isso é em verdade o legado de uma vida.
A ideia de uma obra sobre a morte/luto e os sentimentos que decorrem da perda começaram com uma iniciativa propiciada pelo grupo Cortel, que consistia num grupo de cartas digitais batizado de Clube dos Corações Solidários, referência, claro, ao famoso disco dos Beatles. Logo, o grupo contava com mais de 25 mil inscritos que recebiam, de forma gratuita, correspondências criadas por Fabrício e que são reflexões muito elaboradas sobre o assunto. O Manual do Luto, que em verdade não é um manual, porque, se sabe, ninguém ensina ninguém a sofrer ou a superar a perda — a experiência da vida é mesmo intransferível —, pode ser tomado com um lenitivo ou uma companhia para quem se vê atropelado pela morte de um querido, seja pai, mãe, marido, mulher, filho, filha, amigo ou o que for. Como Fabrício faz questão de lembrar, por mais que a morte seja um absurdo afrontoso à lógica de humanidade e ao apego dos afetos, o luto que dela decorre não é uma doença, e a dor do buraco cavado pela ausência pode ser transformada em memória e, logo, em matéria de vida. Sem se arvorar a dar receitas de como suportar esse sentimento que pode ser o mais desesperador, Carpinejar toma seu tempo e, com calma afetuosa, nos conta casos. Ali está morte de sua sogra, que ele não chegou a conhecer pessoalmente, causada por uma leucemia galopante e duas outras histórias (arrepiantes e belas), nas quais a intuição joga papel importante.
Uma das abordagens mais irônicas e pertinentes do livro é a constatação que Carpinejar faz ao revelar a total falta de jeito das pessoas para tratar com os enlutados e com suas sensibilidades: "Gostaríamos que o enlutado derramasse suas lágrimas higienicamente no banheiro [...], sem incomodar a casa com sua incontinência de alma". Talvez seja esse um dos grandes lembretes do livro, o de que acompanhar os queridos em sua dor significa dar o ouvido para a escuta e o ombro para conter algum arroubo de emoção. Depois é só isso mesmo: depois.
* Escritora e jornalista brasileira, mestre em Teoria Literária e ministrante de oficinas literárias
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/cintia-moscovich/noticia/2023/12/a-dor-do-luto-significa-o-legado-de-uma-vida-clpzy9pa000200155379xq7sg.html
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