sábado, 2 de dezembro de 2023

Shehan Karunatilaka: "A personagem ser um burgher, com apelido português, fazia todo o sentido"

Por Leonídio Paulo Ferreira

"A personagem ser um burgher, com apelido português, fazia todo o sentido" 

O vencedor do Booker de 2022 tem um óbvio nome cingalês, mas o fotógrafo profissional de As Sete Luas de Maali Almeida também tem um apelido muito comum no país, apesar da origem ser portuguesa. Graças a ele pode ser a testemunha ideal da história trágica do país durante as três décadas de guerra civil

Para o leitor português o seu As Sete Luas de Maali Almeida tem imediatamente algo de muito familiar: o apelido português no título. Foi importante para si que a personagem principal fosse um burgher ou meio-burgher, um dos milhares de habitantes do Sri Lanka que reivindicam ter antepassados portugueses?
Sim, sabe que Almeida é um nome muito comum no Sri Lanka, e também existe uma famosa canção, que faz parte da música Baila e que penso seja baseada na música afro-portuguesa. A canção é "Lourenço de Almeida", que foi quem conquistou o Sri Lanka, o primeiro português a lá chegar. Portanto, esse nome é bastante comum, mas eu queria um personagem diferente. O pai dele é cingalês, a mãe é burgher e ele sabe falar tâmil. No Sri Lanka há várias minorias étnicas e estas divisões são desvalorizadas pelos políticos, mas há muitos nacionais de raça mista, muitas crianças mestiças cingalesas e tâmiles, assim como muitas que resultam da mistura de cingaleses com burghers. A minha personagem era um fotógrafo profissional e mestiço, portanto para que isso fosse credível ele não poderia ser apenas cingalês, uma vez que estava envolvido com os vários partidos. Ele também não se identificava como cingalês, por isso usava o nome Almeida, que é um nome burgher, sendo que os burghers são descendentes dos portugueses e dos holandeses. A verdade é que pensei muito nisso ao criar o personagem. Ser um burgher, com nome apelido português, fazia todo o sentido.

É mais credível que o personagem sendo um fotógrafo, capaz de contactar com a oposição comunista e com os separatistas tâmiles, seja um burgher, uma vez que são fruto de mestiçagem mas, ao mesmo tempo, fazem parte da elite, são próximos do poder cingalês?
Se eu lhe mostrar um burgher, um tâmil, um cingalês, um muçulmano não vai conseguir ver a diferença, são todos parecidos, parecem-se comigo, mas os seus nomes serão diferentes, eu sou Karunatilaka, eles terão nomes diversos. Os burghers não são políticos, o estereótipo diz que eles são pessoas de comer e de beber... eles gostam de beber um copo, gostam de festa, gostam de se divertir, mas não são ligados à política, ela não está no carácter burgher. Portanto, se o personagem fosse um tâmil não teria acesso a todas as fações, e é verdade que os muçulmanos são bastante neutros, mas ele sendo burgher não seria considerado uma ameaça por nenhum dos lados. Foi por isso que pensei nele assim, e ele também, porque o seu nome é Kabalana pois o seu pai é cingalês, mas ele decidiu adotar o nome português da mãe. Portanto, ele não é uma ameaça, porque se falar tâmil, o que acontece, os Tigres dão-lhe acesso, assim como o Exército do Sri Lanka, os marxistas, etc. Era importante para mim que ele fosse uma pessoa que tivesse contacto com todos os lados para que eu pudesse escrever sobre todos os diversos aspetos.

O seu livro é, de certo modo, um livro muito violento porque conta a história recente do Sri Lanka e toda a luta entre os separatistas tâmiles hindus e o governo, maioritariamente budista e de etnia cingalesa, mas também a luta entre o governo e a oposição comunista. Como é que essa violência afetou a sua infância, era algo distante de si ou fazia parte da vida quotidiana de toda a gente no Sri Lanka?
Foi algo que se normalizou. Em 1983 foi o início dos tumultos e eu tinha oito anos quando isso aconteceu, mas eu vivia em Colombo que estava numa espécie de isolamento. Nós tínhamos postos de controlo, bombas que rebentavam, assassinatos, mas não era lá que a guerra acontecia verdadeiramente. Foi assim que eu cresci, na normalização desses acontecimentos. Nós não sabíamos que a guerra iria acabar em 2009, pensávamos que a guerra continuaria para sempre, porque começou em 1983, houve um acordo de paz em 1989, que não durou. Houve muitos momentos de esperança, mas a guerra continuou sempre, fazia parte da paisagem. Eu penso que é isso que acontece às populações, por exemplo, os americanos atuais aceitam a ideia de que, mesmo vivendo numa grande cidade, um idiota qualquer pode aparecer com uma arma e matar os seus filhos na escola. É uma realidade que têm de aceitar, as armas estão lá. Portanto era essa a nossa realidade, vivíamos a nossa vida, mas sabíamos que poderia rebentar uma bomba no supermercado. Eu era uma criança e, mais tarde um adolescente, e era esse o pano de fundo, mas para ser verdadeiro, Colombo não era o pior sítio. Se eu tivesse crescido em Jaffna, teria tido uma infância muito mais atribulada e talvez não estivesse vivo para escrever romances, mas como vivia na bolha de Colombo... É por isso que Maali Almeida é um personagem interessante, é mais uma pessoa que cresceu na bolha de Colombo, mas escolheu ir para esses sítios perigosos e tirar fotografias. Foram várias as razões que o levaram a escolher fazer isso.

Como é que recorda as relações entre os cingaleses e os tâmiles, pelo menos em Colombo? No seu livro, um dos ministros é tâmil...
É essa a contradição. Eu penso que ainda hoje os problemas do Sri Lanka são problemas de classe e não de raça. Atualmente, em 2023, se o seu filho ou filha casar com um tâmil, um muçulmano, um estrangeiro, um branco, está tudo bem, mas se casar com o filho ou filha de um motorista já é um problema. Não acho que haja um racismo inerente como, digamos, na América, por exemplo. Nós vemos os tâmiles e os cingaleses a trabalharem juntos, a falarem a língua uns dos outros, sem problema. Também não acho que haja um conflito religiosos ou qualquer coisa do género, também vemos os muçulmanos a conviverem com outras religiões normalmente. Portanto, não penso que o povo do Sri Lanka seja inerentemente racista, mas quando eu cresci claro que as tensões estavam presentes. Eu frequentei uma turma cingalesa e os tâmiles iam para uma turma tâmil, agora os meus filhos aprendem três línguas, as crianças estão misturadas, mas quando eu era criança essa divisão existia. Eu lembro-me de quando jogávamos futebol e a bola saía e se perdia havia uma luta com a turma tâmil. Havia um tipo de comportamento que nós representávamos, mas não era que estivéssemos segregados, a não ser a nível de classe. Havia famílias tâmiles de classe média e famílias cingalesas de classe média, mas nós falávamos em inglês e interagíamos.

Lembro-me de que há quatro anos houve ataques terroristas, mas de origem diferente, estes foram de extremistas muçulmanos. Sei também que houve uma mudança de poder recentemente. Podemos dizer que o Sri Lanka é um país normal que deixou a guerra para trás?
Sem dúvida. Os ataques terroristas aconteceram nos anos de 1980, sobre os quais estou a escrever, na década de 1990 também, em 2002 houve um cessar-fogo e não houve nenhum ataque, mas eles recomeçaram em 2006 e 2009. Desde então não houve mais. O LTTE [Tigres de Libertação da Pátria Tâmil] foi esmagado e alguns dos membros da organização mais graduados até foram levados para o governo.

Foi uma forma de reconciliação?
Eu não iria tão longe.

Mas o governo deu uma oportunidade a alguns tâmiles?
Sim. Eles ganharam a guerra porque alguns tâmiles cederam e esses foram para o governo. Esse continuam a morar em mansões e a viverem bem. Muitos tâmiles foram reabilitados, mas muitos desapareceram. É essa a realidade. Penso que esse problema já não é uma questão, embora sempre que há eleições os políticos avisem que é preciso ter cuidado com os Tigres que ainda andam por aí, estão exilados em Londres, em Itália, na Austrália e tentam voltar ao poder. Portanto, essas ideias reaparecem, mas eu acho que não há qualquer fricção. Nós tivemos dez anos de paz desde 2009 e depois em 2019 tivemos os ataques da Páscoa. Há um documentário no Canal 4 britânico sobre isso e existem muitas teorias da conspiração. Uma das narrativas diz que foi uma conspiração estrangeira, mas eu não sei.

Não existe ainda uma versão final?
O que se passa é que nós nunca tivemos terrorismo radical islâmico e, de repente, há uma célula do Estado Islâmico que rebenta com igrejas e hotéis e que desaparece passado um mês... Deixa de haver islão radical... Há muitas teorias sobre a razão dos ataques e sobre quem beneficiava com eles.

Diz que não havia tradição de islamismo radical?
Além desse não. Agora, acho que é um país muito seguro, sem ameaças de terrorismo, mas é sempre possível.

Como é que foi a receção ao seu livro no Sri Lanka?
Foi grandemente positiva. Quando ganhou o Booker Prize em outubro do ano passado, estávamos no meio de uma crise económica, não havia petróleo, não havia gás. Portanto, ninguém leu o meu livro, não se vai comprar livros quando não há gás para cozinhar... mas toda a gente ficou feliz, é como quando o Sri Lanka ganha um jogo contra a Austrália no cricket. Foi uma grande vitória, ganhar este prémio importante, mas desde então já normalizou, já temos recursos e os livros já entram. Agora, as pessoas já o leram.

As pessoas olham para o livro como uma espécie de romance histórico ou leem-no mais como um livro policial? Tem reações diferentes?
Sim. Eu escrevi-o como um romance histórico e uma história policial. Pensei situá-lo nos anos 1980 para não me meter em complicações, mas encontro muitas pessoas que me dizem que sabem bem o que eu fiz, que o livro fala da atualidade, mas que eu finjo ser um romance histórico. Eu sei que isso é verdade, porque o livro fala sobre corrupção, políticos e sobre o que continua a acontecer hoje em dia. No geral acho que a receção foi bastante positiva, mas há sempre quem diga mal. Há umas poucas críticas que dizem que é uma proclamação contra o Sri Lanka; outros dizem que é assim que se ganham prémios no Ocidente, a retratar o país como um bando de selvagens que se matam uns aos outros... A minha defesa é dizer que este livro tem demónios, animais que falam, fantasmas, mas os factos da guerra não são inventados por mim. Todos os fantasmas deste livro são baseados em homicídios por resolver, assassinatos a mando do governo, vítimas da guerra, não são nada que eu tenha inventado. Foi aquilo que nós fizemos uns aos outros durante 30 anos, fizemos coisas horríveis uns aos outros. Mas, sim, é uma minoria que diz coisas como estas. Também dizem que o facto de o personagem principal ser gay é uma concessão ao Ocidente woke.

O passado é tabu?
Hoje não falamos de 1989, não falamos do passado, nem sequer nas escolas. Houve uma série de jovens líderes, nascidos na década de 1990 e no início da de 2000, que vieram ter comigo e agradeceram-me pelo livro, pois sabiam que tinha havido uma guerra antes de nascerem, mas os pais não falam sobre isso, na escola ninguém os ensina. Na escola aprendem sobre os antigos reis, sobre os colonizadores, os portugueses, os holandeses, os ingleses, mas ninguém lhes fala sobre os últimos 30 ou 40 anos. Eu digo-lhes que o meu livro não é um livro de História, é bastante superficial, é uma história estranha e de fantasmas. Há livros muito melhores e eu dou-lhes referências e digo-lhes para lerem sobre o tema, para irem à Wikipédia, para falarem sobre o assunto. Porque nós não o fazemos, fingimos que a guerra está no passado e que não é boa ideia revisitá-lo.

Um dos meus escritores favoritos é Salman Rushdie que, de certo modo, vem do mesmo contexto cultural, a Ásia do Sul. Para mim, Os Filhos da Meia-Noite, que aliás também ganhou o Booker Prize, tem pontos em comum com o seu livro. Concorda?
É um grande cumprimento que me faz. Penso que Os Filhos da Meia-Noite foi um livro que abriu portas para muitos escritores da Ásia do Sul. Quando eu era criança e jovem, na década de 1980, os escritores do Sri Lanka tentavam soar como os ingleses na maneira de escrever, tentavam soar como E. M. Forster ou Arthur Conan Doyle num inglês muito bom, mas não parecia verdadeiro. Salman Rushdie não soa como um inglês elegante, o som da língua é muito indiano, a história é muito indiana. Isso inspirou muitos de nós e penso que os resultados estão à vista nos escritores paquistaneses, indianos, do Sri Lanka, etc. Começámos a escrever com a nossa própria voz. É essa a diferença, não precisamos de parecer ingleses, temos de ser nós próprios, mesmo que a gramática não esteja certa, não há problema. Salman Rushdie foi sem dúvida uma grande influência, juntamente com muitos outros. O meu primeiro livro Chinaman, penso que ainda não saiu em português, é sobre um jogador de cricket e um jornalista desportivo bêbado. Eu sei que o mundo não quer saber de cricket, mas eu escrevi-o porque achei que era uma história muito do meu país e escrevi-o da forma como um bêbado do Sri Lanka falaria. Foi bastante libertador.

Houve uma primeira versão deste livro vencedor do Booker que os editores acharam ser demasiado complexa para os leitores. Para mim é um livro complexo, com muitas referências à realidade do Sri Lanka, até aos burghers. Surpreendeu-o o sucesso junto do público?
Sim. O primeiro livro foi sobre cricket e demorei muito tempo para escrever o meu segundo livro, cerca de sete anos. Quando o acabei, em 2020, dei-lhe o título "Conversas com os mortos", pois era sobre o fotógrafo de guerra morto, Maali Almeida, a conversar com os mortos, com as vítimas da guerra. A Índia ficou muito interessada em publicá-lo, recebi seis ofertas da Índia. Os indianos conhecem a nossa História e sabem sobre demónios, fantasmas e toda essa mitologia.

Teve sucesso na Índia?
O livro saiu lá em janeiro de 2020 e dois meses depois veio a pandemia. Depois tentei publicá-lo no Reino Unido, na Europa e na América. Toda a gente que o leu disse que o achava muito difícil para o público ocidental que poderia não se relacionar com aquilo, era muito complicado. Portanto, pensei que o livro só seria publicado na Índia. Aí falei com a Natania Jansz da Sort of Books, que tem maioritariamente literatura de viagens, criaram a série Rough Guide, mas eles foram editores verdadeiramente generosos. Quando eu estava a ficar desesperado com este livro e o mandei a Natania, disse-lhe que o meu agente tinha dito que não seria publicado fora da Índia e perguntei-lhe o que pensava do livro. Ela respondeu, passados alguns meses, que achava que tinha muito potencial, mas que precisava de muito trabalho e perguntou-me se eu estava disposto a fazê-lo. Eu disse que sim, pois queria publicar o livro. Demorámos dois anos nesse trabalho.

O novo título fez a diferença? É mais misterioso?
"Conversas com os Mortos" era o meu título, mas quando estávamos a editar concordámos em torná-lo mais apetecível para o leitor ocidental. Eu penso que se deve poder pegar num livro em qualquer lugar do mundo, não é preciso ter conhecimentos sobre o Sri Lanka, deve-se pegar nele e desfrutá-lo. Portanto fizemos isso e simplificámos a mitologia, os fantasmas, as regras das sete luas e acrescentámos um capítulo com explicações sobre as abreviaturas. Como tivemos bastante tempo até à publicação devido à pandemia fizemos muitas alterações. Estive dois anos a reescrever "Conversas com os Mortos", mas acho que foi um tempo bem gasto porque parece ter resultado. Mas sim, o título As Sete Luas de Maali Almeida foi ideia da editora, porque era um título mais apropriado para um romance exótico vindo do Oriente. De início não fiquei muito feliz, mas acabei por concordar e, obviamente, eles tinham razão.

Curiosamente, a guerra civil terminou com uma operação militar comandada pelo general Sarath Fonseka, que não é burgher mas tem apelido português...
Sim, ele não é burgher. Quando havia listas telefónicas, nomes como Silva, Fernando, Pereira, Dias, De Souza eram os nomes em maior número na lista em Colombo, mas não necessariamente de burghers.

Pode-se ser cingalês ou tâmile e usar um nome português?
São nomes mais cingaleses. O meu agente chama-se Fernando e é um cristão cingalês, assim como Pereira e Pires são nomes cingaleses.

O general Fonseka deixou uma boa imagem depois da guerra?
Fonseka era o líder do exército quando a guerra terminou em 2009, mas há muitas perguntas sobre como é que ele ganhou a guerra, sobre quantos civis foram sacrificados... e essas perguntas ainda não foram completamente respondidas. O general Fonseka ficou desavindo com quem governava na época e concorreu a presidente, mas não ganhou. Continua a ser uma força, continua presente e pode candidatar-se novamente à presidência.

Há um novo debate no Sri Lanka sobre a guerra devido ao seu livro?
Não sei se há um novo debate. O problema com o Sri Lanka é que nós esquecemos. Agora estamos concentrados na crise económica, é isso que está nas notícias, mas os jovens estão a ler o livro e a falar sobre ele e talvez isso seja positivo. Agora, nós não falamos sobre o passado, talvez seja por aí que os escritores de ficção possam entrar, porque nós tendemos a pensar que o passado tem coisas desagradáveis e que o melhor é esquecê-lo. É a forma do Sri Lanka lidar com as coisas, mas eu acho que não é eficaz, acho que temos de olhar para o passado, tentar compreender as coisas horríveis que fizemos uns aos outros para nos certificarmos que não voltam a acontecer. Portanto, não acho que o livro tenha provocado debates sobre a guerra mas, pelo menos, penso que os jovens o estão a ler e a falar sobre ele.

Fonte:  https://www.dn.pt/cultura/a-personagem-ser-um-burgher-com-apelido-portugues-fazia-todo-o-sentido-17131619.html

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