Por António Araújo*
Frei Fado, assim se chama o álbum com que o fadista Gonçalo Salgueiro (que, entre o mais, fez de Jesus Cristo Superestrela no musical homónimo de Filipe La Féria) pretendeu recentemente homenagear Frei Hermano da Câmara, também conhecido por Monge Cantor, o frade beneditino que, aos 89 anos, congrega e cumpre em si as três principais características do sacrobetismo: aristocracia, fé e fado.
Eia lá, no entanto e todavia, porque o seu pai detestava o fado, a que chamava "o enfado", como teve ocasião de confessar ao Malato o filho de D. Vasco Manuel José de Figueiredo Cabral da Câmara e de Maria do Carmo de Magalhães e Meneses Villar, à conta dos quais Frei Hermano vem a ser, pelo lado paterno, neto do 3.º conde de Belmonte e, por via materna, neto do 3.º conde de Sobral e, também por esta via, ou veia, sobrinho-bisneto do 1.º conde de Alvelos e trineto 2.º visconde de Azenha e 1.º conde de Azenha. Na página do Museu do Fado, descrevem-no também como tetraneto do rei D. João VI e aparentado com outras vozes de antiga nobreza, como Maria Teresa de Noronha, Vicente da Câmara, Luísa e Salvador Sobral e, como ninguém é perfeito, com Nuno da Câmara Pereira, famoso fadista maçon e engenheiro ambiental pela Universidade Lusófona (licenciatura anulada, caso nos tribunais) que, em 2022, trocou os apelidos Figueiredo Cabral pelos mais potentes Bragança e Bourbon, e revelou, do mesmo passo, possuir uma segunda família e até um filho-bebé, o pequeno Vasco António.
Talvez a ascendência azul explique aqueles ademanes todos com que Frei Hermano se dirige à plebe, e que ficaram patentes no citado programa do Malato, afectação que, convenhamos, é típica dos grandes divos do palco, como ele. A coisa, no seu caso, é agravada pelo suplemento místico, pela pulsão transcendente que o leva a proclamar-se, não sem pontinha de vanitas, como um "Ungido do Senhor" e a dizer a uma amiga casada que, enquanto ela escolhera por companheiro uma criatura humana, ele apaixonara-se pelo próprio Criador do Universo. "Para mim, não me servia uma criatura, por muito bela que fosse, mas que um dia havia de morrer. Essa decepção não a vou ter, porque me apaixonei por Cristo, que está vivo e bem vivo", escreve Frei Hermano na sua autobiografia, na qual não hesita em comparar-se amiúde ao Nazareno, designadamente quando fala das reguadas que apanhou no colégio, para onde foi aos 10 anos, e recorda que também Cristo foi flagelado; ou, logo a seguir, quando se lembra que um dia a professora o colocou de castigo, com um papel a dizer "Burro" ao pescoço, sublinhando que também Jesus, quando O pregaram na Cruz, teve de suportar o cartaz "Jesus Nazareno, Rei dos Judeus" (cf. Frei Hermano da Câmara. O Monge Cantor, Neptuno, 2000).
Mesmo que não gostemos do estilo e da pose, apreciemos o homem, o ser humano Hermano, que nos merece inquestionável respeito, e até admiração.
Para a sua vocação sacerdotal, há quem aponte, porém, razões mais prosaicas e terrenas, até do foro amoroso. Ouçamos o depoimento abalizado de uma outra diva fadista, Maria Alice de Carvalho Monteiro Custódio, vulgo Lili Caneças, que garante que o conheceu no Estoril na década de 1950: "Lembro-me de o ver no Clube de Ténis do Estoril, dava-me com as irmãs mais novas, e sei que era costume cantar em festas particulares. Era muito bonito, saía bastante e quando entrou para um convento aquilo foi muito comentado - dizia-se que sofrera um grande desgosto. Para nós, aquela ideia romântica de alguém se refugiar num convento era inspiradora", observa esta representante da nobre estirpe dos Caneças (e tia-bisavó de Paris Hilton). Lili confessa que a decisão radical de Hermano Vasco foi "uma surpresa para todos", algo que, porém, não é confirmado por João Braga, o qual recorda que já em jovem o amigo era um enormíssimo místico, que rezava muitíssimo, mesmo antes de cantar ao vivo. Celeste Rodrigues, de seu lado, recorda que o futuro monge era assíduo nas casas de fado de Lisboa, que frequentava na companhia do conde de Sobral, e que uma noite, quando conversavam no Campo de Santana, ele lhe confessou que ia para um retiro, que pensava seguir a carreira de frade, e, depois disso, pouco mais falaram (cf. Correio da Manhã, de 23/9/2012).
O próprio confirma, aliás, que, ao entrar no convento, "deixou alguém cá fora", mas que a vocação falou mais forte: "Não posso dizer quem, mas posso dizer que me custou muito, como a qualquer rapaz que anda num meio com raparigas lindíssimas. Nós, religiosos, também nos apaixonamos. Isso é que as pessoas não entendem. Quando um rapaz decide ir para a vida religiosa e abdica do casamento, do amor, não é por não ter atracção pelas raparigas. É porque a vocação é algo sobrenatural, que não se pode explicar, e há a obrigação de a seguir" (Correio da Manhã, cit.).
Na Quinta da Alagoa, em Carcavelos, propriedade da sua família, entretanto cedida à Câmara de Cascais, que dela pouco cuidou e que hoje se encontra em miserável estado, alvo de sucessivas vandalizações ("E tudo o vento levou", diz ele, pesaroso), Hermano Vasco tinha um retiro fadista, com guitarras e cartazes de toiradas, e o próprio recorda que era frequentador regular das casas de canto da capital, como A Toca, de Carlos Ramos, A Tipóia, O Embuçado ou a Parreirinha. Não é sem emoção, e talvez algum pedantismo, que recorda a sua jeunesse dorée, num tempo em que as classes sociais pouco ou nada se mesclavam: "Naquela época havia festas em casas de famílias, algumas só para dança, com orquestra do Shegundo Gallarza. Lembro-me de que a minha primeira festa de dança, em que ia excitadíssimo, foi no Estoril, tinha 15 anos. Convivia-se entre famílias, tudo gente conhecida. E cresci com amigos do Estoril, Cascais e Sintra. Havia os bailes em que as meninas debutavam de branco e aí passava-se imensa coisa. Agora é tudo nas discotecas, há menos distinção, mais mistura."
O pai, que adivinhamos tirano, não o deixou estudar música, para não tirar tempo aos estudos, e, de igual modo, proibiu-lhe a esgrima, só permitindo exercícios de ginástica respiratória. Rezava-se o terço em família e Frei Hermano recorda com emoção o dia 13 de Maio de 1946, quando foi pela primeira vez a Fátima na companhia dos pais e aí conheceu o santo Padre Cruz, que lhe deu uma pagela do Espírito Santo, prenúncio de um caminho novo.
Apesar disso, Hermano guardou para si, durante um ano, o chamamento da vida religiosa, que só comunicou aos pais um mês antes de entrar para o convento, em 1961. Tinha então 27 anos, foi uma surpresa imensa: "Ninguém esperava que o Quico fosse para frade", recorda um próximo. Na sua autobiografia, Frei Hermano recorda que, por alturas de 1968, percorreu diversos conventos de França, terra onde se encontrava quando eclodiu o Maio de Paris, movimento que, em conjunto com os ventos renovadores do Concílio Ecuménico do Vaticano II, seria decisivo para a sua entrada no mundo da música. Tratava-se, de resto, de um domínio que já conhecia, podendo dizer-se, sem receio de exagero, que a vocação do fado precedeu a do sacerdócio. Em 1955, gravara o primeiro disco, só comercializado em 1959, com a participação de Fontes Rocha, à guitarra, e de Joaquim do Vale e de Joel Pina, à viola. Chamava-se Sunset and Sentiment, e dele constava já o êxito "Colchetes d"Oiro". Em 1969, deu o seu primeiro recital, no Teatro Tivoli, em Lisboa, e, em 1972, recebeu o diaconado das mãos de D. António Ferreira Gomes, em cerimónia realizada na Sé Catedral do Porto. Também das mãos do bispo da Invicta, foi ordenado sacerdote em 1973, o ano em que editou o disco Fado da Despedida e que gravou, com o Quarteto 1111, o álbum Bruma Azul do Desejado, no qual participou o Coro da Escola Claustral de Singeverga, mosteiro onde Frei Hermano esteve vários anos, até fundar a sua própria comunidade, os Apóstolos de Santa Maria, dedicada ao apostolado através da música e cujos estatutos foram aprovados em 1990 pelo arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira.
Vemo-lo de regresso aos palcos em 1977, no Teatro São Luiz, acompanhado pela Orquestra da Radiodifusão. No ano seguinte, lança o duplo álbum O Nazareno, um sucesso absoluto, que esgotou no próprio dia, pese ser o disco mais caro do mercado. Com produção de Mário Martins, O Nazareno inspirava-se nos Evangelhos e tinha Vítor de Sousa como narrador, além de um elenco de estrelas candentes: como anjo, Tomaz Cabral da Câmara, sobrinho de Frei Hermano (e, também como anjo, Carlos Quintas); como Virgem Maria, Luísa Vilarinho; como noivo, António Pinto Basto; como noiva, Teresa Siqueira; como Maria Madalena, Amália Rodrigues; como Judas, Horácio Santos; no papel da samaritana, Mara Abrantes, enquanto Mário Sargedas se desmultiplicava como Pedro, como João, como Pilatos e como o bom e o mau ladrão. No lugar de Cristo, Frei Hermano, obviamente.
Hoje, à distância de tantos anos - 45, sejamos precisos -, é difícil alcançar o impacto que O Nazareno teve, na altura, sobretudo porque a partir dele foram feitos cinco retumbantes espectáculos no Coliseu dos Recreios de Lisboa, com lotações esgotadas, vendas na candonga e até bilhetes falsificados, como então era costume nos jogos da bola. "Tal como Jesus foi conduzido pelo espírito do mal ao pináculo do Templo para ser tentado, também eu fui levado ao pináculo das tentações, aos píncaros da fama", escreve Frei Hermano, sempre irmanado com Cristo.
Tratou-se, como é óbvio, de uma versão lusitana e mais vincadamente eclesial do celebérrimo Jesus Christ Superstar, que Andrew Lloyd Weber e Tim Rice levaram aos palcos da Broadway em 1971 e que seria adaptado ao cinema dois anos depois, pela mão do realizador Norman Jewison, que logo a seguir assinará outro pavor dos Anos 70, o filme Rollerball. Na mesma linha, Franco Zefirelli lançou em 1977 o não menos célebre Jesus de Nazaré, com guião de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica, um elenco de estrelas (Claudia Cardinale como adúltera, Ernest Borgnine como centurião romano, Laurence Olivier como Nicodemo, Peter Ustinov como Herodes, o Grande, Christopher Plummer como Herodes Antipas, etc., etc.) e cenários que mais tarde seriam usados, imagine-se, para A Vida de Brian, dos Monthy Python.
Para mim, não me servia uma criatura por muito bela que fosse, mas que um dia havia de morrer. Essa decepção não a vou ter, porque me apaixonei por Cristo, que está vivo e bem vivo", escreve Frei Hermano na sua autobiografia.
O Nazareno, que ainda hoje Frei Hermano reconhece ser a sua opus magnum, inseria-se nesse movimento de popularização da mensagem evangélica através dos grandes meios de comunicação de massas, ao qual não foi alheio o spiritual awakening dos Anos 1960 e, no caso do catolicismo, a abertura trazida pelo Vaticano II. Não por acaso, o monge cantor tem sublinhado sempre, vezes sem conta, que, no seu caso, a música não é uma carreira paralela ou divergente da vita contemplativa que decidiu abraçar, antes uma forma de apostolado e de difusão da Palavra do Senhor e, portanto, um caminho coincidente com a via do sacerdócio e da fé. Com isso, Frei Hermano visou naturalmente calar as vozes mais rigoristas, que consideravam impróprio tratar a Paixão de Cristo como um número de Vaudeville, por vezes raiando o kitsch, ou pior do que isso. É certo que Frei Hermano jamais chegou aos extremos de foleirismo de um Roberto Carlos (com o maravilhoso A Montanha, de 1971), mas não andou longe e até prenunciou o registo de um sacerdote-estrela brasileiro que chegou a conhecer, o Padre Marcelo Rossi, múltiplas vezes platinado pelos seus discos de música pop religiosa. Quando olhamos para algumas imagens antigas dos espectáculos de Frei Hermano (numa delas, vemo-lo prantado numa cruz, de túnica branca e um coro atrás), quando vemos as capas dos seus discos, a sua pose de sonhador místico de olhos postados no infinito, não podemos deixar de questionar o bom gosto de tudo aquilo, mesmo reconhecendo que era esse o ar do tempo, de uma época muito peculiar, povoada de pavores. Com o passar dos anos, porém, Hermano foi-se tornando menos exuberante e feérico nas suas aparições, ganhou mais contenção e distância, quiçá alguma altivez, aprimorou o layout dos discos e dos concertos, procedeu a um rearranjo arquitectónico do cabelo, que transitou do atijelado surfista para um armado mais imponente, ao estilo brutalista. Ainda assim, não se coibiu de misturar nas suas actuações, por vezes em combinação explosiva, a banda sonora da Guerra das Estrelas, Dino Meira, can-can, música de circo e cantos gregorianos.
Em 1983, inspirado pelo atentado em Fátima contra João Paulo II, lançou Totus Tuus - Uma Serenata Mística a Nossa Senhora, a que se seguiram discos como Missa Portuguesa, de 1994, Um Astro de Luz, de 1997, Vivo d'Arte, Vivo d'Amor, de 2003, ou Cantar É Rezar, de 2006, além de compilações e antologias que permitem perceber que, além de temas religiosos, Frei Hermano fez várias incursões pelo profano, nomeadamente de poetas portugueses como Miguel Torga, António Boto ou Pedro Homem de Melo, com destaque, quanto a este último, de O Rapaz da Camisola Verde, passível de várias leituras.
Após várias tournées em Portugal e no circuito da emigração, a sua última grande actuação aconteceu no final de 2014, num espectáculo baseado na obra O Nazareno, com encenação de Carlos Avilez, a partir do qual foram realizados três concertos: no Coliseu do Porto, no Coliseu Micaelense de Ponta Delgada e Campo Pequeno, em Lisboa.
Hoje com 89 anos, Frei Hermano da Câmara vive praticamente retirado. Na sua autobiografia, curiosamente, não transcreve apenas os comentários favoráveis à sua obra, mas também as críticas que lhe fizeram, por vezes bastante ácidas (ex., Desafinação Bíblica, nas páginas do Público, de 15/3/1992), e, com tolerância e desarmante humildade, diz acolher tanto os louvores como os reparos. Mesmo que não gostemos do estilo e da pose, apreciemos o homem, o ser humano Hermano, que nos merece inquestionável respeito, e até admiração.
*Prova de vida (25) faz parte de uma série de perfis
*Historiador.
Fonte: https://www.dn.pt/cultura/frei-hermano-da-camara-o-monge-cantor-17551932.html
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