sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O futurista Gerd Leonhard desenha “o bom futuro”


O indiscutível fã de Star Trek, Gerd Leonhard, traçou um plano para a Humanidade: “O Bom Futuro” concentra-se em 4 Ps – Pessoas, Planeta, Propósito e Prosperidade, e quer virar o Mundo do avesso. Renuncia ao otimismo tecnológico a favor do humanismo progressista. Acredita num Mundo em união, onde todos os continentes prosperam e têm uma direção comum. Com a Tecnologia e a Ciência a favor da totalidade da população na Terra, um a um, os 8 mil milhões de pessoas. E vê nas novas gerações a salvação do Planeta. 

Gerd Leonhard traz boas notícias e muita fé na Humanidade. A sua visão é de um Humanista perante um Mundo multipolar, concentrado numa protopia, e Gerd está convicto de que um novo Mundo está a chegar. Antes que seja tarde, é preciso definir uma direção, uma nova teoria económica, uma nova bolsa de mercados, um Governo global e criar um Conselho composto por pessoas esclarecidas e sábias de todos os cantos do Mundo. «E não me refiro a CEOs ou políticos, precisamos de mais Sócrates tal como na Grécia Antiga», esclarece. Gerd estudou Teologia e Ciências Sociais. Foi músico de rock, compositor, ativista dos Verdes e empreendedor. É autor de vários livros e um dos futuristas mais requisitados sobre a era digital.  

Porque é tão importante o futuro, agora mais do que nunca?

A grande questão sobre o futuro hoje é que já não é sobre amanhã. O futuro já chegou, temos máquinas com quem podemos falar, temos computadores com superpoderes, carros automatizados. Quando falávamos sobre o futuro há 10 anos, debruçávamo-nos na ficção científica. Costumo dizer que a ficção científica se transformou em factos científicos. É muito importante pensar no futuro como algo que nós construímos e não como uma coisa que apenas acontece.  

Este é o momento da História em que muitas das decisões que estão a ser tomadas vão ter um impacto muito maior no nosso futuro.  

Tal como nos anos 60 com a bomba nuclear, as novas armas e os acordos de polarização, agora temos de lidar com as máquinas inteligentes, com as alterações climáticas, a automação, a Europa e a Rússia. É um momento na História em que a curva pode subir e podemos ter um futuro muito melhor, ou a curva decair por todas as más decisões que continuamos a tomar.

Está a dizer que o futuro já está predeterminado?  

Há situações que não controlamos, como a queda de um meteorito ou as pandemias, embora agora já estejamos mais bem preparados.  

Temos controlo em 98% das situações futuras; podemos mudar as alterações climáticas e podemos trabalhar no futuro do Trabalho. Na maioria das situações, podemos fazer alguma coisa.  

Temos a Ciência e a Tecnologia, mas tomamos as decisões erradas, usamo-las no que não era suposto. Não investimos em coisas sustentáveis, pomos dinheiro em mais gás de petróleo liquefeito (GPL), também não parecemos estar na mesma página sobre o que queremos no futuro. 

Mas há esperança? Está otimista? 

Sim, estou esperançoso. A boa coisa do futuro é que temos toda a Tecnologia e a Ciência de que precisamos, e inventamos coisas todos os dias. Se olharmos para as invenções de tudo o que precisamos sobre energia solar é incrível. Nós realmente conseguimos resolver este problema. Mas também temos a incapacidade de executar a política certa.  

Estou muito esperançoso com as novas gerações, dos 22 anos aos 45 anos, estou a contar com essa geração para fazer a diferença.  

Temos de mudar o nosso modelo de negócio do Mundo, até agora tem sido o lucro e o crescimento, e isto está a matar-nos. Basicamente, se continuarmos desta forma vamos manter os problemas climáticos e a IA fora do controlo. Sou demasiado otimista, mas acho que precisamos de uma terapia de choque, o tempo para nos sentarmos e falarmos do que faria sentido já terminou. Se não tomarmos uma atitude nos próximos 10 anos para a executarmos de facto, as coisas vão ficar muito complicadas e cada vez mais difíceis de alterar. 

O que podemos fazer para construir “O Bom Futuro”? 

Trabalho neste tópico “O Bom Futuro” há quase cinco anos, já antes da COVID, e acho que a pergunta não é tanto o que podemos fazer. Nós podemos fazer muitas coisas, em termos de Ciência; posso conectar o meu cérebro à Internet, posso ir dormir e acordar de um congelamento profundo daqui a 100 anos. Em 2030, vou conseguir fazer coisas semelhantes ao Star Trek, como ter energia ilimitada da fusão nuclear, vamos conseguir provavelmente mudar o genoma humano para evitar cancro. Mas precisamos de definir um propósito, uma direção, o que queremos alcançar. Queremos simplesmente mais dinheiro, ou queremos focar-nos no Planeta, na felicidade das Pessoas, num Propósito e também na Prosperidade.  

O que está a acontecer é que a parte Sul do Globo está a tomar todas as decisões. Daqui a 27 anos, 40% da população global vão estar concentradas em África, porque há cada vez mais bebés. O Brasil, a Índia, todos estes países vão chegar ao poder. O nosso Mundo está a mudar por completo. E se não envolvemos a parte Sul não vamos conseguir resolver os problemas. Basicamente, acho que “O Bom Futuro” é totalmente possível, mas temos de nos sentar todos e pensar em conjunto num Governo global e pô-lo em prática.

Essa mudança acontecerá seguindo o mote: Pessoas, Planeta, Propósito e Prosperidade?  

Este tópico é como um plano de negócios. O atual é muito simples: fazer mais dinheiro, aumentar o PIB; na sua maioria são os países desenvolvidos quem estão a ganhar. Mas temos de mudar o modelo e concentrar-nos nas pessoas, na automação, no trabalho, na felicidade, na igualdade, temos de pensar ainda no Planeta, em evitar o turismo em demasia, em devolver energia.  

Temos de ter um propósito, o que significa pensar no que queremos. O que está a acontecer num futuro próximo é que não vamos ter este conceito de trabalho durante 12 horas por dia, isto vai mudar.  

E, finalmente, temos de ter prosperidade, porque os seres humanos estão sempre a crescer, temos crianças, precisamos de comer, viajar. Não crescer não é possível. Quando olhamos para a ONU vemos que tenta há muito tempo a agenda ESG [Ambiente, Social e Governança Empresarial], mas eles não têm poder para decidir. Estão num sítio difícil.  

O Mundo velho está a morrer, o negócio habitual já morreu, não conseguimos continuar como antes, e o novo Mundo está a ser construído, ainda não chegou e isto está a acontecer devagar. Estamos num local de sofrimento a assistir, este novo Mundo tem de ser criado. 

Vê grandes mudanças entre 2021 – o lançamento oficial do projeto “O Bom Futuro” – e agora? 

Sim, não tivemos muita sorte. Porque tivemos a pandemia de COVID que fez com que a geração mais nova tivesse de esperar e, depois, tivemos dois conflitos, a Rússia e a Ucrânia, e agora Israel, Palestina e o Hamas. O progresso está em modo de espera, porque há muitas coisas a sugarem a energia.  

Por outro lado, estamos num ponto em que podemos dizer que primeiro se piora para a seguir se melhorar. Somos forçados a agir, não podemos ficar os mesmos. Muitas coisas que estávamos habituados a ignorar, como a Palestina, Israel e o Hamas – um conflito de 70 anos, estão a aparecer todas juntas e a forçar-nos a agir.  

Tal como nos casais que têm muitos conflitos, mas não falam sobre isso, e torna-se maior e maior e maior, até que mais cedo ou mais tarde se vão divorciar ou começam a fazer terapia. Os problemas estão a aumentar e forçam-nos a agir. Acho que isto é uma coisa boa, mas é penosa. As portas não estão fechadas para a Humanidade. É um momento doloroso, apercebemo-nos de que não podemos dizer que fazemos isto mais tarde.

Mas quem é que está encarregado de o fazer? 

Todos. Penso que se olharmos para o lado mais simples de “O Bom Futuro” são coisas como a Energia, a Alimentação, as Crianças, os Direitos Civis, o não morrermos, não termos fome, estes são objetivos muito simples. Numa camada seguinte, temos a felicidade, a organização própria, o progresso, a espiritualidade e isto é mais difícil de definir. Mas se definirmos “O Bom Futuro” como não morrer, termos trabalho, podermos evoluir e termos direitos, quem está encarregado desse “Bom Futuro”, em última instância, somos nós.  

Podemos fazer coisas locais, mas temos tópicos globais que só são concretizados em colaboração. Mesmo que alcancemos na Europa emissões de CO2 zero (net), se o Brasil, a Índia e África não vierem connosco, vamos mesmo assim todos morrer.  

A primeira coisa é que as decisões mundiais têm de incluir um Conselho Global, temos isso com a ONU, mas não lhe demos a devida autoridade e tornou-se uma organização muito burocrática. António Guterres é realmente uma boa pessoa, fala a verdade, é um bom líder, mas não tem poder.  

Por isso, devíamos ter um Conselho de pessoas esclarecidas e sábias, e não me refiro a CEOs ou políticos, tal como na Grécia Antiga, precisamos de mais Sócrates. E são muito poucos, incluiria o escritor brasileiro Paulo Coelho; o historiador americano Thomas Kidd, ou o economista francês Jacques Attali, e não seriam apenas homens, também mulheres. Só pessoas que não fariam mais nada do que pensar sobre decisões com – plicadas. É claro que se não tomarmos uma posição radical, que construa uma nova indústria, verde, vamos entrar num ponto em que metade do Planeta vai morrer e estamos a falar daqui a 30 anos, ou seja, estamos a falar dos nossos filhos. Isto são coisas urgentes! 

Já há vários Conselhos globais. Como é que criamos algo que não seja dedicado e concentrado nos mais poderosos? 

Temos esse problema. Como no World Economic Forum, é o trabalho dos líderes fazerem negócios e não melhorarem o Mundo. Isto é o trabalho primário dos negócios, alcançar prosperidade de forma progressiva e não resolver os problemas sociais e culturais. Quando temos as pessoas dos negócios a mandar só vamos alcançar tópicos comerciais, precisamos de pessoas além dos negócios. E o mesmo se passa com os políticos, eles nunca tomarão decisões dramáticas, porque precisam dos votos das pessoas. Não vemos a liderança a caminhar para “O Bom Futuro” e tal como a Greta disse: “Os políticos não vão salvar o Mundo”. Temos de começar pelas pessoas e eles juntar-se-ão depois, porque querem os votos e os negócios vêm logo a seguir.  

Temos de exigir diferentes comportamentos, pedir novas motivações e produtos diferentes. E isto já acontece. Vemos as gerações mais novas a querer em carros que não poluam, a interessarem-se por turismo responsável, por dinheiro digital, a quererem mudar o Mundo… E estamos a assistir inclusivamente aos jovens na Europa a não quererem ter filhos porque o Mundo não está bom. Vemos as pessoas com muito pouca esperança.  

Portanto, proponho no meu livro [Tecnologia versus Humanidade, da editora Gradiva], que já tem sete anos, mas parece que foi escrito ontem 

Devíamos ter uma história diferente sobre o futuro, uma nova narrativa que diga que o futuro é bom, só precisamos de tomar as decisões certas hoje, nós temos todo o poder de que precisamos.  

O Capitalismo encaixa nesse futuro? 

Temos de dizer adeus a todas essas velhas palavras. Capitalismo, Comunismo, Socialismo, isso faz parte da História. O que precisamos é de uma lógica económica que se encaixe no futuro e não no passado. Socialismo e Comunismo são ideias úteis, mas fazem fit com o futuro? Capitalismo e o mercado livre criam um bom futuro? É seguro dizer que o antiquado Capitalismo tradicional criou em tempos um bom futuro por um determinado tempo e depois colapsou. Mas o Capitalismo não resolve as alterações climáticas, as desigualdades, nem a IA, porque está preocupado com o propósito do mercado em primeira instância. O princípio de um mercado livre é bom, mas temos de ter mais sabedoria para tomar as decisões certas, que não estejam condicionadas pela simples curva do progresso, de mais dinheiro ou das maiores bolsas de mercado. Al Gore tinha uma expressão, “Capitalismo Sustentável”, o que acho que faz muito sentido, mas não a devemos usar mais. Devemos ter uma Economia baseada nas Pessoas, Planeta, Propósito e Prosperidade, com componentes do Capitalismo e do Socialismo.  

Não faz sentido estarmos a orquestrar e a focar toda a nossa energia no aumento da riqueza de apenas 10% dos mais ricos do Mundo, é isto que está a acontecer, e os restantes 90% estão na mesma ou a verem diminuídas as suas riquezas e pertences. 

Precisamos de um novo Milton Friedman e de uma nova teoria económica. O grande problema de hoje é que cada país tem uma bolsa de mercado baseada numa teoria de há 20 anos. Temos empresas a fazer coisas realmente más, mas a serem altamente valiosas, isto não faz sentido! A empresa mais poderosa do Mundo é uma árabe de petróleo e a segunda a Apple. Devíamos virar isto ao contrário e ter empresas que preenchessem todas as quatro caixas e criarmos uma bolsa de valores. Tenho estado a discutir isso com pessoas na Europa e isto pode ser uma boa ideia para Portugal, uma nova bolsa como a Nasdaq, que seria a Susdaq, apenas com empresas que se preocupam com as Pessoas, Planeta, Propósito e Prosperidade. É muito simples: enquanto não nos preocuparmos com a Economia tudo se mantém difícil. Talvez tenhamos apenas mais 10 ou 20 anos para descobrir a maneira certa de fazer isto. 

A Humanidade está a esgotar o seu tempo? 

Diria que não. Estamos naquele ponto que não nos podemos dar ao luxo de sentar e esperar, porque as alterações climáticas são muito urgentes, a forma como devemos lidar com a IA também, porque mudará tudo e há aqui um problema de controlo. 

A forma como lidamos com os conflitos também. Este Mundo já não vive na Guerra Fria, apenas os americanos e os soviéticos. Este Mundo é multipolar, é a América, a China, a Europa, a Índia, o Brasil, a Rússia e, mais cedo ou mais tarde, África. Lidamos com um Mundo que tem muitas peças que se movimentam e o que temos de fazer é descobrir qual o objetivo comum aos 8 mil milhões para caminharmos para um bom futuro. 

Há uma certa luta para nos estarmos sempre a superar. Onde é que agora nos devemos concentrar? 

Primeiro temos de nos focar na pergunta: Como devemos usar a Ciência e a Tecnologia para fazer as nossas vidas mais sustentáveis? E como resolvemos os nossos grandes problemas? Se usarmos Tecnologia podemos tornar tudo verde e sustentável. Em Portugal há grandes progressos. Como transformamos tudo para ser circular e sustentável? Quais as políticas de que precisamos para tornar algo que seja bom, em geral, justo com as pessoas e o Planeta e que crie propósito e faça com que as pessoas se deem?  

O novo Mundo é fundamentalmente diferente, não é uma extensão do antigo Mundo.  

Por exemplo, se olharmos para o Trabalho é possível que tenhamos apenas de trabalhar três horas pelo mesmo dinheiro, porque temos tecnologia espetacular ao nosso dispor, e assim podemos fazer muitas outras coisas, podemos doar o nosso tempo a combater as alterações climáticas, a escrever um livro, a ser pais, ou o que nos apetecer. Até agora a nossa vida é maioritariamente sobre trabalho, mas isto está a acabar. Isto muda por completo a nossa sociedade. 

E isso é possível ou poderá não passar de uma utopia?

Lemos sobre utopias e não passam de paraísos impossíveis. Isto não vai acontecer, porque a vida nunca será apenas um paraíso. Também vemos nos filmes distopias, como a série Black Mirror, ou o filme Don’t Look Up, independentemente de tudo há sempre um final catastrófico. Mas há uma palavra melhor, a protopia, do Futurista Kevin Kelly, significa que gradualmente melhoramos as coisas, passo por passo até chegarmos a um bom futuro. E isto é mais prático, no sentido de olharmos e querermos criar em conjunto. 

Está a pintar um quadro humanista.  

Não temos grande escolha. Temos a hipótese de nos tornarmos mais tecnológicos e estarmos submersos em tecnologia, tornando-nos super-humanos, fazendo uso do virtual, da IA, da Engenharia Genética. Os nossos filhos vão ser metade humanos metade robots. Isto não é teoria, é possível.  

Ou temos a hipótese de mudar a nossa Economia e construir algo completamente diferente. Se tudo é digital, nós não somos mais humanos, e qual é o objetivo? Para mim não faz sentido tornar-me numa máquina só para ter mais dinheiro, quando perco tudo o resto. Acho que é por isso que o meu livro é tão popular em Portugal, porque há muitos humanistas.

Esta entrevista foi publicada na edição de inverno da revista Líder, que tem como tema The Touch of the Future. Subscreva a Líder aqui. 

TitiAna Amorim Barroso,
Coordenação Editorial


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