Em obra que rebate críticas de livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, psicanalista defende eficácia da prática, combate generalizações e convida colegas a se abrirem ao diálogo científico
ENTREVISTA COM
Christian DunkerPsicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USPApós um caloroso debate sobre a eficácia da psicanálise tomar as redes sociais em julho, por causa do lançamento de livro da microbiologista Natalia Pasternak e do jornalista Carlos Orsi sobre pseudociências, o tema volta à tona na mais nova obra dos psicanalistas Christian Dunker e Gilson Iannini: Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência.
Em entrevista ao Estadão, Dunker, que também é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), diz que a publicação, lançada na última semana, tem como objetivo ser um livro-resposta às críticas de Pasternak e Orsi, mas também convidar à reflexão os psicanalistas que resistem à evolução e ao diálogo científico. “É um livro que começa com uma resposta a um interlocutor específico, mas vai se desdobrando numa resposta também aos psicanalistas que permaneceram muito fechados, pouco responsivos às críticas que a gente foi recebendo, tomando atitudes muito reativas que são contrárias ao espírito da ciência, de debater argumentos, trazer evidências, discutir métodos”, afirma.
Contrapondo o argumento de que a psicanálise é pseudociência, Dunker diz que um dos principais pilares do livro é defender a ciência de qualidade. “Não queremos ciência mal feita, feita às pressas, desatualizada. Queremos ciência de mais qualidade, que possa discutir, acolher e a gente tem que estar à altura para participar do debate contemporâneo, então é um convite para mudar a cultura entre os psicanalistas”.
Na entrevista, ele aborda ainda os desafios metodológicos em validar a psicanálise dentro dos padrões científicos convencionais, destacando a complexidade de medir eficácia em psicoterapias. Dunker critica a visão simplista de que a psicanálise não possui base empírica, citando pesquisas que demonstram sua eficácia e defendendo a necessidade de um entendimento menos restrito sobre o que constitui ciência e evidência científica.
Procurados para comentar as críticas aos argumentos de seu livro, Pasternak e Orsi informaram, por meio de sua assessoria de imprensa, que não iriam comentar por considerar que seu posicionamento sobre a psicanálise já foi extensivamente debatido nos últimos meses por ocasião do lançamento do livro Que Bobagem!, que, na visão deles, contribuiu para que a discussão sobre a legitimidade da psicanálise fosse colocada em evidência no Brasil pela primeira vez.
Na nota, a assessoria diz ainda que “eventuais desdobramentos, como o lançamento deste novo livro, são um reflexo desse fato e uma boa notícia, na medida em que confirmam que os pontos levantados em Que Bobagem! são relevantes e merecem ser debatidos”.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Dunker.
Você e o Gilson Iannini dizem que esse é um livro-resposta. Para quem é essa resposta? Poderia explicar a proposta da obra?
Ele é um livro-resposta ao trabalho que foi publicado neste ano pela Natalia Pasternak e pelo Carlos Orsi chamado Que Bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. Ali, eles enumeram uma série de saberes, de práticas que seriam então alvo dessa crítica e entre elas está a psicanálise. A gente fez um livro de resposta a esse trabalho da Natalia e do Orsi nos concentrando no capítulo sobre psicanálise e mostrando como, no fundo, tem ali uma série de críticas que são desatualizadas, algumas equivocadas, outras que assumem compromissos de entendimento sobre o que é ciência e o que é saúde que não são exatamente consensuais.
É, sobretudo, um livro em que a gente busca resgatar a estrutura do diálogo e do debate, mesmo que seja um debate intenso, com teses opostas e tal, acho que isso faz muita falta no Brasil. Um problema desse livro da Natalia e do Orsi é que ele trata a ciência como um conjunto homogêneo e aí, obviamente, você tem generalizações que passam pelo não reconhecimento de que existe uma coisa chamada ciências humanas e outra coisa chamada ciências exatas e, mesmo as ciências biológicas, claro que são demarcações mais antigas, mas se você usa critérios estritos, uniformizantes você vai criar ali distinções que geram exclusão.
Exclusões em que sentido?
São duas coisas. Primeiro que esses saberes estão excluídos do campo do debate da razão. Eles estão colocados para fora da ciência, então eles podem ser reconhecidos como práticas culturais. Mas eles, por exemplo, não vão merecer apoio e reconhecimento dentro das políticas públicas, não devem receber apoio reconhecimento dentro dos processos de financiamento de pesquisa, eles não devem ser reconhecidos como uma autoridade que joga pelas regras da ciência. Então é uma exclusão do campo da racionalidade científica.
Isso é duplamente ruim porque recai sobre esses saberes específicos, mas ele joga retoricamente com a ideia de que você vai transferir preconceitos cognitivos. Se você não gosta da constelação familiar, por exemplo, você vai transferir isso para a psicanálise porque eles estão juntos, são (tratados como a) mesma coisa. Se você não gosta da astrologia, você vai transferir essa mesma forma de atitude cognitiva para a psicanálise. E aí você produz uma unidade que, no fundo, é uma unidade adversarial, de uma atitude negativa do leitor, do público, da opinião pública, de que que basta você ter ali uma indisposição com um desses saberes para você juntá-los no mesmo grupo. Isso não é certo, não é muito leal quando a gente está num debate.
E quais seriam esses pontos equivocados da Natalia e Orsi que vocês respondem no livro?
Primeiro lugar: a alegação de que a psicanálise não tem evidências de eficácia e eficiência. Isso é falso, então a gente traz um conjunto de pesquisas, bem marcados de 2008 até 2023, de alta qualidade, que tiveram a sua qualidade metodológica discutida e rediscutida, como se espera da ciência, e chegou-se então a um novo consenso, em 2023, de que você tem evidências que são consideradas pela Associação Mundial de Psiquiatria um nível de evidência igual ao de outras psicoterapias que tem evidências em eficácia e eficiência. E isso já se sabe desde 2008, então isso mostra desatualização e incorreção.
A segunda crítica é de que a psicanálise não comportaria critérios de refutabilidade nas suas proposições conceituais e teóricas. Bom, isso foi refutado por um grande crítico da psicanálise que é mencionado no trabalho de Natalia, mas não por esse motivo. O (Karl) Popper (filósofo austríaco) escreveu um livro chamado ‘Conjecturas e Refutações’ onde ele diz que, para ser ciência, a gente precisa ter proposições que são refutáveis. Então, para ele, a gente tem pseudociências que parecem ciências, querem ser ciência e que não respondem a esse critério, e a psicanálise seria uma delas. Mas isso foi em 1963. Ali começou a ideia de que a psicanálise é uma pseudociência. Em 1984, Adolf Grünbaum, um autor da teoria da ciência, que conhece muito o Popper, faz um estudo mais rigoroso, dizendo que Popper está errado, que ele não leu corretamente o Freud e que ele tem proposições que são refutáveis. Então pelos seus critérios, a psicanálise não é uma pseudociência. E esse autor curiosamente está sendo citado por Orsi e Pasternak, então é uma crítica autocontraditória, velha, não renovada, que não atualizou as críticas da psicanálise que o Grünbaum faz.
Mas se a gente continuar nessa linha, tem argumentos que Grünbaum levanta que são: faltam provas extra clínicas (da eficácia da psicanálise). Existem provas extra clínicas sim, elas foram produzidas por grupo de pesquisa nos Estados Unidos e mais recentemente por inúmeros autores das neurociências, inclusive o nosso Sidarta Ribeiro. Ou seja, é uma falácia você dizer que não há provas extra clínicas. Como eu já falei, as provas de eficácia e eficiência são dadas por inúmeras pesquisas e aí a gente entra na qualidade das pesquisas: elas têm duplo cego, sim, elas usam um placebo, elas usam um grupo controle, elas usam estratégia pico para seleção de quais as pesquisas vão entrar na metanálise, ou seja, respondem a critérios exigentes em termos de evidência científica.
O material de divulgação do livro fala que ‘é um livro-resposta para quem se pergunta se a psicanálise é ciência, para quem afirma, sem apresentar evidências, que a psicanálise é bobagem, para quem se interessa pelos processos de produção e validação de conhecimento’. É uma resposta também para quem faz uma defesa da psicanálise sem seguir as melhores práticas?
Perfeito. É um livro que começa com uma resposta com um interlocutor específico, mas ele vai se desdobrando numa resposta também aos psicanalistas que permaneceram muito fechados, pouco responsivos às críticas que a gente foi recebendo, tomando atitudes muito reativas que são contrárias ao espírito da ciência, de debater argumentos, trazer evidências, discutir métodos. Então a nossa atitude é de dizer assim: Ciência? Qual ciência? Psicanálise? Qual psicanálise? A gente tem que olhar para essa tradição como uma tradição muito antiga dentro da psicologia e que talvez compreenda várias psicanálises, algumas mais próximas, mais inclinadas, mais propensas a debater com a ciência, outras mais distantes.
É um livro também de esclarecimento sobre qual ciência para qual psicanálise. Inclusive as contra-argumentações, os dados que a gente traz, as evidências, eles têm que ser temperados com essa especificação. Talvez nem tudo na psicanálise seja científico. Talvez a gente tenha uma base na antropologia, nas ciências do desenvolvimento, nas ciências da linguagem, mas tem outras coisas que é mais difícil de a gente incluir dentro da ciência. Ou seja, existe uma heterogeneidade na psicanálise.
Essa é uma das questões centrais do debate. Nem todos os críticos da psicanálise a consideram uma pseudociência, mas dizem que os estudos não são robustos e seriam necessárias mais pesquisas.
A gente menciona os estudos mais importantes, mas aí a gente entra numa discussão de que, por exemplo, nove entre dez pesquisas em medicina não apresentam resultados robustos. Ou seja, tem áreas, tem processos que você consegue elevar a qualidade metodológica, por exemplo, quando você conhece o princípio ativo de uma molécula que produz uma transformação dentro do corpo. Você consegue apurar mais o teu método de pesquisa dessa maneira. Mas no caso da psicanálise e das psicoterapias, a gente passa por um processo que chama manualização, você tem que descrever o que você faz exatamente para poder comparar.
Você quer dizer que ele é muito menos objetivo?
Exatamente. A gente fala no livro que a medicina baseada em evidências é ótima, mas se você transportar as mesmas regras para a psicologia baseada em evidências, você vai ter problemas. E a gente cita vários estudos que apontam para esses problemas. O placebo, por exemplo, em psicologia tem que ser explicado porque invoca sugestão, influência, a relação qualitativa com o outro.
E como medir desfechos e eficácia em psicologia dado que diferentes terapeutas podem levar a diferentes resultados?
A tua observação é absolutamente pertinente porque, no fundo, você está comparando, mas há práticas que são mais difíceis de você manualizar porque o analista vai dizer: ‘olha, eu comecei por aqui, depois eu fui para lá, eu voltei para cá, eu não faço sempre A, B e C’. O outro vai dizer: ‘eu começo por F, depois eu vou pra G, depois eu vou pra H’, então a ordem dos procedimentos e a descrição dos procedimentos são mais heterogêneas. A coisa que está sendo tratada é diferente e isso não aparece muito nas comparações porque você quer o mesmo nível de apuro metodológico usado para outro tipo de objeto, de tipo de experiência.
Agora, voltando a tua pergunta central: a robustez dos resultados, ela também foi produzida por técnicas cada vez mais normativas, do que que é ciência, do que que é um paper, de quanto vale um paper, de quais são as revistas científicas que definem o que que é ciência, em que lugar no mundo elas estão alocadas, por quem elas são pagas. Ou seja, você tem embutido nesse método uma série de pressupostos bastante discutíveis.
Povos originários, populações que não publicam em papers e que têm lá o seu saber sobre uma determinada prática estão fora da conversa até que eu os colonize com os nossos métodos, com os nossos critérios, com o nosso ajuizamento do que venha a ser ciência. A disputa por qual é o método para estabelecer o rigor e robustez faz parte da ciência, ou seja, faz parte do debate dizer: ‘olha eu vou ponderar que isso, isso e isso conta e você vai ponderar que isso não conta’. Mas isso não é a mesma coisa que estar fora da ciência, fazer pseudociência, estar de má-fé fazendo algo perigoso para a população. Esse discurso não cabe para uma discussão desse nível.
Tem uma discussão bem complexa que é como delimitar essa flexibilidade de métodos científicos para psicologia quando há indivíduos que usam esse mesmo argumento em situações para defender intervenções comprovadamente ineficazes, como foi com a cloroquina durante a pandemia. Há alguns psicanalistas, por exemplo, que reproduzem esse discurso de que a eficácia da psicanálise se mede no consultório, que era o mesmo argumento desses médicos com a cloroquina. Como vê isso?
Vejo isso em um contexto histórico que levou a esse entendimento de como funciona a psicanálise. A partir dos anos 70, 80, a psicanálise começou a se fechar em condomínios. Era uma prática para a elite, não tinha muita concorrência com as medicações, e os psicanalistas começaram a virar as costas para as críticas recebidas, para a sociedade, para os temas políticos e culturais. Esse processo tem sua parcela de indolência, de desatualização, de soberba por parte dos psicanalistas.
Eu entendo o argumento desses colegas. Ele é muito repetido e é parte de uma epistemologia endógena, ou seja, algo falado para o nosso campo, de que quando a gente tem um paciente, a gente privilegia as diferenças. Mas isso, para o diálogo de representação pública da psicanálise, incorre no que você falou: muitas outras práticas vão dizer ‘eu também curo’, ‘a minha convicção e fé é essa’, ‘eu e meus amigos pensamos assim’. Ou seja, é uma atitude, um jeito de conversar que não debate com a ciência e que explica por que a gente tem essa essa representação social contra nós. É por isso que o título do nosso livro é ‘Ciência pouca é bobagem’, porque nós queremos mais ciência, não queremos ciência mal feita, feita às pressas, desatualizada. Queremos ciência de mais qualidade, que possa discutir, acolher e a gente tem que estar à altura para participar do debate contemporâneo, então é um convite para mudar a cultura entre os psicanalistas. /COLABOROU ANA LOURENÇO
Nenhum comentário:
Postar um comentário