domingo, 10 de dezembro de 2023

Encontrar-se, respondendo

[Imaculada Conceição da Virgem Maria // Padroeira de Portugal – b – 2023]

Retábulo de Nossa Senhora da Conceição (anterior a 1733). Igreja de São Paulo, Braga (Seminário Conciliar). Foto © Joaquim Félix
Retábulo de Nossa Senhora da Conceição (anterior a 1733). Igreja de São Paulo, 
Braga (Seminário Conciliar).
 Foto © Joaquim Félix

 

[o silvo da serpente / desafia ao fruto – / oiço rumor de passos haiku e fotografia © Joaquim Félix]

1. Curioso, durante as leituras, não ouvíeis passos?
Todavia, ninguém estava a entrar! De quem seriam?
Mais, eu ouvia repetidamente a pergunta: «Onde estás?» (Gen 3,9).
É a primeira pergunta de Deus por nós conhecida,
com a qual chama Adão e lhe pergunta o seu ‘lugar’.
Surpreendido, o Criador estranha a sua ‘invisibilidade’.
Pois deseja-o sempre como enlevo dos seus olhos,
para que viva, continuamente, da Sua bênção.
A chamada de Deus ressoa em todo o jardim.
Adão pressente Deus, sem O ver ainda.
E responde-Lhe, do meio das árvores,
revestido com um avental de folhas de figueira:
«Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim
e, como estava nu, tive medo e escondi-me» (Gen 3,10).

2. É uma resposta argumentativa para uma pergunta tão simples.
Justificando-se, Adão não diz que estava num esconderijo.
Na obstrução do olhar original, amoroso e desimpedido,
ele diz muito mais: passou a ter medo de Deus.
Sim, ao simples rumor dos seus passos, à sua aproximação.
Descobriu-se nu; nudez entretanto encoberta,
porque até entre ele e Eva haveria vergonha.
Deus só queria Adão e Eva na luz dos seus olhos:
nus, sem vergonha, numa carne unida pela Sua bênção,
resplendor da Sua bondade criadora.
Isto é, na alegre consolação de se terem revelado
mútuos auxiliares, em igual dignidade.

 

Adão atribui a culpa a Eva, e esta, por sua vez, à serpente. Foto © Joaquim Félix

Adão atribui a culpa a Eva, e esta, por sua vez, à serpente. Foto © Joaquim Félix

 

3. «Quem te deu a conhecer que estavas nu?
– inquire Deus a Adão, na suposição de ter sido alguém –
Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer? (Gen 3,11).
E, voltando-se para Eva, pergunta-lhe: «Que fizeste?» (Gen 3,13).
Nas suas respostas, torna-se patente o reenvio da culpabilidade:
Adão atribui a culpa a Eva, e esta, por sua vez, à serpente.
É uma história na qual a culpa é exportada como ‘lixo tóxico’,
para uma origem extrínseca à liberdade humana.
|Neste reenvio para fora de si, para outrem,
a culpa não é assumida pelos comitentes próximos,
mas atirada para a astuta serpente (instância natural),
que age na base do instinto e não da liberdade.
Ou seja, a culpa, em última instância, seria atribuível a Deus,
criador de um réptil astuto
que induziu os pretensiosos Adão e Eva a transgredir a única proibição:
«Da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás» (Gen 2,17).

 

Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer? (Gen 3,11). Foto © Joaquim Félix

Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer? (Gen 3,11). Foto © Joaquim Félix

 

4. Deus não se revê em tal atribuição da culpa,
nem compreende como ninguém a queira aceitar.
E, não obstante, tenha amaldiçoado a serpente,
Ele não amaldiçoou Adão e Eva.
Antes, responsabiliza-os por terem dado ouvidos à serpente,
no desejo de serem como Ele, de olhos abertos,
no conhecimento do bem e do mal.
E porque Eva é a «mãe de todos os viventes» (Gen 3,20),
somos como que solidários nesta história,
que narra metaforicamente a origem da primeira queda.
Ferida cuja cura é profetizada através de um pacto de inimizade
estabelecido por Deus entre Eva e a serpente (cf. Gen 3,15).

5. Santo Ambrósio, cuja memória celebrámos ontem,
a propósito da leitura pessoal da Bíblia, comentava:|
«Quando leio a Sagrada Escritura,
Deus torna a passear no jardim terrestre» (Epístola 49,3).
Se nos revemos nesta profunda experiência,
Deus passeava-se nesta igreja de S. Paulo,
enquanto, desde este ambão, ouvíamos as leituras.

6. «Onde estás?»: Esta pergunta não é só para Adão;
é para cada um de nós e para quem ouve o rumor dos seus passos.
Até nos podemos esconder de Deus,
bem dissimulados como camaleões entre ramos,
a ponto de nos estimarmos invisíveis, subtraídos ao seu olhar.
Mas, verdade seja dita, as palavras de Deus
rompem a fragilidade de todas as máscaras.

7. A queda é isto mesmo:
desobedecer e, depois, esconder-se de Deus, com medo.
Diante d’Ele estamos sempre nus, mesmo se tecemos aventais.
Nudez que, além da vergonha de Deus,
nos leva a esconder uns dos outros.
Ela faz com que embaciemos o esplendor da beleza da criação,
a límpida imagem e semelhança divinas, recebidas na origem.

 

Mas, verdade seja dita, as palavras de Deus rompem a fragilidade de todas as máscaras. Foto © Joaquim Félix.

Mas, verdade seja dita, as palavras de Deus rompem a fragilidade de todas as máscaras. Foto © Joaquim Félix.

8. Temos tanta dificuldade em ouvir e responder
à pergunta feita a Eva: «Que fizeste?» (Gen 3,13).
Bem sabemos como a tradição judaico-cristã é acusada
de valorizar excessivamente a culpabilidade,
a ponto de, por vezes, poder criar ‘complexos’.
Porém, a cultura atual não terá caído no oposto,
ou seja, no complexo da desculpabilização?
Declinamos a responsabilidade nas estruturas e nas circunstâncias;
enfim, e sempre, nos outros, nunca na nossa liberdade.
O resultado é sempre o mesmo, desde Adão e Eva:
quem se desculpa e subtrai à responsabilidade individual,
esconde-se no desejo de ser como Deus e de tomar o seu lugar;
quer ter a primazia, negando-se a esperar
que o fruto ‘proibido’ seja dom, e não conquista do braço estendido.
Procuremos, pois, o nosso lugar diante de Deus e dos outros.
E Deus, em Cristo, nos abençoará com uma chuva de bênçãos (Ef 1,3),
com uma chuva copiosa, como a que ontem se abateu sobre Braga.

9. Como sucede num altar desta igreja,
Maria aparece representada no meio de uma árvore, a árvore de Jessé.
Porém, note-se, não para se esconder aos olhos de Deus,
nem ocultar a sua vergonha, por causa de cedências à serpente.
Aparece, no lugar da expectativa que floresce no tempo de Advento,
isto é, no meio da árvore genealógica a sustentar o fruto novo, Jesus.
Para que quem O acolher e d’Ele se alimentar,
como faremos brevemente, tenha a vida nova.

10. Na solenidade da Imaculada Conceição, rainha e padroeira de Portugal,
é este o mistério que celebramos:
a realização do ‘primeiro evangelho’, escutado no Génesis,
a vitória da Mulher sobre a serpente.
De facto, assim acreditamos: Deus, por particular privilégio,
fez com que Maria fosse concebida sem pecado, para vir a ser a Mãe de Jesus.
Assim o sintetiza Manuel Costa Santos, habitante desta casa:
«Por graça isenta e preservada do pecado (incapacidade de responder a Deus),
Maria é instituída figura da nova criação.
Ao responder ao apelo de Deus,
situa-se face ao homem fechado na alienação (pecado);
ela é ‘verdade da criatura realizada’ (Evdokimov),
que se encontra a si, respondendo.
Uma antropologia relacional mostra que graça e liberdade,
aparentemente contraditórias,
realmente se condicionam na conjugação misteriosa da resposta:
‘Eis a serva do Senhor. Faça-se’».

11. Por isso, ao celebrarmos a Imaculada Conceição,
como lembrava José Augusto Mourão, não estamos a festejar
«um dogma, uma opinião comum, consensual, recente (1854);
festeja-se (sim) um acontecimento,
uma fundação que se tornou iluminadora,
que nos abriu ao conhecimento de Deus e de nós, no advento de Deus».
Como a Maria, Deus deixa-nos a pensar, na confiança de que nada Lhe é impossível.
Tudo isto para que Lhe respondamos incondicionalmente,
sem medo e como campo onde a palavra se cumpre:
«Faça-se em mim, segundo a tua palavra» (Lc 1,38).
Maria, Nova Eva, que não ambiciona o lugar de Deus,
acha e enche-se de graça a seus olhos.
Contemplando nela o melhor de nós mesmos,
a nossa realização plena de filhos de Deus,
ela desperta-nos a nostalgia profunda do que viremos a ser, novas criaturas.

12. Por fim, não posso terminar sem que escutemos,
diante do altar da Senhora da Conceição, com a árvore de Jessé,
este responsório composto por Hildegarda de Bingen:

 

«Ó suavíssima vara,
que despontas do tronco de Jessé,
grande é teu vigor,
tanto que Deus voltou os olhos para a sua belíssima filha,
como no sol a águia crava seu olhar.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.

Assim que no místico mistério divino
ganhou forma o projecto duma Virgem,
a flor brilhante admiravelmente
da própria Virgem floriu.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.

Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,
como era na origem.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.

*Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais VERNA. Este texto corresponde à homilia da Solenidade da Imaculada Conceição (8 dezembro 2023), da liturgia católica.

Fonte:  https://setemargens.com/encontrar-se-respondendo/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

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