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[Imaculada Conceição da Virgem Maria // Padroeira de Portugal – b – 2023]
[o silvo da serpente / desafia ao fruto – / oiço rumor de passos – haiku e fotografia © Joaquim Félix]
1. Curioso, durante as leituras, não ouvíeis passos?
Todavia, ninguém estava a entrar! De quem seriam?
Mais, eu ouvia repetidamente a pergunta: «Onde estás?» (Gen 3,9).
É a primeira pergunta de Deus por nós conhecida,
com a qual chama Adão e lhe pergunta o seu ‘lugar’.
Surpreendido, o Criador estranha a sua ‘invisibilidade’.
Pois deseja-o sempre como enlevo dos seus olhos,
para que viva, continuamente, da Sua bênção.
A chamada de Deus ressoa em todo o jardim.
Adão pressente Deus, sem O ver ainda.
E responde-Lhe, do meio das árvores,
revestido com um avental de folhas de figueira:
«Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim
e, como estava nu, tive medo e escondi-me» (Gen 3,10).
2. É uma resposta argumentativa para uma pergunta tão simples.
Justificando-se, Adão não diz que estava num esconderijo.
Na obstrução do olhar original, amoroso e desimpedido,
ele diz muito mais: passou a ter medo de Deus.
Sim, ao simples rumor dos seus passos, à sua aproximação.
Descobriu-se nu; nudez entretanto encoberta,
porque até entre ele e Eva haveria vergonha.
Deus só queria Adão e Eva na luz dos seus olhos:
nus, sem vergonha, numa carne unida pela Sua bênção,
resplendor da Sua bondade criadora.
Isto é, na alegre consolação de se terem revelado
mútuos auxiliares, em igual dignidade.
3. «Quem te deu a conhecer que estavas nu?
– inquire Deus a Adão, na suposição de ter sido alguém –
Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira de comer? (Gen 3,11).
E, voltando-se para Eva, pergunta-lhe: «Que fizeste?» (Gen 3,13).
Nas suas respostas, torna-se patente o reenvio da culpabilidade:
Adão atribui a culpa a Eva, e esta, por sua vez, à serpente.
É uma história na qual a culpa é exportada como ‘lixo tóxico’,
para uma origem extrínseca à liberdade humana.
|Neste reenvio para fora de si, para outrem,
a culpa não é assumida pelos comitentes próximos,
mas atirada para a astuta serpente (instância natural),
que age na base do instinto e não da liberdade.
Ou seja, a culpa, em última instância, seria atribuível a Deus,
criador de um réptil astuto
que induziu os pretensiosos Adão e Eva a transgredir a única proibição:
«Da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás» (Gen 2,17).
4. Deus não se revê em tal atribuição da culpa,
nem compreende como ninguém a queira aceitar.
E, não obstante, tenha amaldiçoado a serpente,
Ele não amaldiçoou Adão e Eva.
Antes, responsabiliza-os por terem dado ouvidos à serpente,
no desejo de serem como Ele, de olhos abertos,
no conhecimento do bem e do mal.
E porque Eva é a «mãe de todos os viventes» (Gen 3,20),
somos como que solidários nesta história,
que narra metaforicamente a origem da primeira queda.
Ferida cuja cura é profetizada através de um pacto de inimizade
estabelecido por Deus entre Eva e a serpente (cf. Gen 3,15).
5. Santo Ambrósio, cuja memória celebrámos ontem,
a propósito da leitura pessoal da Bíblia, comentava:|
«Quando leio a Sagrada Escritura,
Deus torna a passear no jardim terrestre» (Epístola 49,3).
Se nos revemos nesta profunda experiência,
Deus passeava-se nesta igreja de S. Paulo,
enquanto, desde este ambão, ouvíamos as leituras.
6. «Onde estás?»: Esta pergunta não é só para Adão;
é para cada um de nós e para quem ouve o rumor dos seus passos.
Até nos podemos esconder de Deus,
bem dissimulados como camaleões entre ramos,
a ponto de nos estimarmos invisíveis, subtraídos ao seu olhar.
Mas, verdade seja dita, as palavras de Deus
rompem a fragilidade de todas as máscaras.
7. A queda é isto mesmo:
desobedecer e, depois, esconder-se de Deus, com medo.
Diante d’Ele estamos sempre nus, mesmo se tecemos aventais.
Nudez que, além da vergonha de Deus,
nos leva a esconder uns dos outros.
Ela faz com que embaciemos o esplendor da beleza da criação,
a límpida imagem e semelhança divinas, recebidas na origem.
8. Temos tanta dificuldade em ouvir e responder
à pergunta feita a Eva: «Que fizeste?» (Gen 3,13).
Bem sabemos como a tradição judaico-cristã é acusada
de valorizar excessivamente a culpabilidade,
a ponto de, por vezes, poder criar ‘complexos’.
Porém, a cultura atual não terá caído no oposto,
ou seja, no complexo da desculpabilização?
Declinamos a responsabilidade nas estruturas e nas circunstâncias;
enfim, e sempre, nos outros, nunca na nossa liberdade.
O resultado é sempre o mesmo, desde Adão e Eva:
quem se desculpa e subtrai à responsabilidade individual,
esconde-se no desejo de ser como Deus e de tomar o seu lugar;
quer ter a primazia, negando-se a esperar
que o fruto ‘proibido’ seja dom, e não conquista do braço estendido.
Procuremos, pois, o nosso lugar diante de Deus e dos outros.
E Deus, em Cristo, nos abençoará com uma chuva de bênçãos (Ef 1,3),
com uma chuva copiosa, como a que ontem se abateu sobre Braga.
9. Como sucede num altar desta igreja,
Maria aparece representada no meio de uma árvore, a árvore de Jessé.
Porém, note-se, não para se esconder aos olhos de Deus,
nem ocultar a sua vergonha, por causa de cedências à serpente.
Aparece, no lugar da expectativa que floresce no tempo de Advento,
isto é, no meio da árvore genealógica a sustentar o fruto novo, Jesus.
Para que quem O acolher e d’Ele se alimentar,
como faremos brevemente, tenha a vida nova.
10. Na solenidade da Imaculada Conceição, rainha e padroeira de Portugal,
é este o mistério que celebramos:
a realização do ‘primeiro evangelho’, escutado no Génesis,
a vitória da Mulher sobre a serpente.
De facto, assim acreditamos: Deus, por particular privilégio,
fez com que Maria fosse concebida sem pecado, para vir a ser a Mãe de Jesus.
Assim o sintetiza Manuel Costa Santos, habitante desta casa:
«Por graça isenta e preservada do pecado (incapacidade de responder a Deus),
Maria é instituída figura da nova criação.
Ao responder ao apelo de Deus,
situa-se face ao homem fechado na alienação (pecado);
ela é ‘verdade da criatura realizada’ (Evdokimov),
que se encontra a si, respondendo.
Uma antropologia relacional mostra que graça e liberdade,
aparentemente contraditórias,
realmente se condicionam na conjugação misteriosa da resposta:
‘Eis a serva do Senhor. Faça-se’».
11. Por isso, ao celebrarmos a Imaculada Conceição,
como lembrava José Augusto Mourão, não estamos a festejar
«um dogma, uma opinião comum, consensual, recente (1854);
festeja-se (sim) um acontecimento,
uma fundação que se tornou iluminadora,
que nos abriu ao conhecimento de Deus e de nós, no advento de Deus».
Como a Maria, Deus deixa-nos a pensar, na confiança de que nada Lhe é impossível.
Tudo isto para que Lhe respondamos incondicionalmente,
sem medo e como campo onde a palavra se cumpre:
«Faça-se em mim, segundo a tua palavra» (Lc 1,38).
Maria, Nova Eva, que não ambiciona o lugar de Deus,
acha e enche-se de graça a seus olhos.
Contemplando nela o melhor de nós mesmos,
a nossa realização plena de filhos de Deus,
ela desperta-nos a nostalgia profunda do que viremos a ser, novas criaturas.
12. Por fim, não posso terminar sem que escutemos,
diante do altar da Senhora da Conceição, com a árvore de Jessé,
este responsório composto por Hildegarda de Bingen:
«Ó suavíssima vara,
que despontas do tronco de Jessé,
grande é teu vigor,
tanto que Deus voltou os olhos para a sua belíssima filha,
como no sol a águia crava seu olhar.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.
Assim que no místico mistério divino
ganhou forma o projecto duma Virgem,
a flor brilhante admiravelmente
da própria Virgem floriu.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.
Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo,
como era na origem.
Quando o Pai do céu se deteve no brilho da Virgem,
quis que nela encarnasse seu Filho.
*Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais VERNA. Este texto corresponde à homilia da Solenidade da Imaculada Conceição (8 dezembro 2023), da liturgia católica.
Fonte: https://setemargens.com/encontrar-se-respondendo/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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