José de Souza Martins*
— Foto: Carvall
Episódio na Câmara dos Vereadores de Araraquara lembra que cada um tem o direito de ter sua religião, mas não de impô-la a outros
No final de novembro, os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo atenderam a pedido da Procuradoria Geral de Justiça que questionava a constitucionalidade de dispositivo do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araraquara. O que obrigava a leitura de seis versículos da Bíblia Sagrada, pelos vereadores, em rodízio, por ordem alfabética, no início de cada sessão. A Bíblia ficaria aberta no recinto em página determinada, como num templo evangélico.
Em 2017, em sua primeira sessão ordinária da Câmara, a vereadora Thainara Faria, do Partido dos Trabalhadores, católica praticante, na época estudante de direito, hoje advogada e deputada, foi à tribuna e declarou que não participaria do rodízio. Invocou a laicidade do Estado brasileiro, definida na Constituição.
A reação da vereadora causou polêmica, apesar de suas fundamentadas razões. A norma inserida no Regimento da Câmara, em 2006, tinha uma definição maliciosa que colocava em situação adversa e estigmatizante quem, mesmo invocando a Constituição, optasse por não fazer a leitura. O discordante deveria solicitar a retirada de seu nome, indevida e compulsoriamente nela incluído, da lista de rodízio dos leitores do trecho da Bíblia preconizado.
Ficava ele ou ela, assim, indevidamente exposto como se fosse pessoa não identificada com valores religiosos. A responsabilidade pela negativa não era entendida como da maioria obediente, numa ação irregular, e sim do desobediente cumpridor da Constituição. Autoritarismo de minoria e não precedência dos direitos da maioria.
O notório abuso da norma foi levado à consideração do Ministério Público pelo jornalista Eduardo Banks, em 2021, que apontou outras câmaras municipais envolvidas em idêntica irregularidade, como a de Itapecerica da Serra e a de São Carlos, podendo-se aí incluir a de Rio Preto.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça acolheu o pedido da Procuradoria Geral de Justiça. Por unanimidade os desembargadores entenderam ser inconstitucional a regra da Câmara de Araraquara, entendimento que se aplica às regras de mesmo vício de todas as câmaras municipais do estado de São Paulo.
A decisão se refere a que a anomalia julgada fere a isonomia que supostamente deveria haver entre religiões ou entre denominações religiosas. Isto é, igualdade de oportunidade de usar textos religiosos nas instituições públicas em favor do ponto de vista de determinada religião. O que é provavelmente um equívoco em face da Constituição, pois não se trata de um direito. Outras religiões ou crenças poderiam invocar o suposto direito e incluir a leitura de seus textos sagrados nas sessões das câmaras.
A fragilidade da decisão não está no prejuízo à isonomia, mas no desconhecimento de que religião, no Brasil, é questão privada desde quando estabelecida a separação entre Estado e Igreja.
Cada um tem o direito de ter sua religião, mas não tem o direito de impô-la a outros. Porque passariam as câmaras a maior parte do tempo rezando e funcionando como recinto de nova e peculiar religiosidade, a do testemunho de fé fora do lugar, por meio da invasão das instituições públicas.
Continua pendente, no entanto, a questão da compreensão jurídica da laicidade do Estado brasileiro. A qual já se tornara clara quando os tribunais reconheceram que desde o Império, quando o Brasil acolheu a reivindicação de países estrangeiros, que tinham aqui seus negócios e seus súditos, para que lhes fosse garantido o direito do exercício comunitário de sua fé, ainda que em edifícios sem forma exterior de templo. Era e é o entendimento de que religião é uma questão privada, praticada nos recintos do sagrado. Os evangélicos estão na contramão desse processo.
Por iniciativa e inspiração externa, desde os anos 1950, há um ataque ao Brasil religioso, agravado por sua extensão ao Brasil político, por igrejas e seitas cuja concepção de fé é a de uma fé de guerra santa contra as demais visões de mundo, religiosas ou não. Isso reduziu o espaço de legitimidade das igrejas protestantes históricas, que já não são religiões de afirmação da identidade e diversidade das crenças, mas religiões de intolerância e em nome dela religiões de conflito social, ideológico e político.
O uso político-partidário da religião, por parte de pastores e de igrejas, agrava o cenário nas anomalias da indistinção entre púlpito e gazofilácio (a caixa de coleta do dízimo), entre fé e ódio, entre ambição de salvação e ambição de poder. O que vem transformando essas igrejas em instrumentos de destruição provável justamente da fé evangélica no Brasil e da democracia que lhes é garantia de direito, de atualização e de sobrevivência.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-a-politica-na-religiao.ghtml
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