Por Rafael Gallo
Conto de Natal da autoria do escritor Rafael Gallo, vencedor do Prémio José Saramago 2022.
Nem me fale, Inês, eu sofro muito com isso. O coração de mãe fica, ai, como se rasgado ao meio, não é? Nunca imaginei viver algo assim; justo com meus filhos, que amo tanto. Hoje, em especial, estou bem triste. É a primeira vez, na vida, que passamos o Natal separados. E, para mim, sempre foi o dia mais esperado do ano. Tenho tantas lembranças felizes de nós todos juntos. Mas, não podemos sair daqui, logo agora. Se, ao menos, eles pudessem estar em nossa ceia natalina, acho que ajudaria. Aliás, você viu a mesa montada? Linda mesmo. Só estou com receio de que chova; olhe as nuvens. Enfim, seria maravilhoso ter comigo minha família reunida. É o presente que eu mais gostaria de receber.
Claro, Inês, esse também. Nem mencionei porque, para mim, já está dado. Só falta se realizar. Sabe, eu tinha esperanças de ter tranquilidade depois das eleições. É ruim que os conflitos continuem. Isso. E é impressionante: eles não aceitam a verdade. Não entra na cabeça deles. Quero ver como vão reagir quando o presidente assumir de vez. Eu preferiria que fosse logo, nem precisasse esperar. Com tudo que pode acontecer até janeiro, seria um alívio.
Nossa, e comigo, então? Se te contasse os ataques que recebi, você choraria três dias seguidos. Tem horas em que penso: as pessoas ficaram cegas, não enxergam o que está na cara delas. Verdade, ou isso: lavagem cerebral. Não é só a mídia, Inês; tem um problema educacional sério. Olha, meus filhos estudaram em boas escolas, era para terem conhecimento. Não sei; depois de crescidos, apareceram com essas ideias. Acho que ouvem de alguém, de pessoas influentes, e acreditam. Pois, então. Distorcem tudo, criam uma realidade paralela. Exato. Amiga, e a gente, que viveu essa época, dos militares no governo, e sabe bem como foi? Ouvir meus filhos falarem coisas assim, hoje, até me arrepia.
Eu te contei sobre a mulher com quem o Beto se juntou, né? Ela é uma das que deve ter feito a cabeça deles. O pior é que a adoram. O Beto, nem reconheço mais; está muito diferente do homem com quem me casei. E eles sempre concordam entre si, sabe? Quando falo a verdade, sou tachada de louca. Sim, é o truque para tirar nossa credibilidade. Foi um trovão, isso? Hmm, vai mesmo chover.
Antes, quando? Ah, creio que votávamos igual. Já nem sei. E ficou impossível conversar com meus filhos sobre esse assunto. No dia da votação, fiz só uma pergunta sobre a urna que usei e, bom, vou até te mostrar as mensagens. Olhe as grosserias deles. Calma, Inês, eu sei; para mim, não precisa explicar. Mas, se eles lidam assim com uma dúvida simples, imagine com o resto. E pode mostrar provas, que só respondem: “Isso é fake, mãe. Isso é montagem, mãe”. Como conversar assim? Então, nada é real. Ih, começou a pingar.
Eu tenho medo do que pode acontecer. Difícil lidar com essa espera antes da resolução. Se até Cristo hesitou, com aquele: “Pai, por que me abandonaste?”, não é? Confesso estranhar esse silêncio, às vezes. Queria tanto que anunciassem a volta definitiva dele. Nossa, como espero por esse dia. Todas as manhãs, acordo e penso: tem que ser hoje. E oro, peço a Deus que seja feita a vontade dele.
Exato, é uma guerra espiritual. Mas, o Bem sempre vence o Mal, Inês, disso eu tenho certeza. Opa, está piorando; vou fechar minha barraca, para não encher de água outra vez. Sim, resistência! Podem mandar essa chuva com as antenas HAARP, a gente aguenta. Só saio deste acampamento com nosso presidente no posto onde o povo o colocou. Você viu a notícia de que as forças armadas estão prontas? Um jornalista italiano divulgou. Tem fontes seguras. Só esperam pela ordem do presidente, para cumprir a Constituição. Eu te falei: aquele discurso oficial foi a estratégia perfeita; desarmou os comunistas, para organizar tudo em segredo. Vai acontecer, Inês. Podia ser nos próximos minutos, né? Daria tempo até de viajar de volta e passar a noite de amanhã junto dos meus filhos. Com a Pátria em ordem, acredito que a paz vai reinar também nos lares. Imagine, que Natal maravilhoso. Ai, meu Deus, vai alagar de novo.
O quê? Calma, pessoal, precisa averiguar. Pode ser outra mentira plantada, só para nos desarticular. Procure aí, Inês, vou checar aqui. É claro que na TV não falam, vocês não entenderam até agora? Confirmem nos lugares certos. Ai, recebi aqui no grupo! Gente, chegou mesmo: o dia mais esperado! Glória ao Senhor! Eu sabia que ele não ia nos abandonar. Vou gravar um vídeo para meus filhos. Oi, meus amores, já souberam? Agora, vão entender por que precisei vir para cá. Olhem só: todos cantando o Hino, muito lindo. Pode ter essa água nos nossos joelhos, pode subir até o pescoço, verás que um filho teu não foge à luta. Lindo! Bom, vou correr lá, para ver o presidente chegar. Ele já está bem perto do Congresso, com o exército. Viram a foto dos tanques de guerra na avenida? Emocionante. E não se preocupem, lá não está chovendo, só aqui. Ah, e vou tentar voltar a tempo do domingo de Natal. Seu pai está com vocês? Poderemos nos reunir, finalmente.
*Biografia do autor
Vencedor do Prémio José Saramago 2022 com o romance “Dor fantasma”, Rafael Gallo, 42 anos, é um escritor brasileiro de São Paulo. A sua estreia na literatura deu-se em 2012, com a coletânea de contos “Réveillon e outros dias”, obra vencedora do Prémio SESC de literatura nesse mesmo ano. Em 2015, lançou o romance “Rebentar” e conquistou o Prémio São Paulo de Literatura. Em “Dor fantasma” – publicado neste ano de 2023 pela Porto Editora -, o autor acompanha a vida de um pianista virtuoso e obcecado pela perfeição.
Fonte: https://www.noticiasmagazine.pt/2023/conto-de-natal-de-rafael-gallo-o-dia-mais-esperado/historias/297297/
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