sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Marcuse e a coexistência de Israel e Palestina

Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva*

O filósofo Herbert Marcuse em 1955 (Wikimedia Commons)

 O filósofo Herbert Marcuse em 1955 (Wikimedia Commons)

As assimetrias entre Israel e Palestina são acentuadas nesse contexto, enfatizando a necessidade de abordagens que considerem a justiça histórica e as desigualdades presentes 

A atual escalada do conflito entre Israel e Palestina, marcada pelo acirramento dos ataques e do genocídio perpetrado por Israel, suscita uma urgência em revisitar as reflexões do filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), integrante da Escola de Frankfurt. Em um contexto histórico que remonta às décadas passadas, a relação complexa entre essas duas “nações” é fundamental para entender as origens e as perspectivas futuras desse conflito.

Herbert Marcuse, um marxista alemão que enfrentou o exílio nos Estados Unidos devido ao regime nazista, construiu sua visão sobre Israel e o sionismo com base em uma sensibilidade política forjada na opressão que ele, como judeu, experimentou durante o período sombrio do Holocausto. A relação de Marcuse com Israel era, assim, permeada por uma dimensão “emocional” e “pessoal”, moldada pelas cicatrizes do passado. 

Ao considerar a fundação do Estado de Israel como uma condição para a solução pacífica do conflito israelo-palestino, Marcuse reconhecia as injustiças inerentes à criação do Estado judaico. Sua perspectiva, expressa nas décadas de 1960 e 1970, ecoava o dilema entre a ilegitimidade histórica da fundação de Israel e a necessidade pragmática de garantir a segurança dos judeus frente a um mundo hostil.  

A entrevista concedida por Marcuse ao The Jerusalem Post em janeiro de 1972, preservada no Marcuse Archiv de Frankfurt, proporciona uma janela para a profundidade de suas reflexões. Traduzida para o árabe, a entrevista provocou um intenso debate, evidenciado nas palavras do então prefeito de Nablus (1963-1969) [atual Cisjordânia], Hamdi T. Kanaan: “No que me diz respeito, vejo no senhor a primeira personalidade judaica que admite praticamente a grande injustiça cometida contra árabes-palestinos com a criação de Israel e que, ao mesmo tempo, compreende total e logicamente as circunstâncias presentes e futuras nas quais Israel existe e existirá nesta região”. 

A década de 1960 foi testemunha da Guerra dos Seis Dias, evento que desencadeou uma reafirmação do poder militar e político de Israel na região. Marcuse, atento a essa dinâmica, insistia que a liberdade deveria ser disseminada sem adotar formas imperialistas. Em suas palavras, “Só um mundo árabe livre pode coexistir com um Israel livre”. Essa visão, ancorada na experiência de opressão sob o nazismo, refletia a busca de Marcuse por uma coexistência pacífica entre Israel e os países árabes circundantes.  

O filósofo propunha a criação de um Estado nacional palestino ao lado de Israel, considerando-o um passo essencial para a coexistência. No entanto, cinquenta anos após suas reflexões, a implementação dessa solução permanece ilusória. A história subsequente é marcada por conflitos intermitentes, negociações frustradas e uma persistente ausência de paz duradoura. 

A década de 2020, especificamente o ano de 2023, emergiu como um ponto de inflexão nesse contexto histórico. O genocídio israelense, evidenciado em outubro, reacendeu as chamas de um conflito que parecia não ceder às tentativas anteriores de resolução. A superioridade militar de Israel, mencionada por Marcuse como um fator que exigiria uma responsabilidade adicional na busca pela coexistência, agora se manifesta de maneira ainda mais pronunciada. 

A história serve como uma narrativa intrincada de tensões, aspirações e desafios. O sonho de Marcuse por uma “federação socialista dos Estados do Oriente Médio”, onde israelenses e palestinos coexistiriam em igualdade, permanece uma visão distante. Contudo, sua visão continua sendo uma chamada atual à luta pela segurança e liberdade em uma região marcada pela volatilidade histórica. Conforme o filósofo, a coexistência das duas populações não poderá acontecer se uma dessas duas “nações” for suprimida pela outra.  

Diante do cenário atual, é imperativo que a perspectiva histórica seja incorporada à análise crítica do conflito israelo-palestino. A compreensão das raízes, dos desenvolvimentos e das falhas ao longo do tempo é essencial para orientar futuras tentativas de resolução. As reflexões de Marcuse, ancoradas em sua própria experiência histórica, oferecem uma bússola moral em meio à complexidade desse conflito de décadas. As assimetrias entre Israel e Palestina, em termos de poder militar, político e econômico, são acentuadas nesse contexto, enfatizando a necessidade de abordagens que considerem a justiça histórica e as desigualdades presentes. 

A premonição de Marcuse 

O ano de 1971 representou um marco na vida de Herbert Marcuse, quando ele, convidado a fazer conferências na Universidade Hebraica de Jerusalém, visitou Israel pela primeira vez. Esse evento permitiu que ele se confrontasse diretamente com a complexidade da questão palestina, dialogando com a população local, tanto árabe quanto israelense. A entrevista resultante, publicada no The Jerusalem Post em 2 de janeiro de 1972, adiciona uma camada importante às reflexões de Marcuse. 

Nessa entrevista, Marcuse reconheceu a injustiça cometida contra a população árabe autóctone durante a criação do Estado de Israel em 1948. Ele destaca que a fundação do Estado judaico implicou a transferência, em parte forçada, da população palestina. Além disso, a população árabe que permaneceu em Israel viu-se relegada a um status econômico e social de cidadãos de segunda classe, apesar dos direitos formalmente reconhecidos.  

A análise de Marcuse, fundamentada na perspectiva histórica, destaca que as origens do Estado de Israel não diferem fundamentalmente da criação de outros Estados na história, envolvendo conquista, ocupação e discriminação. Mesmo a aprovação da Organização das Nações Unidas (ONU), embora tenha ratificado de fato a conquista, não alterou a essência da situação, visto que o ato político que resultou na criação de Israel foi respaldado pelas grandes potências da época. 

O filósofo abordou a precariedade da solução militar e a necessidade de um tratado de paz com a República Árabe Unida [Egito] como uma condição preliminar. Ele propôs uma retirada das forças israelenses do Sinai e da Faixa de Gaza, com a criação de uma zona desmilitarizada sob a proteção da ONU. Marcuse acreditava que a potência mais forte, representada por Israel, poderia fazer concessões importantes para alcançar a paz. 

Jerusalém, com sua carga religiosa profunda, era identificada por Marcuse como um possível obstáculo à paz. Ele sugeriu a internacionalização da cidade, uma vez reunificada, como uma alternativa. O teórico também via a necessidade de uma “solução justa para o problema dos refugiados”, conforme as resoluções da ONU.

Marcuse abordou duas possibilidades para lidar com o problema dos refugiados: o retorno a Israel daqueles que desejam voltar, limitado pela transformação das terras árabes em terras judaicas; e a criação de um Estado palestino nacional ao lado de Israel, decidido por meio de um plebiscito supervisionado pela ONU. 

A questão central, segundo Marcuse, era se Israel, em sua configuração à época e com sua política presente, poderia alcançar seu objetivo de existir como uma sociedade progressista com relações pacíficas com seus vizinhos. O filósofo argumentava que a anexação de terras, qualquer que seja a forma, seria uma resposta negativa, transformando Israel em uma fortaleza militar, tornando-se um ambiente hostil.  

Em suma, a visão de Marcuse, moldada por sua experiência histórica e pela visita que fez a Israel em 1971, destaca a necessidade de reconhecer as injustiças do passado, negociar tratados de paz fundamentais e buscar uma coexistência genuína entre israelenses e palestinos. Suas palavras, embora pronunciadas décadas atrás, ecoam de forma poderosa na contemporaneidade, oferecendo uma orientação valiosa para a resolução do conflito israelo-palestino.  

*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB). 

Referências Bibliográficas: 

Laudani, R., & Jansen, P. E. (2004, 1 de abril). Marcuse, o sionismo e os judeus. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponivel em: https://diplomatique.org.br/marcuse-o-sionismo-e-os-judeus/ 

Le Monde Diplomatique. (2004, março). Une pensée prémonitoire: Marcuse, Israël et les Juifs. Le Monde Diplomatique, p. 27.  Disponivel em: https://www.monde-diplomatique.fr/2004/03/MARCUSE/11079 

MARCUSE, Herbert. Das Ende der Utopie (1967), Frankfurt a. M., Neue Kritik, 1980. 

MARCUSE, Herbert. Only a Free Arab World Can Co-exist with a Free Israel, introdução à edição hebraica de “L?Chayim, vol. IV, n° 2, 1977. 

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