terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Como preparar a educação para o uso de inteligência artificial

 Por Ivan Cláudio Pereira Siqueira*

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Entender oportunidades e limites da IA facilita o vislumbre de suas potencialidades para reduzir significativamente as improdutivas tarefas burocráticas, que drenam energia e ânimo na gestão, coordenação e docência

Nas duas últimas décadas, tivemos um vertiginoso crescimento da Inteligência Artificial (IA) em inúmeras esferas da vida social (saúde, educação, judiciário, economia, lazer). Na literatura técnica sobre o assunto, isso é frequentemente relacionado ao aperfeiçoamento da arquitetura dos Modelos de Linguagem de Grande Escala (Large Language Models - LLMs), da Inteligência Artificial Generativa, do aumento da capacidade de computação dos processadores e da exponencial disponibilidade de dados na web.

O espetacular surgimento do Chat GPT 3.5, em novembro de 2022, trouxe a IA para o cotidiano mundial. GPT é a sigla para "Generative pre-trained transformer". Trata-se de uma arquitetura computacional que gera outputs (dados) a partir dos inputs (dados) utilizados no seu treinamento prévio. A expectativa é que, quanto mais dados e aperfeiçoamentos nos algoritmos de treinamento, melhores os resultados. Mas não podemos nos esquecer que o GPT se utilizou da técnica conhecida como RLHF (Reinforcement Learning from Human Feedback). A expressão se refere ao emprego do trabalho de pessoas que arduamente etiquetam, analisam e treinam os algoritmos para que consigam diferenciar alhos de bugalhos. Sem surpresa, essas pessoas são frequentemente recolhidas em países da África e em comunidades pobres de língua inglesa na Índia.

Num curto espaço de tempo, uma empresa que nasceu em 2015 como um centro de pesquisa em IA sem fins lucrativos alcançou o estrelato, e tudo mudou. Com a força do poder midiático, o Chat GPT 3.5 da OpenAI se transformou em fenômeno global, favorecendo discussões sobre a tecnologia inerente ao seu funcionamento. Mas a base dos conhecimentos e técnicas que possibilitaram o recente desenvolvimento da IA têm um longo histórico.

Por exemplo, subcampos de pesquisa da IA como "Machine Learning" (Aprendizado de Máquina), "Deep Learning" (Aprendizado profundo) e "Neural Networks" (Redes Neurais) remontam a um conjunto extenso de estudos interdisciplinares. As Redes Neurais contemporâneas surgem por volta de 2011, mas os algoritmos para inferência em modelagem temporais são bem mais antigos: "Hidden Markov" (Andrei Markov, 1913); "Kalman filters" (Rudolf Kálmán, 1960) e "Dynamic Bayesian Network" (Paul Dagum, 1990).

Mas para o grande público, determinados conceitos, terminologias e siglas tornaram-se mais próximos: LLM, IA Generativa (gerador de outputs) versus Discriminative AI (modelo que classifica diferentes tipos de dados).

Na educação, promessas e mais promessas de personalização se enumeram ladeadas aos prenúncios de substituição docente por máquinas artificiais inteligentes, fim das avaliações tradicionais e um emergente cenário de preocupações sobre a viabilidade da educação como a viemos praticando. Partidários e contrários se esforçam em tentativas que buscam desvelar visões avassaladoramente otimistas ou pessimistas. Diz um ditado latino: "In medio virtus est!" (A virtude está no meio). De qualquer modo, 2023 vai se despedindo, as escolas sobreviveram e continuam fazendo o seu trabalho. Mas pairam inquietações para o futuro vindouro nos sistemas educacionais e nas mentes.

Parte do deslumbramento das interações iniciais com a IA e a produção de diferentes mídias (texto, imagem, vídeo, som, código) a partir da linguagem natural mostrou tecnicidades como "engenharia de prompts", "alucinações" e um conjunto de implicações éticas – como usá-la? Como combinar com estudantes o uso responsável a partir de valores educativos? Como dialogar sobre com as famílias e a comunidade escolar? A legislação e as Diretrizes nacionais dão conta da situação? E as crianças? Como usar essas poderosas ferramentas para empoderar, e não ampliar as desigualdades nacionais?

Entender as oportunidades e os limites da IA pode facilitar o vislumbre de suas potencialidades para reduzir significativamente as improdutivas e infindáveis tarefas burocráticas, que drenam energia e ânimo na gestão, coordenação e docência

Não há respostas fáceis para nenhuma dessas perguntas. Internacionalmente, as tentativas de gestão da IA (não somente educacional) dos países desenvolvidos sugerem mais perplexidade e dificuldades do que soluções. Os modelos de IA Generativa e outros não param de ser aperfeiçoados, tornando obsoletos encaminhamentos que mal saíram do papel. Concomitantemente, o poderoso lobby das big techs e o acesso a oceanos de dados dificultam regulamentações internacionais, sem as quais eventuais frameworks nacionais se tornam café pequeno. Data is power!

Não é novidade que a educação contemporânea tem tido dificuldade em responder às demandas do século 21, não somente as digitais. E ainda mais no nosso Brasil, com dimensões e intersecções arraigadas por profundas e dolorosas desigualdades, racismo e preconceitos estruturais voltados especialmente contra populações historicamente marginalizadas. Para parte significativa, a narrativa corrente era de promessa de educação e acesso ao que majoritariamente era concebido enquanto sonhos distantes.

Entender as oportunidades e os limites da IA pode facilitar o vislumbre suas potencialidades para reduzir significativamente as improdutivas e infindáveis tarefas burocráticas, que drenam energia e ânimo na gestão, coordenação e docência. E também a inclusão de diferentes perfis e necessidades discentes na comunidade de aprendizagem. Reduzir as desigualdades certamente será uma das missões mais nobres a que devemos nos dedicar.

Mas a IA também carrega consigo o DNA da aceleração social e de profundas transformações econômicas, que tendem a ressignificar o mundo e seus componentes intrínsecos. Talvez seja irresponsabilidade coletiva colocar tamanho encargo unicamente nos ombros da educação. Preparar as gerações para as profundas, aceleradas e múltiplas mudanças já em curso certamente será menos penoso e eventualmente mais realizável se a tarefa for distribuída, em analogia à arquitetura dos "Foundations Models" (Modelos fundacionais) da IA contemporânea.

Ivan Cláudio Pereira Siqueira é professor titular em Estudos Interdisciplinares na Universidade Federal da Bahia, atuando no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos (IHAC). Foi membro do Conselho Nacional de Educação e relator das Diretrizes Nacionais sobre o Ensino de Computação. Pesquisa nas seguintes áreas: Políticas Públicas, Educação, Artes, Inglês e Competências Digitais. É autor do CD "Outono da Infância".

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2023/Como-preparar-a-educa%C3%A7%C3%A3o-para-o-uso-de-intelig%C3%AAncia-artificial?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

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