Por Annie Oviedo*, na Le Monde Diplomatique Brasil
Espinha dorsal das cidades, o transporte público opera por meio de custeio público de grupos privados que priorizam lucro em detrimento dos serviços. Municípios não conseguem arcar. Uma proposta se inspira no SUS para nacionalizar e zerar a tarifa da mobilidade
A mobilidade urbana gira em torno de um fato simples: ela só existe e se efetiva a partir da ideia de coletividade. Não tem como pensar cada trajeto individual, dos milhões que existem, de modo isolado. O individualismo acachapante que pervade quase todas as esferas da vida humana precisa ser deixado de lado ao pensar sobre como lidar com a mobilidade.
Talvez seja justamente por isso que a mobilidade, apesar de essencial para o funcionamento de qualquer aglomerado urbano, está largada a si mesma e enfrenta problemas estruturais gravíssimos, já antigos, para os quais não se enxerga qualquer solução no horizonte. Em 2023, o ano em que se completou uma década desde os protestos de junho de 2013, cujo estopim foi o aumento das tarifas de ônibus, os problemas persistem; talvez tenham se agravado. As tarifas caras, a falta total de transparência sobre os custos do serviço de transporte público, a baixa qualidade, o descaso dos governos. Os problemas não estão somente nos sistemas de ônibus, passam também pela inexistência de expansão cicloviária, inacessibilidade de ruas e calçadas, entre outros.
A recente campanha de greves unificadas promovida pelos sindicatos do Metrô de São Paulo, da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), que começou em 3 de outubro, teve como estopim a luta contra a privatização das três empresas, proposta pelo governo paulista. No entanto, o debate público sobre o tema girou em torno da possibilidade de processar ou não os sindicatos e da criminalização dos manifestantes, sem discutir o que a mudança de fato significa para a mobilidade, assim como aconteceu em 2013.
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) foi rápido em afirmar que a greve era prova da necessidade das privatizações, pois as linhas privadas eram as que estavam funcionando, garantindo os deslocamentos da população. Ironicamente ele foi prontamente desmentido pela Via Mobilidade, que gerencia as linhas 8-diamante e 9-esmeralda: um trem na linha 9 sofreu pane, com direito a faíscas entre o vagão e os cabos alimentadores, gente saindo do trem e tendo que andar pelos trilhos, um caos generalizado. Alguém falou em sabotagem por parte dos sindicatos, mas o fato é que as falhas nas duas linhas são tristemente comuns, e este número subiu vertiginosamente desde a privatização.
Há muitas questões em torno da ideia de concessão dos sistemas à iniciativa privada e a segurança é um item crucial, que comprovadamente tem sido deixado de lado.
Um dos principais questionamentos econômicos ao modelo de privatização dos transportes sobre trilhos é o funcionamento da Câmara de Compensação Tarifária, um dos recursos mais perversos de custeio público dos sistemas privados. Esse modelo vigora na cidade de São Paulo, e em várias outras, com o objetivo de dividir as receitas tarifárias e reparti-las entre os diferentes concessionários que operam em um mesmo município. Ali se junta o dinheiro pago em tarifas nos vários sistemas de transporte. As empresas concessionárias privadas, em razão dos contratos de concessão, têm preferência no acesso ao dinheiro e recebem recursos para além das tarifas pagas em suas linhas. O Metrô e a CPTM, mesmo transportando mais passageiros, ou seja, produzindo mais receita, ficam com o que sobra, sendo que há anos em que não sobra nada. O resultado é um modelo em que o lucro da concessionária, ente privado, é garantido através de dinheiro público, que poderia ser melhor utilizado se investido na qualidade do transporte.
Um exemplo o que pode acontecer com São Paulo, se a privatização for o caminho escolhido, é o que aconteceu no Rio de Janeiro, com a SuperVia, concessionária do sistema ferroviário do Estado do Rio de Janeiro: a tarifa hoje é de R$7,40, com pressão da empresa para que aumente ainda mais; o serviço é terrível, com constantes interrupções, mortes, estações inseguras e longos intervalos entre os trens. Belo Horizonte também é uma referência, onde a recente privatização do metrô fez a tarifa pular de R$ 4,50 para R$ 5,30.
No entanto, para entender os problemas de transporte coletivo sobre trilhos, é relevante como essa questão se apresenta nos sistemas de ônibus.
Concessões de ônibus
O sistema de ônibus municipal da maioria das cidades já funciona em uma lógica privada, em que a concessionária tem um lucro mínimo previsto em contrato. Como não existem subsídios públicos em quase nenhuma cidade, o lucro mínimo tem de ser garantido por meio de aumentos tarifários. A concessionária ganha com base no número de passageiros que transporta (cada passageiro equivale a uma tarifa). Dessa forma, é de seu interesse reduzir custos para ampliar a margem de lucro. E como reduzir custos? Precarizando o serviço, com demissões de cobradores, corte de linhas e diminuição de frequência, cujo resultado são ônibus lotados que passam cada vez menos.
E qual é o lucro dessas concessionárias de ônibus? Não se sabe, visto que não há qualquer transparência sobre os custos reais da operação do serviço.
Além disso, o reajuste tarifário previsto nos contratos de concessão não se baseia em uma análise dos custos reais incorridos. A maioria das grandes cidades adota um modelo de fórmula paramétrica. Nesse sistema, o valor do reajuste é estabelecido a partir de índices, ou parâmetros, de preço. Trata-se de índices gerais de preço do diesel, de outros insumos como lubrificantes e material rodante, preço de veículos, custos de mão de obra. Alguns são públicos, calculados pelo IBGE, enquanto outros são calculados por entes privados, como a Fundação Getulio Vargas. Enquanto índices de preço, sua natureza é inflacionária, ou seja, seu valor é sempre positivo: a tendência dos preços em nosso país é sempre de aumentar. Na fórmula paramétrica, esses índices são ponderados e multiplicados por uma tarifa base, normalmente a que estava em vigor quando o contrato começou. Quando um valor positivo é multiplicado pela tarifa corrente, seu valor aumenta. Isso significa, portanto, que o reajuste tarifário será sempre positivo, para cima, mesmo que o concessionário tenha conseguido reduzir seus custos.
A pandemia escancarou as fissuras desse modelo, com pequenas e médias empresas de ônibus indo à falência; necessidade de subsídios públicos sem qualquer transparência para garantir um funcionamento mínimo do serviço; e cidades em que a concessionária simplesmente abandonou o serviço, que precisou ser assumido pela prefeitura. A redução de passageiros, impensável nos anos 1980 e por boa parte dos anos 1990, tem sido constante nos últimos vinte anos, seja por conta do aumento da motorização individual, em época de bonança econômica, ou pela impossibilidade de pagar, em épocas de crise (e de trabalho autônomo ou precário, que não garante vale transporte). Não é para menos, as tarifas seguem aumentando, e a qualidade caindo. Se você tem a possibilidade de não utilizar o transporte coletivo, não usará. O carro e a moto são, portanto, as soluções possíveis de deslocamento, especialmente em lugares onde o transporte não chega ou é muito limitado, em geral nas periferias.
Mobilidade como direito essencial
Na nossa sociedade, o carro e a moto têm funcionado como soluções individuais para um problema que é de natureza coletiva. Se amanhã todo mundo tentar sair de casa com seu próprio veículo motorizado, nossas cidades param, colapsam. O transporte coletivo é a espinha dorsal do espaço urbano, e é fundamental, também, para quem não o utiliza.
Quando pensamos na mobilidade urbana não apenas como um conjunto de ações de locomoção, mas também como um direito, assim como prevê a Constituição Federal em seu artigo sexto, percebemos então que o problema é ainda mais grave. Isso porque, apesar de a mobilidade ser um bem coletivo essencial, somente quem se locomove de transporte coletivo paga pelo seu funcionamento. Nenhum outro serviço público, realizador de direitos, funciona assim. A saúde e a educação são pagas pela coletividade, e seu uso é gratuito. O saneamento e a coleta de lixo são pagos individualmente, mas as tarifas não são iguais para todo mundo: quem tem mais, paga mais, quem tem menos, paga menos, e quem não tem, não paga nada. Por que não é assim também para o transporte coletivo?
Aplicar a tarifa zero no transporte público nada mais é do que uma maneira de garantir o direito constitucional ao deslocamento para toda a população. É possível custear o transporte de outros modos, permitindo assim que seu uso seja livre e gratuito. A tarifa, hoje, é uma barreira social que impede milhões de pessoas de acessarem outros direitos, como saúde, educação, trabalho, lazer etc.
Esse raciocínio ficou explícito no segundo turno das eleições de 2022, quando instituiu-se a gratuidade nos transportes públicos de todas as capitais do país e em mais centenas de municípios, pois entendeu-se que a cobrança dificultava a realização do direito-dever ao voto. Se a tarifa é uma barreira para esse direito, evidentemente que é também para a realização de outros.
Os exemplos são muitos: a principal causa de evasão em cursinhos populares é o custo do deslocamento; o valor do vale-transporte e a proximidade do local de trabalho tendem a favorecer na obtenção do emprego, prejudicando muito quem mora nas periferias. Mesmo que existam eventos culturais e políticos gratuitos, como chegar até eles, especialmente se estamos falando, por exemplo, de uma família de quatro pessoas? O custo social e econômico desse modelo é altíssimo, para além da tarifa, envolvendo a perda de produtividade no trânsito, mortes e ferimentos em acidentes, segregação socioeconômica e espacial.
Precisamos de uma mudança
Um primeiro passo para alterar o atual sistema é mudar a lógica de financiamento do transporte: não pode ser somente a população usuária, que na sua maioria pertence às faixas de renda menores, a única responsável pela manutenção econômica dos sistemas. Os recursos precisam vir da sociedade como um todo. Outra mudança importante é a forma de remuneração: por que não remunerar, por exemplo, por quilômetro percorrido independentemente da lotação, favorecendo assim a qualidade?
Nesses dois exemplos, porém, já encontramos as principais dificuldades para os municípios: a imensa maioria não tem recursos para custear a mobilidade, ou a capacidade técnica necessária para repensar a estrutura de remuneração. Essa situação não é exclusiva da mobilidade, ocorre também na saúde: os municípios não possuem recursos para bancar sozinhos seu sistema público de saúde. Para isso temos o SUS, Sistema Único de Saúde. O mesmo ocorre com a Assistência Social, para a qual existe o SUAS, Sistema Único de Assistência Social.
Poderíamos, então, também ter um Sistema Único de Mobilidade, o SUM. Qual a lógica por trás disso? Vejamos o exemplo do SUS. As grandes diretrizes nacionais, que incluem compra de vacina, quando e quais campanhas de vacinação e prevenção levar adiante, qual o entendimento sobre o que é Saúde da Família, entre vários outros exemplos, são decisões tomadas no âmbito do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde. Sua escala é nacional. Na ponta oposta, temos a Unidade Básica de Saúde (UBS). A UBS não tem como planejar compra de vacinas, ou campanhas de prevenção, ou uma política para a primeira infância. Entretanto, quem trabalha na UBS conhece os pacientes e suas necessidades. Os agentes de saúde vão de porta em porta, são em geral eles próprios daquela região. Ou seja, de um lado, as grandes diretrizes são decididas na esfera federal, enquanto na outra ponta, no espaço local do bairro ou da região, essas diretrizes são colocadas em prática por quem conhece as particularidades daquela localidade.
É perfeito? Não. Eu moro no centro da capital mais rica do país e na minha UBS de referência falta médico. Porém, existe e, graças a uma longa luta, pode e deve melhorar.
A proposta de um Sistema Único de Mobilidade se espelha nessa ideia, com decisões e diretrizes estabelecidas de maneira unificada, em âmbito federal, com provisão também federal de recursos. Por exemplo, para uma meta nacional de redução de poluentes; ou para a criação de um modelo novo de remuneração que possa ser replicado pelas cidades; para a compra agregada e nacional de insumos, como veículos elétricos, a preços reduzidos, e distribuição para as cidades; além de recursos para a capacitação técnica de servidores estaduais e municipais. E por que não um sistema único de informações, com uma lista completa dos operadores de transporte público no Brasil, com a quantidade de municípios que têm transporte coletivo e sua produção quilométrica?
Na outra ponta, o município fica com o planejamento da rede, com espaços verdadeiramente participativos, porque, afinal de contas, quem conhece melhor o sistema do que as pessoas que nele trabalham e que através dele se deslocam? Aos governos estaduais pode caber um papel intermediário, de incentivo à criação de consórcios de municípios, fortalecimento das gestões metropolitanas, expansão da rede intermunicipal.
Evidentemente, as dificuldades são formidáveis, a começar pela necessidade de recursos. Existe também o fato de que os sistemas de ônibus são operados de maneira privada, e isso precisa ser equacionado; calçadas são responsabilidade privada do proprietário do terreno; e como regulamentar e incentivar o transporte fluvial? No entanto, não é a lista de dificuldades que deve nos desanimar. Manter o sistema como é hoje tem um custo social altíssimo: deslocamentos piores, segregação, mortes por acidentes, poluição e caos urbano.
Existe, hoje, uma proposta de Sistema Único de Mobilidade apresentada pela Coalizão Triplo Zero, um conjunto nacional de entidades da sociedade civil, pessoas pesquisadoras e movimentos sociais. Esta se baseia, assim como a própria coalizão, em três premissas: zero tarifa, zero mortes no trânsito e na rua e zero emissões de poluentes. A ideia que sustenta essas premissas é de que a mobilidade é uma questão nacional, e pode e deve ser um instrumento de combate à pobreza e às mudanças climáticas, uma política pública integrada capaz de, de fato, conectar as pessoas e os espaços.
Além das discussões sobre a construção do SUM em espaços da sociedade civil, tramita hoje a PEC 25/2023 (Proposta de Emenda Constitucional) no Congresso Nacional, estabelecendo a criação de um Sistema Único de Mobilidade que garanta a tarifa zero nos transportes coletivos.
Tratar a mobilidade apenas como uma forma de garantir lucro para poucos seguirá produzindo os mesmos resultados que temos visto até então: especulação imobiliária desenfreada, segregação cada vez mais profunda, empobrecimento, serviços caros e de péssima qualidade. Precisamos com urgência de mudanças. Percorrer o caminho de construção do SUM, entendido como uma política pública nacional integrada e participativa, em direção a esses objetivos, por difícil que possa parecer, está ao nosso alcance é a maneira possível de revolucionar a vida nas cidades.
*Annie Oviedo é analista de mobilidade urbana do Idec
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