quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O sorriso da minha mãe e as crianças de Gaza

Por Por Antônio Carlos de Almeida Castro*

 Homem segura criança ferida após bombardeio a campo de refugiado no hospital al-Quds, em Gaza

Homem segura criança ferida após bombardeio a campo de refugiado no hospital al-Quds, em Gaza — Foto: MAHMUD HAMS / AFP
 
Todos são capazes de dominar a dor, exceto aqueles que a sentem.”
 Willian Shakespeare

Nunca gostei do Natal. Não me emociono com o clima e muito menos me sinto envolvido pelas histórias que compõem o imaginário desta data que, para muitos, é tão especial. Respeito e faço todo o ritual para estar de acordo com quem realmente vive o espírito natalino. Quando eu ainda era muito jovem, um primo fez questão de me dizer que Papai Noel não existia e essa revelação tirou um pouco a ilusão e a magia. Na época, meu pai estava muito falido e se endividou para comprar presentes para os filhos. Comecei, mais do que nunca, a não entender muito sobre o que realmente era a festa de Natal. Mas minha mãe fez presépios lindos: papel que imitava pedras e cavernas, colocou até um aquário para parecer um lago com peixes e tudo. Nessas horas eu até pensava que meu primo estava brincando comigo e que o Papai Noel ia entrar pela chaminé a qualquer momento. Mas não tínhamos chaminé, o que talvez explicasse a ausência do velho.

A proximidade do Natal, com o frenesim das compras, distanciou-me do sentimento que eu, quase infantilmente, pensava ser o que o puro espírito natalício deveria encarnar. A chegada dos filhos e a velhice da minha mãe transportaram-me para a doce ilusão de uma festa com a sensação de vivenciar o sentimento fraterno que justificava a magia do Natal. Dei por mim a comprar dezenas de presentes para a minha velha mãe e, sem qualquer culpa, gostei muito do acto pouco cristão de a ajudar a abrir as caixas que fiz questão de decorar com laços e fitas.

Seu sorriso foi a coisa mais próxima que ela sentiu e identificou como a presença do menino Jesus. Lembro-me do presépio, em que ela colocou um berço vazio, 30 dias antes da noite do parto, e todos os seus filhos e primos tiveram que colocar um canudo para confortar o bebê quando ele nascesse. Mas só quem fez uma boa ação poderia jogar um canudo. Nesse espírito, o Natal teve uma sensação diferente da troca de presentes.

Para quem acredita, e tem fé, é quase inevitável não pensar no nascimento de Cristo em Belém. Este ano não houve festa na cidade palestina de Belém, na Cisjordânia. No local onde estava sendo construída uma enorme árvore de Natal, estavam expostas uma grande bandeira palestina e um banner: “Os sinos de Natal de Belém tocam para um cessar-fogo em Gaza”.

Contudo, parece que Deus não ouviu o chamado. Na noite de 24 de dezembro, pouco antes da meia-noite, Israel atacou um campo de refugiados em Maghazi, no centro de Gaza, causando mais de 70 mortes. Eram várias mulheres e crianças, como tem sido regra. É um plano de extermínio e genocídio de um povo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 160 crianças são mortas todos os dias em Gaza. Diariamente. Isso significa uma morte a cada 10 minutos. Com números pouco fiáveis, que certamente devem ser muito mais elevados, estima-se que mais de 6.000 crianças palestinianas foram assassinadas pelo exército israelita.

O número de bombardeamentos israelitas em Gaza é o mais elevado de sempre e ultrapassou a ofensiva americana contra o Estado Islâmico. Quase metade das bombas são lançadas sem um alvo específico, não são guiadas. Estas são chamadas de bombas mudas. As violações dos direitos humanitários internacionais são evidentes. E os crimes de guerra estão a acumular-se. É por isso que tantas crianças mortas. É realmente um genocídio.

A manhã desta segunda-feira, 25 de dezembro, conforme noticiado, também foi marcada por violência e sangue: Israel atacou o campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada, incluindo a cidade de Belém, considerada o local onde Jesus nasceu.

Há um mês, o Estado de Israel comentou eufórico que, até aquele momento, já tinha lançado mais de 12.000 bombas sobre Gaza – um território de 40 quilómetros de extensão, onde vivem mais de 1 milhão de jovens e crianças. Se, hoje, o menino Jesus nascesse de novo em Belém, certamente seria morto num ataque covarde. Israel teria sido capaz de executar o plano de Herodes e não teríamos noites tristes de Natal.

Refiro-me ao poeta Vinícius de Moraes, em Poema de Natal:

Pois é para isso que fomos feitos:

Por esperança no milagre

Pela participação da poesia

Para ver a face da morte –

De repente nunca mais esperaremos…

Esta noite é jovem; da morte, apenas

Nascemos, imensamente.

Este texto não representa necessariamente a opinião da CartaCapital.

Advogado

Originalmente publicado em https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-sorriso-de-minha-mae-e-as-criancas-de-gaza/

Fonte: https://aracajuagoranoticias.com.br/kakay-o-sorriso-da-minha-mae-e-as-criancas-de-gaza/

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