Por Eduardo Graça — São Paulo
Diretor da Escola de Filosofia da Universidade de Connecticut diz que conflito se dá entre modelos defensores de pureza étnica e fala em ‘responsabilidade coletiva’ pela tragédia
Em seus perfis em redes sociais, o filósofo Lewis R. Gordon, referência em estudos sobre racismo, não revela a nacionalidade. Escreve apenas “mundo”, em inglês. Faz sentido. Diretor da Escola de Filosofia da Universidade de Connecticut (UConn), nos EUA, ele é um homem negro judeu. Nasceu há 61 anos na Jamaica, então colônia do Reino Unido. Tem passaporte americano. Seus avós são chineses, tâmis e irlandeses. Tem bisavós nascidos na Jerusalém controlada pelos turcos e outros na África Ocidental. Tataravós etíopes. E sua produção ensaística bebe sem preconceitos tanto do cânone antirracista (intelectuais como W. E. B. Du Bois e Frantz Fanon), quanto da cultura pop (artistas como Jordan Peele, Chadwick Boseman e Missy Elliott) para denunciar definições eurocêntricas e colonialistas de raça.
Atento à guerra entre o Hamas e Israel, que já ceifou mais de 16 mil vidas dos dois lados, o filósofo afirma ser fundamental entender que o conflito no Oriente Médio se dá entre dois modelos conservadores, teocráticos e defensores de pureza étnica, próprios da extrema direita. “Não partir deste ponto, em qualquer discussão, conversa ou análise, é cair em armadilha perigosa e cruel”.
Gordon, que finalmente teve este ano um livro lançado no Brasil, “Medo da consciência negra”, pela Todavia, é uma das atrações do Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo, que termina neste domingo. Leia aqui os principais trechos da conversa exclusiva do acadêmico com O GLOBO:
A fabricação do racismo, a impossibilidade lógica da pureza racial e a construção cultural de identidades, inclusive as religiosas, são temas caros ao senhor. É tentador aplicá-los à guerra entre o Hamas e Israel...
Sim, pois seguimos cometendo o erro rasteiro de projetar no passado modelos políticos do presente. Palestina, por exemplo, é uma invenção do Império Romano para a área onde viviam os filisteus. O próprio judaísmo nasceu da adaptação de múltiplas tradições. Há muitos valores que identificamos hoje historicamente como africanos na formação judaica. A discussão de quem chegou primeiro lá não faz sentido. Estabelecer marcos temporais para avançar ideias é tática falaciosa do pensamento conservador purista. O momento idílico em que tudo começou, quando “éramos grandes”, é fantasia da extrema direita, que se vê também nos EUA e no Brasil, com resultados práticos cruéis. Meu problema com ela não é só filosófico, mas político. É a extrema direita quem luta neste momento em Gaza.
Após sete dias de trégua, explosões atingem o norte de Gaza
Dos dois lados...
Sim. O governo de Israel e o Hamas são duas representações desgraçadamente bélicas do pensamento ultradireitista. Os colonos judeus creem em um tempo histórico em que aquela terra foi apenas deles. Isso é uma inverdade, não aconteceu. E o Hamas vislumbra uma Palestina eliminada de judeus. Outra fantasia violenta que precisa ser denunciada. Não vai acontecer. São dois projetos de eliminação, os dois decididos a parir desastres totais para o outro lado.
Já se pode enxergar um cenário para o pós-guerra?
Essa é outra questão central. A lógica da extrema direita é a da guerra. E é preciso mais do que nunca pensar no que se quer para a Palestina do século XXI. Em como será a Faixa de Gaza, mas também Israel do pós-guerra. Elaborar projetos humanistas, e não de morte, que incluam os desejos dos que estavam até ontem nas ruas de Israel protestando contra o governo extremista. Que denunciem o erro histórico e consequente de se nomear um Estado judeu quando não há um palestino nas mesmas condições. Precisamos todos sair deste conflito com uma solução que não signifique mais desumanização de pessoas, massacres como o que o Hamas fez em outubro ou o ainda maior da reação de Israel. Falo na primeira pessoa do plural porque o futuro daquela região não depende apenas dos dois lados da guerra. Sabe qual foi um dos aspectos mais chocantes do conflito para mim?
Qual foi?
O fato de os EUA terem enviado porta-aviões de guerra para o Mediterrâneo e não navios-hospitais. Aliás, nem a Otan, nem a União Europeia. Quantas milhares de vidas não teriam sido salvas? Há uma responsabilidade coletiva moral e legal pela tragédia na Faixa de Gaza.
O senhor mencionou o massacre do Hamas. Como vê protestos de universitários nos EUA direcionados exclusivamente a Israel?
Como uma rejeição do mundo adulto, o desejo de uma narrativa mais simples, com mocinhos e bandidos. Ao crescer, aprendemos que, às vezes, por mais que tentemos fazer o melhor, nos descobrimos no papel de vilão. E nos EUA hoje há algo que chamo de mercantilização do esquerdismo, que muito me preocupa.
Como assim?
Muita gente de esquerda não vê que passou a usar a lógica, os métodos, da direita. Viraram “direitistas de esquerda”. Por outro lado, na UConn, fiz questão de conversar com os manifestantes. É minha obrigação encorajá-los a serem cidadãos ativos, que expressem suas opiniões. Criminalizá-los, tratá-los como inimigos, seria um erro. Não posso me dar ao luxo de ser arrogante. Há momentos em que estamos errados, sim, e os estudantes, certos. Não posso fingir que eles, ainda que equivocados ao não denunciarem o massacre do Hamas, não estejam gritando contra a morte de 15 mil seres humanos. Pessoas que, há um mês, estavam vivas. Se não for uma razão para protestar, qual será?
O senhor foi professor universitário na África do Sul. Como vê comparações entre o apartheid e a ocupação israelense na Palestina?
Comparações históricas e generalizações são sempre perigosas. Que luta contra supremacistas brancos recebeu bilhões de dólares para enfrentá-los, como ocorre com o Hamas? Há hoje guerras genocidas na África que têm como combustível o arabismo teocrático, refratário aos direitos LGBTQIA+ e o das pessoas negras. Idealizar vitimizados é problemático. E as comparações da luta por direitos civis dos palestinos com a dos negros nos EUA, por sua vez, apagam algo central: ao contrário da percepção de uma ancestralidade externa, da diáspora forçada da escravidão, em Gaza e Israel a batalha é para provar que se é mais do lugar do que o outro. Campo fértil para a extrema direita.
Fonte: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/12/03/e-a-extrema-direita-quem-luta-dos-dois-lados-em-gaza-afirma-filosofo-judeu-lewis-r-gordon.ghtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newssemana
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