Por Fernando Gabeira*
Nos dias das grandes enchentes no Sul, morreu no Rio um gaúcho especial, o ator Paulo César Pereio. Fomos amigos, vivemos juntos alguns meses num pequeno apartamento da Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. Não tínhamos onde morar e aproveitamos que Tarso de Castro, outro gaúcho, precisava sumir, para tomar conta do lugar. Era o momento do pós-golpe de 1964, e Tarso se sentia visado por ter dirigido o Panfleto, um jornal de Brizola.
No mesmo prédio, alguns andares acima, viviam duas recém-chegadas garotas gaúchas. Uma gostava de literatura, outra era cantora. Eu me interessava pela literatura do Sul, pois tinha lido um conto de Josué Guimarães, publicado na revista Senhor. A cantora se apresentava no Beco das Garrafas e alguns anos depois se tornou famosa: Elis Regina.
Pereio sofria de uma doença hepática, mas certamente estava preocupado com o Sul. Tinha um temperamento difícil, mas aprendi a lidar com ele. Às vezes, fiz brincadeiras que ele não aprovava. Uma delas foi escrever que no palco, em vez de dizer “não, Antígona”, ele disse “não, Cleópatra”. Era um excelente ator e às vezes usava sua bela voz em propaganda, para complementar o magro orçamento.
Ao voltar do exílio, interessei-me pelo Sul, pois o Rio Grande era uma espécie de berço do movimento verde. Em 1971, foi criada a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural. Tinha à frente uma figura de temperamento forte: José Lutzenberger. Foi secretário de Collor, um governo que hospedou a maior conferência ambiental do Pós-Guerra, a Rio-92, e demarcou as terras ianomâmis, gesto que hoje incendiaria o Congresso Nacional.
Porto Alegre teve talvez o primeiro vereador ecologista do Brasil, e hoje, quando observamos a tragédia, vemos o imenso potencial subjetivo de todo o estado. Milhares de voluntários, um resgate meticuloso de pessoas e animais.
Trabalhei na imprensa de lá, Zero Hora e Rádio Gaúcha, participei do excelente programa de debates “Fronteiras do pensamento”, viajei documentando o estado: São José dos Ausentes, vendo os cavalos no sol do inverno; cantos em talian nas parreiras de Serafina Corrêa; as luzes do espetáculo natalino em Gramado. Dava para encher uma página com tantas memórias.
Mas a síntese delas é que, para mim, a sociedade gaúcha tem grande potencial e pode exigir uma reconstrução que supere os erros do passado, adapte o estado às mudanças climáticas e seja uma espécie de farol para os novos tempos no Brasil.
A política profissional ainda é um foco de resistência. A prefeitura não investiu na prevenção em Porto Alegre. Apenas uma deputada gaúcha, entre 31, destinou verbas para conter desastres naturais, e o primeiro governo de Eduardo Leite mexeu em 480 pontos do Código Ambiental para flexibilizá-lo. A própria indicação do representante federal na reconstrução, Paulo Pimenta, ainda tem um viés político-eleitoral que não ajuda uma tarefa tão tecnicamente complicada como a que o Rio Grande tem pela frente.
No entanto o movimento positivo que existe na sociedade pode estabelecer um vínculo com a política e rejuvenescê-la diante da grandeza da tarefa. É falsa a discussão que separa sociedade de governo — ambos são necessários.
Na tragédia, o Rio Grande já superou pequenas divisões cotidianas, gremistas e colorados por exemplo. Todas as outras podem ser ultrapassadas também, porque não se joga ali apenas o futuro de uma fantástica região, mas o despertar de todo um país para a nova realidade climática, dado essencial para nossa sobrevivência.
Existe uma luz meridional que sempre encantou meus olhos de fotógrafo amador. Minha esperança é que ela brilhe e se transforme em realidade dentro de todos nós, que precisamos ver um pouco de futuro, além das nuvens cinzentas dos eventos extremos.
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