quinta-feira, 2 de maio de 2024

Para repatriar cérebros, respeite os cientistas

 Alicia Kowaltowski*

A inteligência artificial como objeto de pesquisa em Saúde nos artigos da  Reciis | ICICT | Fiocruz
Sem pesquisa científica própria, Brasil corre o risco de não ter soberania e desenvolvimento nacionais

Ciência, um processo em que trabalhamos coletivamente para explorar o universo, expandindo nosso conhecimento, é por natureza uma prática colaborativa e mundial. É por isso que é importante para o bom cientista ter experiência internacional imersiva durante sua formação. Trabalhar em projetos científicos no exterior permite que o jovem cientista aprenda novas técnicas e modos de pensar, além de ver diferentes maneiras de fazer perguntas e orientar outros jovens cientistas. Trabalhar no exterior, e junto a diferentes grupos, também permite estabelecer amplas redes de contatos e colaborações pelo mundo afora, que permitirão maior criatividade e avanço do conhecimento quando esses cientistas estabelecerem suas próprias linhas de pesquisa. 

Por esses motivos, e pela importância que trabalhar fora do Brasil teve em minha formação pessoal, sempre incentivei os jovens cientistas no meu grupo a realizarem estágios internacionais, além de ter experiência com diversos supervisores. Sair do ninho faz com que jovens cientistas amadureçam, juntamente com a ciência produzida por eles. E até recentemente não havia perda de cientistas com isso. Os números indicavam claramente que a grande maioria dos cientistas brasileiros voltava ao país para estabelecer grupos de pesquisa permanentes. Observei isso com meus estudantes: a maioria formada nos anos iniciais do meu laboratório estabeleceu carreiras em diferentes estados brasileiros. Essa situação mudou bastante nos últimos anos, em que vi crescer formandos que decidiram ficar no exterior. Ocorre em todo país uma diáspora científica, com a saída de cientistas brasileiros para o exterior. 

Deixo claro que tenho muito orgulho das conquistas e carreiras dos ex-estudantes do meu grupo, tanto daqueles que estão no Brasil quanto daqueles que, por circunstância ou oportunidade, se estabeleceram no exterior. Também tenho clara consciência de que cientistas brasileiros atuando internacionalmente possuem importância para a ciência internacional e nacional, frequentemente estabelecendo vínculos colaborativos fortes com grupos locais. Mas um país que perde mais cientistas do que ganha através de mobilidade internacional, ou que perde mais do que o planejado para seu investimento em formação de pensadores, precisa se preocupar com a atratividade da carreira científica local. Sem isso, corre o risco de não ter soberania e desenvolvimento nacionais, apoiados pela pesquisa científica própria. 

Para atrairmos verdadeiros talentos com permanência, precisamos, antes de mais nada, respeitar e nutrir o trabalho dos cientistas de excelência que já temos

Foi com esse intuito que foi lançado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) o programa Conhecimento Brasil, visando atração e fixação de talentos no território nacional, em instituições de pesquisa tanto públicas quanto privadas. Infelizmente, ao examinar a portaria que estabelece o programa, tenho grandes preocupações sobre sua sustentação e implementação. Programas visando fixação de talentos em ciência precisam ter como alvo cientistas de alto mérito, assegurar que estes tenham condições institucionais para realizar atividades científicas de fronteira e dar segurança para que haja perspectivas a longo prazo para esses indivíduos, sem as quais certamente não vislumbrarão retornar ao país. Não vejo nenhum dos pontos desse tripé fundamental corretamente abordado no programa apresentado.

Não há como cientistas de qualidade vislumbrarem um futuro em pesquisa no Brasil no momento, considerando que a última Chamada Universal para projetos de pesquisa do CNPq se deu com orçamento muito baixo, e em moldes esdrúxulos que requeriam forçosamente a realização de pedidos em grupos, o que dificulta o uso das verbas já enormemente limitantes para a realização de qualquer atividade científica (cerca de R$ 18 mil por ano por pesquisador, no máximo). Também não há como vislumbrar um futuro como cientista num país que tornou a atividade acadêmica tão burocrática que um pesquisador mal tem tempo de pensar. Essa bur(r)ocracia já se faz notável no primeiro passo da carreira, com os rituais absurdos envolvidos nos concursos públicos para contratação de docentes, coibindo a atração de talentos internacionalmente. 

A infraestrutura é também uma preocupação enorme para a continuidade de nossas carreiras. Embora eu trabalhe na maior e provavelmente melhor financiada universidade nacional, lidamos diariamente com condições altamente degeneradas nos nossos laboratórios, com infiltrações, infestações, problemas elétricos, hidráulicos, etc, o que limita nossa capacidade experimental. A situação dos nossos laboratórios piorou notadamente nos últimos anos, ao mesmo tempo que a burocracia para reverter a precariedade do ambiente físico aumentou, levando muitos de nós a nos questionar se seremos sequer capazes de continuar atuando no futuro próximo. O problema de infraestrutura não é abordado na portaria que estabelece o Conhecimento Brasil, em que as aplicações serão feitas por candidatos bolsistas, sem aparente avaliação da habilidade institucional de recebê-los. Esse ponto é preocupante não somente pela precariedade atual de muitas instituições de pesquisa, mas também porque o projeto envolve pesquisadores bolsistas atuando em empresas. Como se garantirá que elas permitirão a realização da pesquisa de fato, e não apenas usarão os jovens bolsistas do programa como força de trabalho?

O programa peca mais ainda na qualificação de candidatos às bolsas e auxílios. Há proibição explícita para pesquisadores que tenham vínculo empregatício no país, portanto, não serão investidos recursos nos corajosos jovens cientistas contratados aqui, mesmo que tenham sido treinados com ampla internacionalização. Em vez disso, se qualificam apenas pessoas brasileiras, com doutorado ou mestrado, que estejam atualmente no exterior. A inclusão de mestres é surpreendente, pois dissertações de mestrado não necessitam de avanço nas fronteiras do conhecimento e, portanto, não qualificam um jovem como cientista. Nem o doutoramento, o primeiro momento da carreira em que é necessário demonstrar avanço do conhecimento mundial, é por si suficiente qualificação para posições de pesquisa de mérito hoje. Jovens cientistas contratados como pesquisadores independentes em nossas excelentes instituições de pesquisa tipicamente precisam ter experiência pós-doutoral, completando assim o extenso treinamento necessário para serem pensadores francamente independentes. 

O fato de o programa Conhecimento Brasil exigir menos qualificação que de pesquisadores nacionais em concursos docentes, ao mesmo tempo que envolve recursos cerca de dez vezes maiores que os investidos na Chamada Universal, para pesquisadores emergentes no país, é um tapa na cara dos jovens cientistas nacionais que possuem a coragem de tentar realizar pesquisa, a despeito dos anos turbulentos e falta de previsibilidade que atravessamos. Os recursos preciosos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) alocados no programa seriam muito melhor investidos se voltados para um programa também inclusivo de jovens cientistas nacionais ou estrangeiros, com destacado mérito, em instituições brasileiras que demonstrem poder abrigar projetos ousados. 

Para atrairmos verdadeiros talentos com permanência, precisamos, antes de mais nada, respeitar e nutrir o trabalho dos cientistas de excelência que já temos. Chega de chamadas populistas e mal planejadas; basta construirmos uma realidade científica atraente que pesquisadores de mérito virão! 

*Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2024/04/30/para-repatriar-cerebros-respeite-os-cientistas-nacionais?utm_medium=email&utm_campaign=30042024_a_nexo&utm_content=30042024_a_nexo+CID_e1696bf0cac32dbe61feb130db71c41a&utm_source=Email%20CM&utm_term=nexo

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