sexta-feira, 24 de maio de 2024

A França dos novos “novos pobres”

 

Ilustração: Giorgia Massetani

 

 “NÃO SÃO OS AUXÍLIOS QUE SÃO MUITO ALTOS, E SIM OS SALÁRIOS QUE SÃO MUITO BAIXOS”

O governo francês anuncia novas medidas de austeridade. Suas próprias estatísticas, no entanto, deixam claro que é cada vez maior o número de famílias que não conseguem cobrir diversas despesas da vida cotidiana – aquecimento, alimentação, manutenção de veículo. Uma volta pela Bretanha permite ter a medida da amplitude dessa realidade nas zonas rurais e periurbanas



Uma manhã gelada de sábado em janeiro, no shopping center de Saint-Renan. Christine Floch vai comprar “duas, três coisinhas” na loja Action. Nós a encontramos no estacionamento, ela mostra seu smartphone. “Todo dia eu olho o aplicativo da [companhia elétrica] EDF para verificar meu consumo. Vamos ver!… Bem… Ainda é dia 20, e o valor da fatura já bateu o do mês passado…”. Ela guarda o aparelho, irritada, e esfrega as mãos para aquecê-las. “E eles ainda anunciaram aumento de 10% em fevereiro? Quanto tempo isso vai durar? Falam de sobriedade energética, mas já faz muito tempo que estamos abaixo dos 19 graus! Adoraríamos poder pagar os 19 graus…”. A sobriedade de alguns é o luxo de outros. “Há dois anos eu morava com minha filha. Agora estou sozinha, mas minha conta de luz dobrou, você acha isso normal?”. Christine vai reduzir ainda mais o aquecimento, usar um suéter a mais e espaçar a lavagem da roupa.

“É preciso ser esperto para se virar com isso”, resume a cuidadora domiciliar de 60 anos, “mas realmente não sei como as famílias fazem.” Os idosos para quem ela trabalha “muitas vezes aquecem apenas um cômodo”. E um número cada vez maior deles tenta voltar a trabalhar, observa Cendrine Perquis, conselheira do Centro de Emprego, na cidade vizinha. “Ontem mesmo, um casal de septuagenários, depois de receberem a conta [de luz] da Engie, que explodiu. Muitas pessoas na velhice já não fazem três refeições por dia e não podem se impor ainda mais restrições”. Além disso, “aqui no campo a maior parte das pessoas vive em casas, por vezes antigas, difíceis de aquecer, frequentemente sem recursos para fazer reparos, portanto em verdadeiras peneiras térmicas”.

“Tudo está subindo!”, desespera-se Josiane, uma aposentada na casa dos 60 anos que aguarda para retirar uma cesta de alimentos nas instalações da [organização assistencial] Secours Populaire, em Brest: entre o aluguel do apartamento, seguros, banco, contas de luz e telefone, não sobra muita coisa de que viver. “Comecei a trabalhar aos 16 anos, em vendas e depois em manutenção, e hoje recebo 907 euros de pensão por mês, menos que o mínimo de velhice [1.012 euros]. Sou obrigada a pedir ajuda, o que mais posso fazer? Isso é uma injustiça!”, conclui ela, embrulhada num grande casaco surrado, com o chapéu puxado até às sobrancelhas e o rosto protegido por um lenço atrás do qual parece querer desaparecer. Consultando seu computador, Bastien Caban, chefe da Secours Populaire de Finistère, que tem 28 sucursais, detalha: “Desde 1º de janeiro, já registramos 750 novos pedidos [para processos de ajuda alimentar que podem incluir de uma a doze pessoas], apenas para a filial de Brest. Em 2023, prestamos ajuda a 26.239 pessoas no departamento – isso é 27% mais do que em 2022”. Entre as pessoas atendidas, um número cada vez maior de aposentados, famílias monoparentais, trabalhadores pobres e estudantes “que vinham conseguindo sobreviver até agora, porém não estão conseguindo mais”.

É o caso de David, que estuda Engenharia. Uma voluntária com o avental azul da associação consulta a ficha indicativa dos donativos a que cada pessoa tem direito, conforme a situação. Ela diz ao rapaz, passando pela prateleira onde são armazenadas diversas caixas e garrafas: “Você tem direito a duas caixas de leite”, que ela entrega para ele colocar no carrinho. E então explica: “Antigamente, entregávamos sempre ao menos três por pessoa. Porém, temos cada vez mais beneficiários e cada vez menos donativos. Tentamos ter de tudo – carne, peixe, frutas e legumes, e também alguns supérfluos –, mas as coisas estão ficando apertadas. Para que todo mundo tenha um pouco, é preciso dividir”.

Com a sacola cada vez mais magra, David volta para o alojamento na cidade universitária, a 2 quilômetros dali. Em menos de uma semana, de sacola vazia, ele voltará à fila dos alimentos, mas desta vez em frente a uma salinha no hall da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade da Bretanha Ocidental. A mercearia solidária Agoraé oferece aos estudantes que preenchem critérios sociais a aquisição de alimentos a preços reduzidos. Entre 16h30 e 18h30, acotovelam-se por ali quase quatrocentos deles, um número em constante elevação. “Até o momento, não recusamos ninguém”, preocupa-se Mathilde Jaouen, uma das dirigentes da associação, “mas em alguns anos podemos nos ver obrigados a definir um número-limite de beneficiários, pois as quantidades de produtos estão começando a ficar restritas.” A mesma ansiedade se nota na [rede de restaurantes solidários] Restos du Coeur e na [organização caritativa] Secours Catholique.

Na Secours Populaire, é meio-dia e meia. A distribuição se encerra. O trabalho será retomado duas horas depois, após o intervalo dos voluntários. Muriel, a última beneficiária da manhã, empurra seu carrinho rumo ao estacionamento, onde o marido a espera. “Não vínhamos aqui desde novembro”, ela parece se justificar. Ajudando-a a colocar o conteúdo do carrinho no porta-malas do carro, o marido explica: “É complicado mesmo, porque no fim do ano a gente gastou muito. Temos três filhos. Podemos nos privar, mas as crianças… Além de tudo, elas ainda acreditam em Papai Noel…”. “Queremos que elas se sintam como as outras”, acrescenta Muriel. Muita gente com quem conversamos partilha dessa mesma aspiração: “Ser como todo mundo”.

Para Josiane, isso significa celebrar o aniversário dos netos no restaurante. No La Cantoche, um estabelecimento solidário do bairro popular Recouvrance, em Brest, que serve um menu único a um preço ajustado à renda dos clientes, eles comeram ovos mexidos, escalopes de peru com creme e cogumelos, e mousse de chocolate. A luz baixou na hora da sobremesa. A sala inteira cantou parabéns e aplaudiu quando as velas foram apagadas. Saciados, felizes, com a boca ainda cheia de chocolate, os netos de Josiane exclamaram “Obrigado, vovó!”.

Christine não comemorou o Ano-Novo. No Natal, queria “fazer alguma coisa boa”, mesmo que fosse além de suas possibilidades. “Eu me diverti, e não fui a única. Vi pessoas com carrinhos que elas não podiam pagar. Elas se endividaram para isso. Mas todo mundo precisa relaxar! Como todos, eu também só penso em dinheiro: olho minha conta bancária todo dia para terminar o mês não muito no vermelho.” Patrick G., assistente social do Centro Departamental de Ação Social (CDAS), explica que “aumentam cada vez mais os casos de superendividamento: muitas vezes, trata-se de pessoas que têm um rendimento regular, porém muito baixo; não são pessoas que estão em RSA [Renda de Solidariedade Ativa], pois a estas não concedem crédito”. Como no circo, elas se equilibram o tempo todo em suas despesas, sempre prestes a cair. “Essas pessoas penam para chegar ao fim do mês no zero e caem no vermelho ao menor imprevisto”. Por exemplo, um eletrodoméstico que quebra… Ou um projeto de viagem escolar que faz tomar um pequeno empréstimo, para não constranger as crianças. “Coisas como essas vão gradativamente as prendendo em uma espiral, mesmo que sejam pessoas que administram bem seu orçamento!”

Solène sabe como é isso. Desde que a correia de distribuição de seu carro falhou, as coisas degringolaram. “Sou auxiliar de vida. Sem carro não consigo trabalhar. Não sei como vou sair dessa.” Separada, ela cria sozinha duas crianças, por isso deixou o emprego como gerente de loja para trabalhar por conta própria e adaptar seu horário de trabalho. “No entanto, não tive mais sossego desde que parei de trabalhar por causa do carro. Vou para a escola na hora do almoço porque não tenho mais condições de pagar a cantina. Antes, me viro para preparar uma comida boa, graças à ajuda alimentar. Depois, de volta à escola. Também levo minha filha à psicóloga três vezes por semana, pois com tudo isso ela ficou abalada e sofre de fobia escolar.” E continua: “Os meios de transporte não são nada adequados: um ônibus passa pela manhã para Brest, a cidade grande mais próxima [a cerca de 30 quilômetros da pequena cidade costeira de Ploudalmézeau, onde ela vive], e outro à tarde, seguindo o horário escolar. Como eu faço?”. Uma observação partilhada por M. G., do CDAS: “As pessoas são criticadas por não fazerem nada, por não procurarem emprego, mas o trabalho nem sempre é acessível! É um problema bem real nas zonas rurais: ou você tem um meio de transporte, o que é caro, e cada vez mais caro, ou você fica preso, sem poder ir a lugar nenhum”.

Havendo transporte, “trabalho é o que não falta aqui!”, diz Cendrine em seu escritório na Casa do Emprego da cidade de Lanrivoaré, que não é atendida por nenhuma linha de ônibus. “Há estufas, construção, restaurantes, fábricas de alimentos. Temos uma grande rotatividade porque se trata de empregos temporários ou sazonais. Há também muitos empregos forçadamente de tempo parcial: 2 horas de faxina aqui, 10 horas de faxina ali, vamos somando”. Roger trabalha em tempo parcial há mais de vinte anos. Ele resume: “Não podemos escolher demais, só isso… Já estive em todas as fábricas da região: fábricas de conservas de legumes, abatedouros, indústria de ração animal e fábrica de leite em pó. Atualmente trabalho em uma fábrica de papelão”. Roger toma uma xícara de café atrás da outra, na sala da antiga fazenda que reformou a 4 quilômetros de Carhaix. Ele mudou de horário de novo. “Hoje começo às 13h; semana passada trabalhei à noite. Você precisa ser forte, porque a mudança de ritmo cansa. Tem gente que toma remédio para aguentar, eu me contento com cafeína!” Está fora de questão contestar a escala, que sai às quintas-feiras para a semana seguinte: “Há muita mão de obra, podemos ser substituídos a qualquer momento. Eles deixam isso bem claro. Ameaçam não aceitar a pessoa de novo ou colocá-la em licença por três semanas se não estiver satisfeita. Imagine ficar três semanas desempregado com empréstimos a pagar e despesas nas costas, é complicado!”.

Dente com cárie? É trabalhador

Para Évelyne Le Guern, que desde 2015 trabalha na Synutra, uma fábrica de leite em pó em Carhaix, esse sistema não é bom apenas para os patrões: “As pessoas preferem ficar em trabalho temporário porque paga melhor. Para mim é ruim porque meu braço dói e minhas costas também. Então prefiro ficar em contrato permanente”. Após ser demitida, em 2014, da fábrica de salmão defumado Marine Harvest, que foi transferida para a Polônia, ela disse a si mesma “nunca mais”. “Porém, me ofereceram uma vaga na Synutra, que estava abrindo. Precisei fazer 400 horas de formação, matemática, francês, aprender sobre o setor de lacticínios. Aos 47 anos, eu realmente não tinha vontade de voltar para a escola. Porém, na unidade de requalificação, eles nos pressionaram. Estávamos meio perdidos. Tínhamos acabado de lutar para evitar o fechamento da fábrica, visto que no ano anterior o lucro havia sido de 400 milhões de euros. Eu só pensava ‘trabalhei treze anos aqui só para engordar esses acionistas todos’…” Três funcionários suicidaram-se, outros não encontraram emprego, às vezes caindo para a categoria de “inempregáveis”, dado seu estado de deterioração física e psicológica.

Entretanto, o que irrita Évelyne são os “assistidos”: “Quando penso em como era a pobreza, na minha mãe que voltou à escola aos 38 anos para tirar o certificado escolar e ser contratada na cozinha do hospital de Carhaix, e vejo gente que não faz nada e vive de benefícios, não consigo entender! Você acorda de manhã, trabalha feito um cachorro para ganhar um salário de merda e… não ganha nada, zero! Minha mãe não consegue nem pagar uma casa de repouso com a aposentadoria, então vou ter de fazer um empréstimo para isso… Quem tem dentes cariados são os trabalhadores; os outros estão bem cuidados!”. Contudo, recorda M. G., “a assistência é para sobreviver a cada dia, não para viver. Além disso, ela caiu tanto e tem sido tão complicado conseguir que ‘ser assistido’ já não é grande coisa. Tive aqui uma mãe de família que começou a se prostituir para pagar as contas. Vejo crianças atuando como vigias ou pequenos traficantes de drogas para ajudar a família a pagar o aluguel. Não sei se essa é a vida que muita gente sonharia ter…”.

De um lado, o endurecimento das condições de acesso aos benefícios públicos; do outro, cada vez mais pessoas dependendo disso porque seus rendimentos não bastam para viver: “Em 1985, quando comecei na ação social”, continua G., “quase não víamos assalariados. Na época, o trabalho pagava adequadamente. Agora vejo muitos trabalhadores pobres. Não são os auxílios que são muito altos, e sim os salários que são muito baixos”. Karine L., assistente social, concorda: “Tudo está se precarizando. Por exemplo, hoje muita gente trabalha na [agência pública dedicada ao emprego] France Travail com contratos de seis meses, nem sempre renováveis, sem formação específica. Como esperar que essas pessoas sejam eficazes na busca de emprego para alguém?”.

A filha de Christine, também cuidadora domiciliar, tem enfrentado essa situação. “O senhor de quem ela cuidava acabou de ser hospitalizado”, conta a mãe. Antes, ela trabalhava para uma agência. Todavia, a pressão ficou insuportável. “Eles rastreavam os funcionários com smartphones para verificar se não passávamos muito tempo com cada cliente. Isso faz a gente tratar a pessoa de quem estamos cuidando como um objeto.” Então ela e a mãe decidiram “entrar com o pedido na France Travail”. Contudo, as horas de cuidado do “senhor” na condição de trabalhadora independente não dão direito a solicitar seguro-desemprego. Christine se desespera pela filha: “Faz semanas que somos mandadas de uma agência a outra. Uma vez é um conselheiro de Rennes que atende o telefone, da outra é alguém de Brest. A gente nunca sabe com quem está nosso processo, e eles também não! Tudo é feito por telefone ou pela internet, não conseguimos ver ninguém, estamos enlouquecendo!”.

O Estado sobrecarrega as associações

Cendrine concorda: “Tudo é virtual, não se fala mais com ninguém. Muita gente está perdida, e não são apenas os idosos!”. No entanto, não se trata apenas da questão da digitalização.1 A poucos meses de se aposentar, M. G. conta, desiludido: “Quando comecei, passávamos entre 70% e 80% de nossa carga horária em atendimento direto, cara a cara. Hoje, é de 20% a 30%. No tempo que resta, temos de fazer relatórios e verificar os processos, como se a maioria das pessoas que recebem benefícios sociais estivesse cometendo fraude”. No fim de 2023, o governo reformou a RSA. “Como supostamente já não podemos ajudar as pessoas”, lamenta o agente do Centro Comunal de Ação Social (CCAS), “vamos mandá-las de volta para a France Travail, obrigando-as a assumir os empregos de merda que ninguém quer, e por um valor abaixo do salário mínimo horário”.

Enquanto prevalecem as suspeitas e os constrangimentos, muitos potenciais beneficiários desconhecem seus direitos ou desistem do processo. Em 2022, um quinto dos domicílios elegíveis para a RSA não pedia o benefício.2 Para Caban, da Secours Populaire, ao tornar-se inalcançável, ou persecutório, “o poder público acaba sobrecarregando o universo associativo. Só que não temos recursos para ajudar todo mundo”. O Estado social também tende a terceirizar. “Agora somos obrigados a enviar pessoas a prestadores privados”, confirma Karine L. Por exemplo, para uma das 99 sucursais da Pimms Médiation, destinada a “facilitar o acesso das pessoas aos serviços públicos e aos direitos sociais”, financiada por La Poste, Keolis, EDF, SNCF, Enedis, Suez, Veolia e Engie, ou para a previdência complementar Malakoff Humanis, para apoiar quem não consegue pagar as contas dessas “empresas parceiras” – ou preencher seu pedido de assistência habitacional personalizada (APL), ou ainda a declaração de imposto. “Imagine um serviço financiado pela EDF que aconselha as pessoas sobre as contas da EDF! Não tem o menor cabimento!”, protesta Karine.

Há quatro anos, o governo lançou o projeto de agências France Services, para “fortalecer a presença dos serviços públicos de proximidade”. Sébastien Marie, prefeito do pequeno município de Plounéour-Ménez, nos Monts d’Arrée, conta: “Há dez anos, tínhamos um posto de correios. Agora é uma agência postal, então é a prefeitura que faz a gestão com o pessoal municipal. Antes, tínhamos um centro fiscal em Pleyber-Christ, a 10 minutos daqui. Agora temos de ir a Morlaix, a 30 minutos. Com outros oito municípios, nos organizamos para ter uma agência France Services itinerante. Então, toda quarta-feira, alguém da France Services vem aqui na prefeitura para dar orientações sobre uma dúzia de serviços públicos: impostos, aposentadoria, benefícios sociais etc. Porém, a principal tarefa é ajudar as pessoas que têm dificuldades com a internet a entrar com pedidos e acompanhar seus processos. Então a prefeitura passa a ser a Casa do Povo. E isso significa que pode haver diferenças fenomenais de um município para outro, dependendo das vontades políticas locais”. O financiamento das agências France Services é em grande parte feito pelas prefeituras, em detrimento da manutenção das escolas e da construção de habitações sociais. “É um erro nos obrigar a assumir o lugar do Estado central”, lamenta Guy Pennec, prefeito de Plourin-lès-Morlaix. “Ele precisa ser lembrado de seu papel, sua importância e, principalmente, de suas obrigações.”

Os moradores de Carhaix fizeram isso. “Agora, nosso hospital público é reconhecido como tal”, celebrou o prefeito Christian Troadec, na France Info, em 27 de outubro de 2023, após a assinatura de um acordo que compromete o Estado francês a reabrir as emergências noturnas, bem como a manter os serviços de cirurgia e maternidade. A presidenta do comitê de defesa do hospital de Carhaix, Annie Le Guen, conta como a população precisou sair às ruas várias vezes em 2023, sobretudo em setembro, para exigir o fim da “regulamentação” do serviço de emergência instituída no início de julho de 2023, por falta de médicos. “Usam palavras enganosas para trapacear melhor. A realidade do território vivido é que o serviço não foi regulamentado, e sim encerrado. Eles colocaram um telefone na entrada de emergência para podermos ligar para o número 15 em caso de fechamento, em vez de ligar do estacionamento tentando conseguir sinal. E tínhamos de esperar até dizerem, pelo telefone, a qual hospital poderíamos ir. Por causa disso, houve tragédias, gente que teve de voltar para casa, pessoas que tiveram seu estado de saúde agravado, outras que precisaram pegar uma hora de estrada para chegar a um serviço de emergência que não pôde prestar atendimento imediato, pois se viu subitamente sobrecarregado!” Matthieu Guillemot, porta-voz do comitê de vigilância do hospital de Carhaix, acrescenta: “E nem todo mundo tem licença”. Ele ainda questiona: “Se seu pai ou sua filha estão hospitalizados em Brest ou em Morlaix, como você vai vê-los se precisa trabalhar? Contudo, nós lutamos, não desistimos, ocupamos as instalações da ARS [Agência Regional de Saúde], éramos milhares de pessoas protestando, e ganhamos. Conseguimos dobrá-los. Entretanto, tudo isso deixa cicatrizes e até ódio. Quando nos mobilizamos contra o encerramento da maternidade, a diretora do Hospital Universitário de Brest-Carhaix, que veio diretamente de Paris, onde ocupava um importante cargo na AP-HP [Assistance Publique – Hôpitaux de Paris], teve a audácia de declarar: ‘Se as mulheres da Guiana levam três dias de canoa para dar à luz, as mulheres da Bretanha Central podem viajar uma hora para fazer a mesma coisa!’”.

 

Desacreditar o movimento

“Esse desprezo, esse olhar das elites, isso é uma coisa insuportável”, conclui um proprietário de restaurante que foi um dos porta-vozes do movimento dos Boinas Vermelhas em 2013.3 Évelyne, que esteve muito envolvida, conta: “Na época, estávamos todos mobilizados, nós, os trabalhadores, para defender nossos empregos ameaçados pelo fechamento de fábricas, e outros pela retirada da ecotaxa. A mídia fez de tudo para desacreditar o movimento, mas, na verdade, era apenas um povo se levantando. Trabalhamos para pagar as contas, não temos lazer, não temos dinheiro para nada. Será que um dia vamos sair da lama?”. O movimento formou-a politicamente, e hoje ela milita no Novo Partido Anticapitalista (NPA): “Teci laços, conheci pessoas que não teria conhecido fora da manifestação, porque na fábrica, com a rotatividade e o trabalho temporário, não nos conhecemos de verdade, não conseguimos conversar. Hoje estou muito mais envolvida nas lutas”. Pelo menos quando pode, pois, “quando temos dor em todo lugar e estamos exaustos do trabalho, não necessariamente temos ânimo para passar o fim de semana em um protesto tomando cacetada e gás na cara!”.

Para Christine, que foi muito ativa durante o movimento dos Coletes Amarelos de 2018 a 2019, “as pessoas estão resignadas, cada uma cuidando das próprias dificuldades. Estamos na corda bamba, nos segurando para não cair. Fazer greve e protestar custa caro”. No entanto, destaca M. G., “o sentimento de injustiça ainda existe. Não sei qual será a faísca que vai acender a pólvora, mas em algum momento vai acontecer, pois as pessoas, para qualquer lado que olhem, encontram portas fechadas. Houve os Boinas Vermelhas, depois os Coletes Amarelos; eles foram sufocados sem soluções, apesar de chamarem a atenção. Vieram as reformas previdenciárias, milhões de pessoas nas ruas, e disseram ‘É assim e pronto’. Então todo mundo foi para casa, mas…”.

Entretanto, o primeiro-ministro francês “assume totalmente” uma nova reforma do seguro-desemprego (Le Monde, 5 abr. 2024). Na BFM, em 5 de maio de 2023, Gabriel Attal até celebrou as “medidas difíceis”: nova redução na duração dos pagamentos e novas restrições ao direito ao benefício, assim como intensificação dos controles para forçar os mais vulneráveis a aceitar trabalhos que nenhum membro do governo gostaria de ver imposto a seus entes queridos. E jamais verá imposto a um ente querido…

Precisamos nos esforçar um pouco para imaginar, portanto, quão “difíceis” tais medidas seriam para Attal ou quanta coragem ele teria para “assumir” tal violência.

*Maëlle Mariette é jornalista.

1 Ler Simon Arrambourou, “Les déshumanisateurs” [Os desumanizadores], Le Monde Diplomatique, abr. 2024. 

2 Patrick Cingolani, La Précarité [A precariedade], Presses Universitaires de France, Paris, 2023.

3 Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, “Malaise français, colère bretonne” [Mal-estar francês, ira bretã], Le Monde Diplomatique, fev. 2014.

Fonte:  https://diplomatique.org.br/a-franca-dos-novos-novos-pobres/

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