Por 25 Mai 2024
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“Assumindo uma postura de escuta da voz das mulheres, nós, homens, colocamo-nos na posição de escutar alguém que vê a realidade a partir de uma perspetiva diferente e somos, assim, levados a rever os nossos projetos, as nossas prioridades. Às vezes, sentimo-nos desorientados. Às vezes, aquilo que ouvimos é tão novo, tão diferente da nossa maneira de pensar e de ver, que nos parece absurdo, e sentimo-nos intimidados. Mas esta desorientação é saudável, faz-nos crescer.”
É desta forma que o Papa Francisco reage aos três estudos reunidos em “Desmasculinizar a Igreja?” – Análise crítica dos “princípios” de Hans Urs von Balthasar, livro que será publicado pela Paulinas Editora nesta semana, e que será apresentado na Feira do Livro de Lisboa, no próximo domingo, dia 2 de junho, às 18 horas. Intervêm o dominicano frei José Nunes, Teresa Toldy, autora do livro Deus e a Palavra de Deus nas Teologias Feministas, e Teresa Bartolomei, do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER), da Universidade Católica Portuguesa. Os textos correspondem às intervenções das teólogas Lucia Vantini e Linda Pocher, bem como do teólogo Luca Castiglioni, numa reunião do Conselho dos Cardeais, a convite do Papa.
“A quem reivindica relações mais justas e evangélicas entre homens e mulheres na Igreja, é costume responder com uma redutora reproposta do «princípio mariano-petrino» de Hans Urs von Balthasar (1905-1988), um dispositivo que deveria valorizar as diferenças, mas que, na realidade, marginaliza as mulheres, idealizando-as, e funciona como legitimação de privilégios e injustiças”, lê-se na síntese de apresentação do livro. É daí que parte o contributo de Lucia Vantini, “propondo a redescoberta das mulheres reais, interrogando a consciência masculina e dando vida a uma cultura do nós, da complexidade, da interconexão, da liberdade da diferença e na diferença.
Luca Castiglioni recupera o “menos conhecido «princípio joanino», reflete sobre a «masculinidade tóxica» na subjetividade e no agir dos ministros ordenados, e propõe caminhos de mudança no exercício da autoridade e de descoberta da reciprocidade na relação com as mulheres”. Finalmente, o terceiro estudo, de Linda Pocher, apresenta uma releitura de duas cenas bíblicas que dizem respeito à mãe de Jesus. “Distanciando-se de visões estereotipadas e abstratas, deixa entrever uma história de forte protagonismo feminino: a mãe de Jesus é, juntamente com outras mulheres, discípula e mistagoga.”
É precisamente deste capítulo que o 7MARGENS reproduz a seguir um excerto, em pré-publicação, omitindo aqui as notas de rodapé, as referências bíblicas e a numeração dos subtítulos.
Maria e as outras: Discípulas e mistagogas
Linda Pocher, FMA
«E os seus discípulos acreditaram nele»: as mulheres nas comunidades de João
Uma tradição diferente
É sabido que o Evangelho de São João – partindo da experiência única de vida itinerante no seguimento do Mestre, culminada na sua Páscoa de morte e ressurreição –, no decurso de duas ou talvez três gerações de crentes, desenvolveu uma tradição autónoma e diferente da dos sinóticos. Contudo, tal como os sinóticos, também João, enquanto recorda e medita os acontecimentos vividos por Jesus e pelos seus contemporâneos, pinta um retrato da comunidade cristã no seio da qual tais memórias e meditações recebiam forma de texto escrito.
Ao contrário dos sinóticos, o quarto Evangelho apresenta episódios mais desenvolvidos e tende a caracterizar de maneira mais aprofundada e complexa as suas personagens, tanto masculinas quanto femininas. No círculo dos discípulos estão presentes mulheres e homens: «Juntamente com a peculiaridade de cada um, estão presentes elementos comuns que vão além das determinações de género. Todos debatem (em sentido lato) com Jesus sobre questões teológicas que, no seu cerne, dizem respeito sobretudo à compreensão da sua própria pessoa. Mulheres e homens confessam a sua fé nele, conduzem outros até Jesus e desempenham, portanto, parte ativa no anúncio.»
João, tal como Marcos, não reporta nenhum episódio da vida escondida do Senhor e abre o seu Evangelho com o testemunho do Batista. Apesar disso, a primeira mulher a entrar em cena no seu Evangelho é precisamente a mãe de Jesus. A sua figura é apresentada aos leitores no final da chamada «semana inaugural», que culmina com o sinal de Caná, que sintetiza e antecipa o significado e o fim da missão do filho que se cumprirá na sua glorificação, para a qual ele próprio convida os leitores através do apelo ao mistério da «hora».
O sinal das bodas
Também o episódio das bodas de Caná, portanto, tal como o da Visitação, pode ser lido a partir da experiência da comunidade pós-pascal. O primeiro indício de que esta é a chave que também o evangelista tinha em mente encontra-se precisamente no início da perícope, na referência ao «terceiro dia»: o dia da ressurreição. As bodas, de resto, evocam o tema do banquete escatológico e o motivo bíblico da reviravolta inesperada – que se encontra também no Magnificat –, com o fracasso da festa a transformar-se numa bênção sobreabundante. A água das talhas de pedra para a purificação, transfigurada em vinho novo, recorda a passagem já realizada na primeira comunidade cristã: dos ritos antigos para o único sacrifício do único cordeiro, que derrotou de uma vez por todas a escravidão da morte do pecado.
Se o começo da perícope remete o leitor diretamente para a Páscoa, a sua conclusão, apresentando a primeira formação da comunidade dos discípulos, no seguimento de Jesus e juntamente com a mãe e os seus irmãos, revela a intenção claramente eclesiológica do autor. Deve-se notar, também, que os grupos de que é composta esta primitiva comunidade coincidem com os indicados por Lucas no sumário que antecede a narração da Pentecostes. Uma diferença significativa consiste no facto de que as mulheres estão ausentes como grupo específico – estariam elas no grupo dos discípulos, sem mais especificações? – e de que a mãe não é chamada pelo nome. Uma das particularidades do quarto Evangelho consiste precisamente no facto de Maria nunca ser chamada pelo nome. Os termos «mãe» e «mulher», os prediletos do evangelista, sugerem a interpretação da sua figura como ícone da nova comunidade nascida da Páscoa e do papel mistagógico dos crentes em relação àqueles que se aproximam dela com o desejo de verem e conhecerem quem é Jesus. O forte peso simbólico atribuído a esta figura, todavia, não exclui de todo a possibilidade de ela ter sido modelada precisamente a partir da impressão vivenciada pelos discípulos a respeito da presença e ação de Maria no seio da comunidade apostólica, tal como sugerido também por Lucas nos Atos dos Apóstolos. Também porque o quarto Evangelho goza de uma relação particularmente íntima e prolongada no tempo, a partir da Páscoa, entre a sua testemunha privilegiada – o misterioso discípulo amado – e a mãe do Senhor.
No que respeita à caracterização de Maria, a narrativa das bodas de Caná sublinha, de maneira particular, a sua atenção ao momento concreto da existência e a sua capacidade de intervir de maneira decidida, mas discreta, tecendo relações e abrindo espaços nos quais cada membro da comunidade pode encontrar o Senhor e aprender a pôr-se ao serviço do próximo. A reflexão feminista reconhece nela uma mulher que sabe defraudar as expetativas da feminilidade idealizada: «Longe de se calar, fala; longe de ser passiva, age; longe de ser recetiva aos olhos do homem, vai contra os seus desejos, trazendo-o, por fim, para o seu lado; longe de provocar uma situação desagradável, assume a responsabilidade na situação, organizando as coisas de maneira a beneficiar quem precisa, incluindo ela própria. As suas palavras têm um toque de profecia; lamenta o facto, anunciando ao mesmo tempo uma esperança.»
Nem a relação entre a mãe e o filho é apresentada de maneira idealizada. Maria mostra-se, antes de mais, capaz de estar cara-a-cara com Jesus, que já não é uma criança necessitada de proteção e de cuidados, mas um homem adulto e independente. Ele, por seu lado, chamando-a por «mulher», coloca-a no mesmo plano das outras discípulas, que o quarto Evangelho nos dará em breve a conhecer. Usando o mesmo termo, o Ressuscitado dirigir-se-á a Maria Madalena no jardim do sepulcro. Também Maria consegue o sinal em virtude da sua fé, ou seja, do seu ser discípula, e não por um suposto privilégio ou obrigação a que Jesus se submeteria em nome da piedade filial.
A palavra dirigida aos serventes, com efeito, é um convite à fé, que suscita adesão por força do testemunho. E é este testemunho que permite que os novos discípulos acedam à comunidade dos crentes em Jesus. Sem deixar de ser a mãe, mas aceitando que a relação com o filho se transfigure, assim como a água se torna vinho, Maria junta-se, como discípula exemplar entre os outros discípulos, à companhia das suas irmãs, «a Samaritana, Marta de Betânia, Maria de Betânia, Maria de Magdala, e um grande número de outras mulheres, recordadas e esquecidas, reconhecidas pelo amor e pelo testemunho apostólico que deram de Cristo». Discípula e mistagoga, portanto, mas não sozinha, juntamente com outras e outros que constituem a comunidade: «Depois disto, desceu para Cafarnaúm, Ele, a sua Mãe, os seus irmãos e os seus discípulos, mas não permaneceram ali muitos dias».
Jesus e as mulheres
Se é verdade, portanto, que João apresenta com o mesmo cuidado e atenção tanto as personagens femininas como as masculinas, isso não significa que não seja possível identificar algumas características comuns às discípulas de Jesus. A primeira consiste numa específica modalidade de aceso à pessoa de Cristo, ou seja, por via pulchritudinis: «O impacto da cristofania nas vicissitudes das protagonistas é descrito em chave estética, que é propriamente o elo entre a experiência de discipulado e o enquadramento esponsal nas narrações.» Ou seja, as mulheres do quarto Evangelho sentem-se fascinadas e atraídas por Jesus, o qual, porém, não se serve nunca dessa atração para as dominar, revelando-se um homem, em simultâneo, não receoso e não violento, capaz de apreço sereno, de amizade e de respeito, em aberto contraste com aquilo que hoje designamos como patriarcado e os seus preconceitos.
Nos encontros com as mulheres descritos pelo evangelista João, a fé é, por isso, uma dinâmica de reconhecimento recíproco: enquanto reconhece a dignidade, o desejo de plenitude e de partilha espiritual e a disponibilidade para a missão das mulheres, Jesus é reconhecido e proclamado Mestre e Senhor por elas. O espaço que, deste modo, se cria no seio da relação permite a Jesus revelar abertamente a sua identidade, coisa que, em João, acontece somente com a Samaritana e com Marta. Em troca do acesso à sua intimidade, Jesus recebe das mulheres uma fidelidade até ao risco de morte e a sua capacidade de ficar com Ele, inclusivamente no momento mais duro, no limiar entre a vida e a morte, quando a maior parte dos homens, assustados, fugiu.
A segunda característica consiste no facto de que o encontro com o Senhor as impele a saírem dos papéis tipicamente femininos: pelo que sabemos, a Samaritana não regulariza a sua posição matrimonial, mas torna-se uma intrépida anunciadora do Evangelho; Maria de Betânia, figura introvertida e silenciosa, «com o gesto da unção realiza uma ação simbólica de carácter profético. Ao contrário do que acontece no Cântico dos Cânticos, não é permitido a Maria Madalena lançar-se para os braços do seu amado reencontrado, mas recebe um anúncio e transmite-o. Em relação a Marta, a narração começa com uma discussão teológica e com a sua confissão de fé, enquanto no segundo episódio ela desempenha um papel menor (…), mas o termo “servir” (diakoneo) poderia implicar um cargo bem mais importante».
O modelo da partilha de responsabilidade e das tarefas
O Evangelho de João, portanto, testemunha, comparativamente a Lucas, a escolha de uma comunidade de viver e anunciar, mulheres e homens juntos, a fé em Jesus Cristo, sem divisões de campos ou apropriação de tarefas. Isso não significa, no entanto, que a presença simultânea de homens e mulheres na Igreja joanina não fosse fonte de tensões dentro e fora da comunidade eclesial. Dessas tensões dá testemunho o próprio Evangelho, quando fala do espanto dos discípulos ao encontrarem Jesus a conversar com uma mulher junto ao poço de Jacob ou quando relata o desacordo de Judas em relação ao gesto da unção em Betânia.
Em suma, não parece que «fosse considerado normal uma discussão teológica entre Jesus e as mulheres e o mesmo se diga da sua atividade como missionárias. O Evangelho de João poderia também querer promover o ideal de uma fraternidade/sororidade entre discípulos no seu comum relacionar-se com Jesus como alternativa a uma comunidade estruturada hierarquicamente. Facto é, porém, que, para o evangelista, semelhante igualdade masculino/feminino é não só uma hipótese como também um auspício».
O único kerigma no poliedro das comunidades de ontem e de hoje
Do ponto de vista estritamente histórico, a presença de mulheres entre os discípulos itinerantes contemporâneos de Jesus é atestada pelos Evangelhos e é considerada verosímil por todos os estudos mais recentes. Trata-se, porém, provavelmente, não de jovens mulheres solteiras, mas de mulheres adultas, livres de obrigações familiares: podiam ser viúvas com filhos adultos ou, então, mulheres casadas que já tinham criado – ou que não tinham tido – filhos a quem os maridos permitiam que deixassem o lar; ou ainda, quem sabe, poderia tratar-se de casais cujos membros seguiam, juntos, Jesus.
É muito provável que, num primeiro momento, a experiência de discipulado vivida por elas implicasse uma paridade de facto e uma partilha de vida com discípulos homens que, depois, com o andar do tempo e a progressiva institucionalização da Igreja, foram dando prioridade a formas de convívio consideradas mais «respeitadoras» pelo contexto social e cultural em que as comunidades – cada vez mais estáveis – se formavam e cresciam.
Do ponto de vista teológico, a grande novidade cristã, a verdadeira novidade cristã, que a Igreja continua a proclamar em fidelidade à tradição apostólica, é o kerigma da morte e ressurreição de Cristo. É a possibilidade de aceder, pela fé, à ressurreição do Senhor que liberta, expulsando o espetro do medo da morte. Para as mulheres cristãs, desde o primeiro momento, a liberdade dos filhos e das filhas de Deus assumiu uma tonalidade particular, porque se a morte foi derrotada para sempre, então o matrimónio e a procriação já não são um mandamento, uma obrigação que, com a sua carga de trabalho a todos os níveis, impede o acesso a outros tipos de presença no mundo, tanto em casa como na sociedade.
Se a maternidade já não é uma obrigação, se é apenas uma possibilidade, uma escolha, entre homem e mulher já não há diferenças, e ambos são um em Cristo Jesus. É a partir desta boa notícia que se deve contextualizar a explosão de consagrações virginais na Igreja antiga, que eram possíveis também às pessoas batizadas após o matrimónio, já que não diziam respeito à condição fisiológica do corpo, mas à decisão de se pôr completamente ao serviço do Reino, como Cristo.
Na comunidade dos ressuscitados com Cristo, por isso, as mulheres, já não são chamadas bem-aventuradas porque pariram. Nem sequer são bem-aventuradas por terem conservado a sua virgindade. São bem-aventuradas porque acreditaram, oferecendo, assim, o próprio corpo e o próprio coração a Deus para que Ele possa realizar grandes coisas nelas e através delas.
A comunidade de Lucas e a comunidade de João, com esforço e discernimento, escutando as tensões no seio da própria Igreja e olhando para a tradição e para a cultura, souberam imaginar formas diferentes e, no entanto, igualmente capazes de anunciar ao mundo essa novidade. Se assim não tivesse sido, não teríamos conseguido conhecê-la, não teria de algum modo chegado até nós e não poderíamos, consequentemente, estar aqui, hoje, a falar dela e a refletir sobre ela.
É evidente que tarefas deste género não se esgotam de uma vez para sempre. Escutar de novo a boa notícia e buscar a forma ou as formas eclesiais mais adequadas para que hoje possa ser ainda anunciada é o que a Igreja, com esforço, tem tentado fazer através do processo sinodal. Ainda que as soluções identificadas não possam deixar de ser parciais e imperfeitas, é precisamente essa incompletude e imperfeição a deixar aberta a porta ao futuro, às novidades de Deus, ao contributo que as crentes e os crentes são e serão chamados a dar de geração em geração.
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