Por Eduardo Hoornaert
24 Mai 2024
"É com clareza crescente que, já nos anos 1960, Hélder percebe os perigos do princípio consenso. Ele sabe por experiência que o princípio consenso descamba facilmente para o autoritarismo e não raramente exime as pessoas de um sentimento de responsabilidade diante de decisões tomadas por uma maioria: o que for decidido por todos, afinal, não é decidido por ninguém", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Eis o artigo.
Em 1962, Dom Hélder Câmara, o mais intuitivo dos bispos católicos dos últimos tempos, participa do imenso cortejo de bispos e cardeais na Cerimônia de abertura do Concílio Vaticano II e vê como a cor vermelha da batina dos cardeais resplandece com brilho intenso na imensa Basílica de São Pedro. Parece-lhe que as estátuas impressionantes de santos, papas e bispos, acima das cabeças, e as imensas colunas tornadas de Bernini com a cúpula de 164 metros de altura, lhe caem sobre a cabeça. De repente vê o Imperador Constantino galopando pela Basílica, em cima de um cavalo fogoso.
Por duas vezes consecutivas, em 1965 e em 1974, Hélder anota, em suas Cartas Circulares, um poema irônico, escrito durante a última Sessão do Concílio Vaticano II (1965):
Sonhei que o Papa enlouquecia
Ele mesmo ateava fogo
Ao Vaticano
e à Basílica de São Pedro.
Loucura sagrada,
porque Deus atiçava o fogo
que os bombeiros, em vão,
tentavam extinguir.
O Papa, louco,
saía pelas ruas de Roma,
dizendo adeus aos Embaixadores
credenciados junto a Ele,
jogando a tiara no Tibre,
espalhando pelos pobres
o dinheiro todo
do Banco do Vaticano.
Que vergonha para os cristãos!
Para que um Papa
viva o Evangelho,
temos de imaginá-lo
em plena loucura!
(Cartas Circulares, Edição CEPE, II, II, p. 192 e IV, I, p. 128-129).
Aqui já vai, ‘em germe’, a ideia das ‘minorias abraâmicas’. Definido, identificado e ‘enquadrado’ nos grandes concílios cristológicos de Niceia 325 e Calcedônia 481, por meio do princípio do consenso, Jesus anda preso. Mas ele renasce, em minorias, ao redor do mundo.
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Nos primeiros dias de janeiro de 1971, Hélder Câmara, na época bispo católico de Recife, no Brasil, com 62 anos, escreve um texto em que convoca seus leitores, suas leitoras, a formar Minorias Abraâmicas. O referido texto está inserido numa das Cartas Circulares que o bispo, desde 1962, envia a um grupo de mulheres de Rio de Janeiro, com as quais se comunica desde 1942, nos moldes da Ação Católica daquele tempo. Contabilizam-se 2.122 Cartas Circulares, das quais 16 Tomos (1962-1971) já foram impressos e editados pela Editora Oficial do Estado de Pernambuco (CEPE), enquanto outros (1971-1975), já digitados, aguardam impressão em papel.
O texto marca uma guinada no pensamento e na ação do bispo Hélder. A maior guinada de sua vida, com consequências que ainda não conseguimos medir hoje, cinquenta anos depois. Pois, até o ano 1970, o bispo de Recife, internacionalmente conhecido e reconhecido como profeta, segue a tradição da oficialidade em termos de organização dos quadros eclesiásticos. Ele é universalmente conhecido e respeitado por estar na origem de organismos eclesiásticos importantes, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, e o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), em 1955.
Esses organismos, embora inovadores sob mais de um aspecto, seguem o ‘princípio consenso’ que, desde muitos séculos, está na base de projetos organizatórios da igreja católica. Introduzido entre os séculos IV e XIII, esse princípio postula a formação de uma unanimidade nas decisões tomadas pelos organismos da oficialidade cristã. Aliás, é a partir de um pressuposto consensual que emerge, no Ocidente, uma igreja que se declara ‘católica’, ‘espalhada pela terra inteira’ (kath’ holèn gèn), ‘ecumênica’ (oikoumènika), ou seja, universalmente estabelecida. Esse consenso fundamental, ao unificar forças ‘ortodoxas’, cria atitudes exclusivistas e passa a combater movimentos divergentes, doravante taxados de ‘heréticos’. O termo ‘heresia’, que vem do grego ‘hairèsis’, que significa ‘preferência, escolha’, tem uma longa história. Já no Novo Testamento existem textos (como 1Cor 11, 19 e 1Pd 2, 1) que lançam uma luz duvidosa contra os que cultivam preferências em detrimento da comunidade, mas esses textos não podem ser invocados para justificar a crescente animosidade, que se verifica a partir do final do século II, por parte de líderes comunitários, contra grupos não alinhados. A principal alegação contra esses grupos, naqueles tempos, é que eles estariam escondendo (em grego ‘apokruptô’: esconder) evangelhos não considerados aptos à leitura comunitária, evangelhos ‘apócrifos’.
O que está por trás dessas escaramuças? Pensando bem, trata-se dos inícios de um processo de transformação da mensagem evangélica em doutrina, num processo de séculos, marcado pelo princípio consenso. O executor do projeto consensual é o clero que, com o tempo, consegue subordinar todas as forças culturais sob sua égide. Um sucesso espetacular, que basicamente se deve à utilização de imagens e símbolos, à manipulação de emoções e sentimentos, não tanto ao seguimento de princípios racionais. O clero elabora imagens abrangentes, que acompanham a vida humana em suas sucessivas etapas. Elas impactam as massas camponesas e fazem com que se formem, com o tempo, grandes conglomerações de pessoas a se comprimir em imensas igrejas e catedrais (que, por vezes, têm a capacidade de conter mais que a população inteira da localidade), a frequentar locais de devoção, empreender romarias a Roma e Santiago de Compostela etc. Por volta do século XIII, o sistema é tão forte que passa a se retroalimentar. As próprias massas passam a reproduzir o consenso, por meio da educação familiar e do convívio na comunidade paroquial.
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É com clareza crescente que, já nos anos 1960, Hélder percebe os perigos do princípio consenso. Ele sabe por experiência que o princípio consenso descamba facilmente para o autoritarismo e não raramente exime as pessoas de um sentimento de responsabilidade diante de decisões tomadas por uma maioria: o que for decidido por todos, afinal, não é decidido por ninguém. A pessoa pode se esquivar dizendo que está em consonância com a maioria e desse modo não assumir uma responsabilidade pessoal diante de uma postura assumida pela maioria. Ela passa a se submeter a uma lógica externa, agir como mera engrenagem num sistema considerado válido, não se interrogar sobre o impacto concreto de uma decisão tomada em consenso. Desse modo se perpetuam injustiças sistêmicas. O princípio consenso passa a funcionar, então, como um mecanismo técnico, burocrático, autopropelido.
Ao se distanciar do princípio consenso, no decorrer da década de 1960, Hélder é prudente. Ele conhece bem o funcionamento do sistema católico e só pisa com cuidado. Ao sentir – de um lado – o perigo representado pelo princípio consenso e – de outro lado – perceber que fica difícil enfrentar a questão diretamente, ele propõe uma mudança de rumo no melhor estilo eclesiástico. Ele muda sem dar a impressão. Sabendo que a igreja não gosta do termo ‘mudança de rumo’ (já que ela se considera guardiã de uma mensagem imutável), ele recorre a uma camuflagem, um vocabulário diplomático, amplamente usado no Concílio Vaticano II, e que serviu para tornar palatáveis determinadas mudanças de rumo sob termos como ‘refontização’, ‘aggiornamento’, ‘adaptação’, ‘diálogo com o mundo’, etc.
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É assim que, sem fazer alarde, Hélder lança a ideia de Minorias Abraâmicas. No texto, que apresento em seguida, se pode verificar que ele prepara cuidadosamente o terreno. Aparecem novas ‘palavras de ordem’ a encabeçar suas Cartas Circulares. Em 1970: Primeira fase. Abertura da Ação Justiça e Paz para o plano mundial. Em 1972: Segunda fase. Apelo às Minorias Abraâmicas. A partir de 1974: Terceira fase. Articulação das Minorias Abraâmicas. Aparecem termos novos: ‘família abraâmica’, ‘espírito abraâmico’, ‘pastores abraâmicos’, ‘esperança abraâmica’, etc. Hélder até pensa em escrever um livro sobre o tema, na linha de seu Spirale de la violence (Paris, Desclée de Brouwer, 1971), mas não concretiza esse plano.
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Reproduzo aqui os termos da primeira Convocação a Minorias Abraâmicas, escritos na noite do Ano Novo 1971 e na noite seguinte:
Todo e qualquer grupo humano – dentro de qualquer raça, língua ou religião – tende a apresentar: (1) uma média, que não é de grandes pecados, nem de grandes virtudes; não é de grandes coragens, nem de grandes covardias. Contenta-se com o quotidiano, se afaz aos acontecimentos; pede para viver tranquila, em seu canto; (2) uma minoria, abaixo da média, capaz de gestos pequeninos, menos dignos, menos claros, menos nobres; (3) uma minoria, que nasceu para dedicar-se, sair de si, pensar nos outros, sacrificar-se pelo bem comum, votar a vida à causa de um mundo mais justo e mais humano. Chamemo-la Minoria Abraâmica, pois, como Abraão, espera contra toda esperança.
Quem pertence às Minorias Abraâmicas pode, de vez em quando, ter a tentação de imaginar: que basta de ser idiota e de viver pensando nos outros; que a humanidade não tem remédio; que, quanto mais a gente se gasta, menos é compreendida e mais ingratidão se tem de colher; que é mais do que hora de cuidar de si e apenas de si.
Quem pertence às Minorias Abraâmicas, mesmo que seja arrastado pela tentação e vencido pela tempestade, quando notar, estará recomeçando a vida de dedicação e de sacrifício, pois há pessoas, cuja vocação humana a serviço do próximo, e do bem comum, e de causa de libertação humana, não tem remédio.
Se continuares a ler este texto, é muito provável que pertenças a Minorias Abraâmicas dentro de teu grupo, de tua classe, de tua religião, de tua raça. O que está faltando, no mundo, é a aliança das Minorias Abraâmicas, para além de todas as barreiras, de todas as limitações.
Aqui encontrarás, através de exemplos típicos, como interligar as Minorias Abraâmicas, em plano local, regional, nacional, continental e mundial. Colabora conosco! Se pertenceres a um dos grupos descritos, completa o trabalho iniciado. Corrige-o, alarga-o, aplica-o ao teu caso concreto e pessoal; Se pertenceres a um grupo não descrito, completa o teu livro, o nosso livro, acrescentando-lhe o capítulo, que vai, quem sabe, abrir perspectivas novas para a tua vida...Chegaste até aqui? Então, nem vacilo em dizer-te: pertences mesmo às Minorias Abraâmicas e és nossa Irmã ou nosso Irmão (Carta Circular 01/01/1971, V, III, pp.2-4).
O texto prossegue, no dia seguinte:
Quem descobriu que é da Família Abraâmica, (1) não se julgue melhor do que ninguém: o orgulho rói tudo por dentro e só deixa mesmo a fachada; (2) saiba que, sozinho, não poderá fazer nada: seu primeiro cuidado deverá ser descobrir, em volta de si, em sua cidade, em sua região, em seu país, no mundo (dentro ou fora de sua classe, religião ou raça) outros membros da Família Abraâmica, com quem se articular para que seja eficiente o esforço pacífico pela justiça e pelo amor, como caminhos para a paz; (3) procure ter bem claro, diante dos olhos, que o necessário é obter mudanças de estruturas econômico-sociais e político-culturais, tanto nos Países subdesenvolvidos, como nos Países desenvolvidos. Sem perda da visão firme e corajosa do alvo a atingir, tente o que estiver ao seu alcance, por mais humilde e simples que pareça, desde que esteja na rota dos grandes objetivos; (4) proteja-se contra o pessimismo de quem mede a desproporção entre o muito a atingir e o quase nada que fica a nosso alcance. Proteja-se, tanto contra a perda de paciência, que poderá levar a radicalização e a violência, quanto ao desânimo de quem tem tarefas humildes a empreender; (5) esteja alerta para documentar-se sobre injustiças, sobretudo coletivas e destas que ferem direitos fundamentais da pessoa humana; (6) prepare-se para a acusação de subversão e comunismo. Um pouco, no mundo inteiro, enquanto se peleja para que os ricos ajudem os pobres, há compreensão, prestígio e apoio; quando se passa a provar que as ajudas são necessárias, mas não bastam e que a grande ajuda é fazer justiça; quando se passa a mostrar que, sem justiça, não há verá paz social, surgem incompreensões, distorção do pensamento e, conforme as circunstâncias, outras complicações mais graves.
Nada de desânimo ou de recuo. A pressão moral libertadora, que as Minorias Abraâmicas, a bem da verdadeira paz, são convidadas a exercer, é incompreendida e mal julgada, hoje. Um dia – Deus permita que não seja tarde – se verá que pressão moral é ainda o que existe de mais suave. Se ela não for entendida, se ela se tornar impossível, os que a tiverem tornado impraticável serão responsáveis pela alternativa, tornada inevitável: a violência armada (ibidem, p. 4-5).
Claro, melhor seria se você mesmo pudesse ler por inteiro as 31 primeiras páginas das Cartas Circulares de 1971. Aí, você sentiria o ímpeto com que Hélder propaga sua proposta de Minorias Abraâmicas.
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