Por Pedro Pannunzio*
Totens de vigilância particulares se espalham pelas metrópoles com controvérsias que vão do urbanismo ao reconhecimento facial
Em um dos trechos mais movimentados da Avenida Faria Lima, em São Paulo, um consultor de segurança grava um vídeo promocional para as redes sociais da empresa CoSecurity. “Se você está andando na calçada e visualiza um poste [com câmeras de vigilância], e você é uma pessoa de bem, se sente mais protegido. Assim como um mal-intencionado vai se sentir monitorado.”
Logo atrás dele, fincado num canteiro, está um exemplar do item de segurança privada da vez nas grandes cidades: os totens de monitoramento. Trata-se de um poste cilíndrico metálico que às vezes bate nos 3 metros de altura, com um conjunto de duas a quatro câmeras no topo, em muitos casos com uma auréola de led acima de tudo.
Na capital paulista, o totem vem se multiplicando rapidamente desde o ano passado. Em regiões mais ricas, como os Jardins, há quarteirões com mais de meia dúzia deles. É um item que traz novidades, algumas delas um tanto controversas, quando não irregulares. O pragmatismo de quem deseja espantar o crime de sua rua, porém, tem falado mais alto, em uma cidade que teve 439 651 registros de roubos e furtos no ano passado, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
A piauí identificou nove empresas que oferecem o equipamento na capital paulista. O local da instalação é o primeiro ponto polêmico: fica muitas vezes logo em frente ao muro dos prédios, mas também há casos de instalação na outra ponta da calçada, onde usualmente estão postes de luz.
“Hoje tem muita empresa que faz coisa errada e instala o poste fora de recuo. Isso é uma coisa que prejudica o produto. É preciso respeitar a lei da cidade”, diz Luciano Caruso, cofundador da CoSecurity, empresa do Grupo Haganá que alega ser a pioneira no produto.
No vídeo promocional da sua empresa, porém, um dos postes aparece no meio de um canteiro na calçada. A Prefeitura de São Paulo diz que “quando instalados em espaços públicos, como calçadas e praças, esses equipamentos precisam ter aprovação da CPPU [Comissão de Proteção à Paisagem Urbana]”. A aprovação é caso a caso e, ainda de acordo com a gestão municipal, nenhum pedido do tipo foi recebido.
A instalação em frente aos muros é objeto de questionamento. A prefeitura informou à piauí, em um primeiro momento, que a situação era regular por entender que os postes fazem parte do “mobiliário urbano”, regulamentado pelo decreto 59 671. Bianca Tavolari, professora de direito da FGV e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), contestou: “O mobiliário urbano tem alguma dimensão pública, como um banco ou um relógio. Nesse caso, a função é inteiramente privada. É o prédio que vai se valer das câmeras. Se acontece alguma coisa na rua, o prédio até pode ceder as gravações, mas a câmera não é pública”, diz.
Após novo questionamento, a prefeitura disse que “não há regulamentação específica para instalação desse tipo de equipamento como mobiliário urbano”.
Além disso, praticamente todos os modelos de poste estampam a logomarca de uma das empresas (com cores vibrantes), sem respeitar os ritos legais exigidos pela Lei Cidade Limpa. Segundo a prefeitura, a autorização para a exposição desse tipo de publicidade não foi solicitada por qualquer uma das empresas à Comissão de Proteção à Paisagem Urbana: “A CPPU informa que não há um regramento específico na Lei Cidade Limpa para esse tipo de equipamento. Interessados devem apresentar à Comissão projetos de comunicação visual para que seja avaliada a pertinência de edição de uma resolução sobre o tema.”
Para a pesquisadora Tavolari, a exposição da marca das empresas nos postes é um anúncio publicitário e, portanto, fere a lei. Ainda que haja algum caso pontual que poderia ser enquadrado como exceção, todas as empresas atuam de forma irregular, já que não houve solicitação à prefeitura. “Há exceções para a exposição de nomes, símbolos, ou logotipos, definidas pelo artigo 2º da Lei Cidade Limpa, desde que sejam aprovadas pela Comissão de Proteção à Paisagem Urbana. Não é automático, a Comissão tem que analisar caso a caso”, diz Tavolari.
A instalação do poste nem sempre é cobrada e a mensalidade costuma girar entre 299 e 800 reais.
Os totens ampliam também as discussões entre os limites da segurança privada. Por lei, as imagens sob custódia das empresas só poderiam ser compartilhadas após um ofício emitido pela delegacia que investiga um crime. A constituição garante, em seu artigo 5º, o direito à privacidade de imagem das pessoas, exceto quando se tratar de uma investigação criminal, daí a necessidade de ofício emitido por um delegado. Também pela lei, essas investigações são atribuições exclusivas das forças públicas de segurança, conforme definido pelo artigo 144 da Constituição.
Em seu discurso de venda, empresas como a CoSecurity deixam claro que ultrapassam esses limites. “Assim que alertada, nossa equipe acessa as câmeras e inicia seu trabalho de auxiliar a polícia na identificação e até na detenção dos transgressores, levando a investigação para um outro patamar”, informa um vídeo promocional. O cofundador Caruso afirma à piauí que as investigações conduzidas internamente são um diferencial: “O que faz mais a diferença é o trabalho que a gente faz na central. Ali a gente monta as ocorrências, com o compilado da cena do crime e entrega esse compilado para o delegado, o investigador ou pro batalhão da polícia militar. A gente tem esse trabalho, vamos dizer, proativo.”
Para Maíra Zapater, professora de direito penal da Universidade Federal de São Paulo, uma investigação conduzida por uma empresa privada, sem que os ritos legais sejam respeitados, pode até resultar em uma prisão injusta. “Fazer uma investigação nesse formato pode violar o direito à privacidade, o direito à intimidade e pode dar origem a provas ilícitas. É preciso que se assegurem os direitos e garantias de quem está sendo investigado, e não tem como haver controle em uma esfera privada”, diz.
Outra que adotou processos questionáveis de compartilhamento de imagens é a Gabriel, com mais de 5 500 câmeras espalhadas por São Paulo e pelo Rio. Uma reportagem do Intercept mostrou que a startup mantinha uma rede de troca de informações pelo WhatsApp com forças policiais. “Quando a polícia pedia as imagens do local A, a gente, proativamente, checava a imagem de todas as câmeras no perímetro para enviar à polícia o arquivo completo, com todas as outras câmeras que não tinham sido oficiadas. Naturalmente, isso convergiu, em algum momento, para a criação de um grupo de WhatsApp ou Telegram”, disse Otávio Miranda, sócio da empresa, à piauí.
Para botar ordem na casa, os grupos com a polícia, diz Miranda, foram deletados e a empresa criou uma plataforma para que autoridades possam solicitar imagens. Agora, para acessar alguma gravação, é preciso preencher um formulário com a identificação profissional (cargo e delegacia em que trabalha, por exemplo) que fica disponível no site da Gabriel. Ainda segundo Miranda, depois disso, é preciso anexar o Boletim de Ocorrência ao sistema para, enfim, ter acesso ao vídeo. “Foram pouco mais de 300 prisões que a polícia conseguiu realizar com base nas imagens da Grabriel e inocentamos, até agora, oito pessoas. Me orgulho muito de ter colaborado com a soltura de inocentes – não por coincidência, pessoas pretas e pobres”, diz.
Para Cleber Lopes, professor do departamento de ciências sociais e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança da Universidade Estadual de Londrina, o compartilhamento irrestrito de imagens pode acarretar em perseguições sem base legal. “Esse ‘só’ fornecimento de imagens tem um problema enorme. Isso pode gerar um Estado com um poder gigantesco para tornar uma pessoa suspeita e a gente não sabe como essa troca de informação está sendo feita”, avalia.
É comum que as empresas do ramo tenham policiais ou ex-policiais. No quadro de sócios da Vektran, empresa do setor que informa aos clientes ter 2 mil câmeras, há um policial civil da ativa. Alberto Cunio é, atualmente, escrivão do Setor de Homicídios da Delegacia Seccional de Polícia de Osasco, na região metropolitana de São Paulo.
A Lei Orgânica da Polícias do Estado de São Paulo, de 1979, proíbe a atividade comercial para agentes da ativa, exceto quando ela se restringe à participação societária, como no caso de Cunio. O artigo 63 da lei diz: “São transgressões disciplinares exercer comércio (…) ou participar de sociedade comercial salvo como acionista, cotista ou comanditário.”
Apesar da brecha legal, André Zanetic, doutor em ciência política e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entende que há conflito de interesse: “Isso é um pouco contraditório com o exercício da função pública. A gente já viu muitos casos de policiais que usam o cargo para atrair clientes, ainda que ele não exerça efetivamente funções de gestão e seja apenas um acionista”, diz. “É um pouco nebulosa a figura do acionista.”
A piauí tentou contato com Alberto Cunio, mas não obteve resposta. Marcelo Cortelazo, seu sócio e primo, diz que não há conflito. “Ele é escrivão de homicídios, não tem nada a ver com o que a gente faz. Hoje ele praticamente nem opera na empresa. Então não tem nenhum conflito de interesses. E outro detalhe: nós não operamos em Osasco. Meu forte é Jardins, não tem nada a ver com a região em que ele [Cunio] trabalha.”
Já a Yellowcam faz alarde da relação próxima que mantém com a Polícia Militar. No quadro de funcionários há, ao menos, um ex-PM. Em um vídeo promocional de 2021, um vigilante do “Pelotão More” (o nome usado para batizar a própria central de monitoramento) explica como conseguiu o emprego: “Uma associação dos policiais militares nos apresentou à empresa e agora eu tô dando continuidade no que eu fazia. Eu era policial militar”, diz o homem, que não foi identificado no vídeo “por questões de segurança.” Legalmente, não há restrição a policiais aposentados. A empresa não respondeu aos questionamentos sobre esse assunto.
Com ou sem poste, o sistema que interliga as câmeras de monitoramento é o mesmo e opera de forma mais ou menos parecida em todas as empresas: as imagens captadas são enviadas em tempo real a uma central de monitoramento e ficam salvas de quinze a trinta dias, a depender da política de armazenamento. Em caso de ocorrência, a central recebe um alerta e avalia o que deve ser feito dali em diante (chamar a polícia, por exemplo).
A tecnologia entra de forma diferente em cada empresa. “A segurança baseada em inteligência artificial é a nova fronteira da segurança condominial. Usando câmeras, sensores e algoritmos, ela é capaz de detectar e prevenir ameaças de forma mais eficaz do que os métodos tradicionais”, anunciava uma publicação no Instagram da White Segurança.
No modelo, a inteligência artificial é responsável por emitir o alerta de perigo à central de monitoramento quando há identificação de uma “ação delituosa”, explica o diretor executivo da White, Rodrigo Couto, à piauí. A empresa categoriza seis tipos diferentes de delito, segundo seu próprio site: roubo, sequestro, furto, invasão, vandalismo e “vadiagem”. “Categorizamos como vadiagem os delitos cometidos por usuários de drogas que queiram fazer uso de entorpecentes na área monitorada. O objetivo é evitar que o perímetro protegido seja utilizado para qualquer fim ilícito”, diz Couto. Ele se baseia na Lei das Contravenções Penais, de 1941, que tipifica a “vadiagem” como crime com pena de quinze dias a três meses de prisão.
Renan Domingos, superintendente de tecnologia da RS Vigia, outra empresa que anuncia o uso de IA, afirma que é possível programar a máquina para parâmetros que garantam até 90% de precisão. O sistema é usado, por exemplo, para indicar que uma pessoa está armada. “Eu consigo trabalhar o percentual de assertividade daquele evento. A gente trabalha caso a caso, ambiente a ambiente”, explica.
Para alguns concorrentes, o recurso de inteligência artificial é balela. “Isso não existe. Não tem como, em uma via pública, você diferenciar uma pessoa que sacou uma arma de uma que sacou um guarda-chuva”, afirma Otávio Miranda, da Gabriel. Marcelo Cortelazo, da Vektran, diz algo semelhante: “Eles vendem uma coisa que não está funcionando ainda”.
Caruso diz que a Cosecurity trabalha com IA, mas vê limites na tecnologia: “A inteligência artificial ainda não é um grande contribuidor para [esclarecer] as ocorrências. São muitos alertas falsos para você caçar uma ocorrência verdadeira.”
Outra tecnologia bastante controversa, e potencialmente ilegal, é o reconhecimento facial. Ele é usado por, pelo menos, duas empresas do setor: a RS Vigia e a White Segurança. Para treinar o sistema, a RS Vigia usa o banco de dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) do Ministério da Justiça e Segurança Pública para mapear rostos de foragidos. “A gente pega as imagens do Sinesp Cidadão, insere pra dentro da nossa plataforma e quando essa pessoa passar por algum totem nosso, o sistema vai receber um alerta”, explicou Renan Domingos. O Ministério da Justiça e Segurança Pública diz não saber que o banco de dados está sendo usado para essa finalidade. Domingos diz que a RS Vigia tem dois postes com essa tecnologia embutida em funcionamento.
A ideia da empresa é, em um segundo momento, criar um banco de imagens próprio, com dados colhidos pelas câmeras particulares: “O objetivo é que tenhamos uma block list que nós criamos, a partir da imagem de pessoas que passaram pelo nosso sistema e que tenham apresentando algum comportamento indevido, ou praticado um ato ilícito. A partir daí, conseguimos emitir um sinal de alerta quando a pessoa voltar a aparecer no sistema”, explica Domingos. Em outras palavras, toda vez que uma pessoa catalogada como suspeita passar em frente a uma câmera com reconhecimento facial, o sistema irá emitir um alerta para a central de monitoramento.
Filipe Medon, professor de Direito Civil e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio de Janeiro, explica que o reconhecimento facial é uma área que necessita de regulação específica. Ainda assim, ele entende que os planos da RS Vigia violam a Lei Geral da Proteção de Dados, por se tratar de uma coleta desenfreada de informações pessoais sem qualquer tipo de consentimento, ou autorização: “Para tratar dados, você precisa de uma base legal. Isso pode ser o consentimento da pessoa, pode ser eventualmente o cumprimento de uma obrigação legal, ou até mesmo a realização de um estudo por órgão de pesquisa. O titular dos dados tem direito a saber como seu dado é tratado. Isso está previsto na legislação.”
Medon afirma que esse tipo de coleta de informações pode abrir margem para abusos. “Você vai ter um órgão privado realizando uma função de segurança pública, a partir de um mega monitoramento e coleta de dados. Elas têm ali um acervo muito farto para produzir dados. Você sabe para onde as pessoas se movimentam e consegue rastrear uma pessoa.”
Enquanto não há uma regulação mais específica, o próprio poder público se engaja nos novos sistemas. No fim de agosto do ano passado, a Gabriel assinou um termo de colaboração com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a fim de garantir acesso, de forma gratuita, ao sistema de imagens da empresa. Em São Paulo, o programa Muralha Paulista, criado em 2023 pelo governo estadual, firmou parcerias para cessão de imagens com algumas empresas.
Uma delas é a RS Vigia. “A integração acontece via sistemas. As empresas colocam as imagens dentro do CICC [Centro Integrado de Comando e Controle, da Polícia Civil] e elas são consultadas quando solicitadas. A força pública não fica visualizando em tempo real. É até meio inviável, não tem efetivo para isso”, conta Renan Domingos.
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que não poderia comentar o caso até que um decreto, com detalhes sobre o funcionamento do programa, seja publicado, o que ainda não tem previsão para ocorrer. “O compartilhamento de imagens ainda não está funcionando”, disse a assessoria de imprensa da pasta à piauí, por telefone. Domingos, no entanto, alega que a RS Vigia compartilha imagens com o governo estadual por meio do programa Muralha Paulista desde o ano passado. Luciano Caruso, da CoSecurity, também diz que a empresa passou a compartilhar imagens no período.
A Prefeitura de São Paulo também pretende integrar as câmeras da iniciativa privada ao seu sistema de vigilância. O programa Smart Sampa foi lançado em 2023 com a previsão de instalação de 20 mil câmeras próprias e integração com outras 20 mil câmeras particulares. De acordo com a gestão municipal, um chamamento público será lançado para que “empresas privadas, concessionárias e munícipes” manifestem interesse em compartilhar suas imagens. “A integração tem propósito colaborativo e não há custos para a gestão municipal e colaborador”, diz a prefeitura.
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