José Horta Manzano*
Artigo publicado no Correio Braziliense de 24 maio 2024
As águas vão baixando no Rio Grande. O que se vai descobrindo agora é um espectro de devastação, panorama de infinita tristeza. O trabalho de uma vida inteira, a pequena propriedade rural que custou anos de sacrifício, a semeadura feita à custa de dívida bancária contraída com tanta dificuldade – tudo destruído.
Nós outros, que assistimos a essa tragédia pela televisão, não fazemos a menor ideia do que seja passar por um sufoco desse calibre. O desastre assolou uma área de tamanho comparável a uma Grã-Bretanha, quase uma Itália inteira! É uma tragédia superlativa.
O Instituto Quaest publicou, no momento em que as enchentes atingiam seu pico, os resultados de uma pesquisa nacional. Tanto gente de bom senso como terraplanistas concordaram num ponto principal: para 99% dos entrevistados, a calamidade que atingiu o Rio Grande do Sul tem ligação com as mudanças climáticas que perturbam a vida no planeta. Unanimidade assim é rara de se ver.
Enquanto isso, em Brasília, se desenrolam fatos dignos de um outro planeta. Estão atualmente tramitando, no Senado ou na Câmara, 25 projetos de lei e 3 propostas de alteração da Constituição visando a mexer na legislação de preservação florestal, a afrouxar regras de licenciamento ambiental e até a anistiar grileiros, desmatadores e outros neandertais. Interesses pessoais néscios e mesquinhos estão por trás desses projetos. Seus autores vivem divorciados de seus eleitores e da realidade global. Esperemos que as enchentes do Rio Grande sacudam o berço esplêndido desses eleitos deslumbrados e os despertem para as desgraças que entraram na pauta nacional.
Boa parte da população de países mais atentos já se deu conta, faz anos, de que toda a humanidade navega num mesmo barco e de que, se cada um não fizer sua parte, o planeta periga tornar-se inabitável antes do que se imagina. Quando digo “cada um” é cada um mesmo, na medida de suas possibilidades. Reutilizar um saco de papel, por exemplo, é o tipo de gesto fácil e simples mas que, multiplicado por milhões de cidadãos, tem seu peso.
Acredito que, em matéria de participação individual no esforço geral de fazer o que se pode para lutar contra aquecimento planetário e catástrofes climáticas, o cataclismo do Rio Grande seja um marco histórico: assinalará um antes e um depois na tomada de consciência do brasileiro sobre o processo de rápida deterioração do clima global.
As enchentes do Sul não são um fenômeno isolado – afirmação cujo bom senso já foi aferido pela pesquisa Quaest. Estão intimamente relacionadas ao desmate na Amazônia e no Cerrado, à reorientação da circulação dos ventos e da umidade. É uma teia complexa de eventos que se equilibram e se complementam. Uma alteração num dos componentes perturba o funcionamento do todo.
Neste ‘day after’ das enchentes do Rio Grande do Sul, não se trata mais do derretimento de longínquas geleiras ou do desaparecimento de ilhotas num oceano qualquer. Hoje sabemos o que significa ver um naco da própria terra natal desaparecer sob uma água barrenta como enxágue de olaria e estagnante como criadouro de mosquito. A partir deste maio de 2024, os brasileiros contam com um exemplo real, doméstico, de carne e osso, com nome e endereço. Não dá mais pra fazer que não viu.
A saúde mental da população, especialmente dos mais jovens, estará cada vez mais comprometida. De fato, são os que entram agora na vida adulta que mais se preocupam com o horizonte sombrio, sem luz, sem sol e sem esperança. É a eles que estamos legando esse mundo. Vamos pelo menos corrigir um pouco do que fizemos errado estas últimas décadas.
Solastalgia, título deste escrito, é termo cunhado em 2005 pelo filósofo australiano Glenn Albrecht. Descreve o estado de estresse emocional causado pelas alterações do meio ambiente, especialmente a destruição de ecossistemas e da biodiversidade. E, consequência inevitável, o aquecimento global.
Energias renováveis, transição energética, ecoansiedade, angústia climática, luto ecológico, ponto de não retorno – são expressões que vão continuar se avolumando em nosso futuro próximo. Se o sofrimento causado pela calamidade das enchentes do Rio Grande puder nos abrir o olho (e a mente) para essa inescapável realidade, um bom passo terá sido dado.
* Escritor, analista e cronista
Fonte: https://brasildelonge.com/
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