segunda-feira, 6 de maio de 2024

O desemprego baixo atual pode impactar os preços, como diz o BC?

Por Marcelo Roubicek

 Roberto Campos Neto, de óculos, terno e gravata, está sentado olhando para o lado. É um homem branco de cerca de 50 anos.OTO: Adriano Machado/REUTERS - 15.FEV.2023


Presidente da autoridade monetária do Brasil, Roberto Campos Neto cita ‘preocupação’ com aquecimento do mercado de trabalho. Lógica remete à Curva de Phillips, teoria de 1958

O desemprego no Brasil iniciou o ano de 2024 no menor patamar para o período em uma década. É o que revelaram dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicados na terça-feira (30).

No mesmo dia, o presidente do Banco Central usou a palavra “preocupação” ao comentar a situação do mercado de trabalho em entrevista ao canal CNN Brasil. Roberto Campos Neto falou na possibilidade de que o emprego aquecido alimente a inflação.

A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas há décadas.

Neste texto, o Nexo apresenta a discussão e o cenário brasileiro em 2024. Também ouve economistas que avaliam, com visões diferentes, o quadro e a preocupação de Campos Neto.

Inflação e desemprego no Brasil em 2024

No primeiro trimestre de 2024, a taxa de desemprego no Brasil ficou em 7,9%. Foi o menor número para o período desde 2014.

10 ANOS DE DESEMPREGO

Trajetória da taxa de desemprego no Brasil. Forte alta em 2020 e 2021, depois queda relativamente constante até 2024.

A inflação, por sua vez, também entrou em 2024 em queda. Depois do ciclo de alta de preços que culminou em 2022, quando atingiu 12%, a inflação vem perdendo força no país.

Para conter os preços, o Banco Central elevou os juros básicos do país. Em 2023, com maior alívio na inflação, começou a cortar a taxa Selic.

Em 2024, a autoridade monetária expressa preocupação com a lentidão do alívio inflacionário, e já sinalizou que pode reduzir o ritmo de corte de juros.

10 ANOS DE INFLAÇÃO

Trajetória de inflação e metas no Brasil. Forte alta entre 2020 e 2022, depois queda relativamente estável até 2024.

A fala de Campos Neto e a reação do governo

Campos Neto expressou na terça-feira (30) preocupação com o impacto inflacionário do mercado de trabalho — sobretudo no setor de serviços.

“O Banco Central adora quando a gente tem um regime de emprego pleno […]. É nossa situação [atual], que melhorou muito e foi uma grande surpresa”, disse o presidente do órgão à CNN Brasil. “Mas a preocupação vem quando as empresas não conseguem contratar e você tem que começar a subir o salário. Se você sobe o salário para o mesmo nível de produção, isso significa que você está iniciando um processo inflacionário”, afirmou.

FOTO: Jonas Pereira/Agência SenadoEdifício-sede do Banco Central, em Brasília

Edifício-sede do Banco Central, em Brasília

A fala de Campos Neto ecoa outras sinalizações recentes do Banco Central. O Comitê de Política Monetária do órgão inseriu um trecho similar na ata da reunião de 19 e 20 de março.

Essas indicações foram recebidas com críticas por membros do governo Luiz Inácio Lula da Silva e integrantes do PT. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a pedir publicamente que o Banco Central “não se assuste” com dados positivos de emprego. O temor é que o órgão freie o ciclo de corte da Selic por causa do mercado de trabalho aquecido.

Entenda o que é a Curva de Phillips

A relação entre desemprego e inflação é explorada por economistas desde meados do século 20. Em 1958, o economista neozelandês A.W. Phillips, da London School of Economics, publicou um artigo identificando uma relação inversa entre desemprego e inflação. Essa oposição ganhou o apelido de “Curva de Phillips”.

A lógica é que um desemprego mais baixo significa maiores salários e mais dinheiro circulando na economia, o que pressiona os preços — a partir da lógica da demanda e da oferta. Já quando o desemprego é alto, menos dinheiro circula e isso tira a pressão da inflação. Por isso a relação inversa entre as duas variáveis.

A Curva de Phillips virou tema central da teoria econômica, e foi analisada e destrinchada por inúmeros economistas desde então. Ela passou por uma série de transformações — a principal delas sendo a que incluiu a variável das expectativas na análise. Por décadas, diversos estudos tentaram analisar se a oposição entre desemprego e inflação é válida na prática, com resultados por vezes conflitantes.

A preocupação de Campos Neto sob análise

O Nexo conversou com dois economistas que avaliaram a preocupação de Campos Neto com possíveis impactos inflacionários do mercado de trabalho brasileiro em 2024.

  • Renan Pieri, economista da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas)
  • André Biancarelli, professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

O que os estados do mercado de trabalho e dos preços no Brasil em 2024 dizem sobre a relação entre inflação e desemprego?

RENAN PIERI Ao longo da história, a Curva de Phillips teve comportamentos diferentes. Cada país tem a sua própria relação entre inflação e desemprego, e essa relação pode mudar ao longo do tempo. E além de inflação e desemprego, a relação também depende da expectativa de inflação dos agentes econômicos.

Não é toda melhora do mercado de trabalho que gera pressão inflacionária. Depende se a melhora veio de um choque de demanda ou de oferta. Se as empresas estão ficando mais produtivas, têm inovado e isso está melhorando o mercado de trabalho, pode haver até uma queda de preços, com mais oferta de produtos. Nesse cenário não seria preocupante. Mas se o mercado tem melhorado por conta de aumento de demanda [na economia], há uma pressão nos preços.

Está embutida na interpretação do Banco Central que estamos num período de demanda aquecida. E isso pode levar a alguma preocupação. Em termos gerais, um nível de ocupação mais alto sempre é um sinal de alerta para o Banco Central.

Estamos vendo uma melhora significativa do mercado de trabalho no Brasil. No cenário em que criamos mais postos de trabalho e o salário aumenta um pouco, isso pode sim criar alguma pressão sobre os preços. Para as empresas, mão de obra é um dos custos mais relevantes, principalmente no setor de serviços. Então se há mais gente ocupada e com salários mais altos, pelo menos uma parte disso pode ser repassada para preços. Estamos vendo isso também nos EUA.

ANDRÉ BIANCARELLI A Curva de Phillips talvez seja, na discussão de política monetária, a questão mais antiga em debate. É uma relação teórica que é objeto de controvérsia há muitas décadas. Nos últimos tempos, ela está sendo profundamente questionada, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, principalmente depois da pandemia. É um debate que acontece particularmente nos EUA.

A manutenção de uma inflação baixa com uma taxa de desemprego que em outros tempos teria provocado uma inflação é uma novidade do pós pandemia, que tem desafiado e gerado debates bastante interessantes entre banqueiros centrais e acadêmicos do mundo inteiro. A novidade se dá no plano dos fatos e no plano da discussões. E tudo isso ainda está em aberto. Os Bancos Centrais estão navegando em águas desconhecidas no mundo inteiro. E não é uma controvérsia heterodoxa, digamos assim.

A diferença é que no Brasil, pelo perfil e estilo [de Campos Neto e do BC], navegar em águas desconhecidas na relação entre inflação e desemprego vai significar um excesso de conservadorismo. Da forma como o noticiário brasileiro reage a isso, parece muitas vezes que não é controverso que uma taxa de desemprego em queda seja um sinal de ameaça à inflação. Mas é algo que está sendo profundamente questionado por muitos economistas atualmente.

Como avalia a ‘preocupação’ de Roberto Campos Neto com o mercado de trabalho aquecido?

RENAN PIERI Há no mercado de trabalho algumas evidências de que a economia passa por um período aquecido que pode sim gerar uma pressão sobre os preços no futuro. Não é uma versão alta o suficiente para justificar, por exemplo, uma nova alta da Selic, mas pode ser suficiente para justificar um corte mais cauteloso do que antes.

A lei de autonomia do BC dá dois objetivos para o Banco Central perseguir. Um é a meta de inflação. O outro é o pleno emprego. Nessa visão, o Banco Central conseguiria “ajustar” o desemprego por mudanças na Selic. Mas tem um componente importante dessa história que são as expectativas.

Se fica claro que ele está mais preocupado com o desemprego do que com a meta de inflação, isso pode levar os agentes a acharem que a inflação vai ficar mais alta. Se eles acham que a inflação vai ficar mais alta, reajustam seus contratos para um cenário de preços mais altos. E aí a inflação mais alta acontece.

Tem sido uma tradição do Banco Central brasileiro sinalizar um compromisso forte com a meta de inflação. Nos poucos momentos desde 1999 [início do regime de metas de inflação] em que duvidamos do compromisso do BC com a meta, principalmente no governo Dilma, isso criou um ruído e a inflação mudou de patamar muito rápido. Então há essa tradição de focar na meta e, portanto, usar o instrumento principal — a taxa de juros — para atingir a meta, deixando o desemprego como questão secundária. A meu ver, tem sido uma estratégia bem sucedida. É muito perigoso o Banco Central tentar perseguir um ponto da Curva de Phillips [aceitar mais inflação para ter menos desemprego], porque isso pode mexer nas expectativas de inflação.

ANDRÉ BIANCARELLI Nem o debate prático e teórico permite uma afirmação peremptória de que o desemprego baixo vai gerar inflação, e nem a situação do mercado de trabalho brasileira atual é taxativa no sentido de que estejamos muito próximos do pleno emprego. É fato que o mercado de trabalho está num momento de relativo aquecimento. Mas ainda não é uma situação ideal — tanto do ponto de vista do número de pessoas procurando emprego, quanto do tipo de ocupação que tem sido gerado.

E a inflação brasileira está muito bem comportada. O que têm de ruim são as expectativas de inflação para frente. Mas a inflação corrente se comporta bem. E mesmo o receio do Roberto Campos Neto e de analistas de mercado de uma possível pressão do mercado de trabalho na inflação de serviços não se verifica.

No fundo, temos uma tentativa do Banco Central de elencar, nas suas declarações, motivos para que na próxima reunião do Comitê de Política Monetária [7 e 8 de maio] ele possa, sem causar grandes solavancos no dia, possivelmente optar por uma redução de taxa de juros um pouco menor. Junto com isso, ele elenca a questão internacional — que, para mim, é a mais importante — e a da mudança da meta fiscal [de 2025 e 2026].

Mas eu diria que quanto melhor estiver o mercado de trabalho, isso deveria, para um economista, ser motivo de comemoração, não de preocupação. Há um excesso de zelo, uma visão muito negativa de um fenômeno que tende a ser positivo. Reduzir o desemprego é um aspecto desejável da condução da política econômica como um todo, assim como reduzir a inflação. A situação é um pouco reveladora da forma como a condução da política monetária no Brasil talvez seja enviesada demais, achando um motivo para manter os juros altos.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/05/05/desemprego-baixo-precos-bc?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240506&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240506+CID_f8054d0b50e4a4ab540bf66e97b2625e&utm_source=Email%20CM&utm_term=Leia%20sobre%20o%20tema

Nenhum comentário:

Postar um comentário