Morreu o grande escritor Paul Auster. O Rio Grande do Sul está em “estado de calamidade pública” por causa das chuvas. Meu amigo Luís Gomes, grande editor da Sulina, é a pessoa que mais lê a obra de Auster entre todas as que eu conheço. Eu gosto dos livros de Auster. O que pode justificar o título deste texto? Auster sempre foi fascinado pelo acaso. Nos seus romances o “e se” parece ser o motor principal. Há quem defenda que as mudanças climáticas em curso no planeta sejam fruto do acaso ou de mecanismos próprios da natureza.
Ver os estragos dos temporais nas cidades gaúchas assusta e entristece: pontes sendo engolidas pelas águas como se fossem de cartão, estradas devoradas como se o asfalto fosse uma casquinha de chocolate, casas levadas como aqueles castelinhos de areia na praia… Cenas que emocionam. São tantas pessoas desabrigadas, perdendo tudo, feridos, mortos, uma tragédia cujas marcas se estenderão pelo tempo. Tudo fruto do acaso? Pode ser que alguém estar na estrada no momento em que uma barreira cai seja acaso. Por que aquela pessoa e não outra? Por que não cinco minutos antes ou depois? Por que a viagem saiu se há estava cancelada? Por que ele e não eu?
Em oito meses o Rio Grande do Sul se vê confrontado a duas das maiores catástrofes naturais da sua história. Falar assim, catástrofe natural, faz pensar em fatalidade, ação aleatória do clima, conjunção de fatores estranhos ao humano, algo que, em determinado época, seria atribuído à ira dos deuses, e em outra, que era a nossa não faz muito, à fúria dos elementos em seus jogos sem um controlador. Num caso, punição do comando; no outro, falta de alguém no comando. Em todos esses casos o único inocente da história era o ser humano.
O fenômeno climático que sacode o mundo, porém, não é casual, está longe de ser o resultado de uma loteria natural. Tem a mão do ser humano. A mão do homem moderno, falocrático, dominador, determinado a controlar a natureza em todos os seus aspectos. A conta chegou. Séculos de intervenção brutal no meio ambiente provocaram as entranhas do organismo vivo que é a Terra. As consequências se revelam de modo violento. Nada, contudo, parece indicar que haverá de parte das autoridades mundiais uma mudança de rumo. Fala-se muito, algumas medidas aparecem, mas, no conjunto, tudo se perpetua. O projeto moderno de subjugação da natureza sempre teve a pretensão de ser o único possível. Como, então, parar ou alterar o rumo?
Paulo Auster se foi. Era um escritor sofisticado, elegante, intenso e, ao mesmo tempo, legível, suave, límpido, contador de histórias muito humanas, cheias de bifurcações, de inesperados, de variações existenciais, frestas que se abriam diante dos personagens, viradas impensadas, jogadas humanas ou da natureza capazes de mudar o jogo, alterar um “destino”, fixar um novo cenário. Em termos climáticos, estamos em novo e impactante cenário. Continuamos a jogar cartas como se nada tivesse acontecido. Precisamos de um Paul Auster que narre este momento que poderia ter o título de um dos seus últimos livros, o alentado “4321” ou 4…3…2…1…
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/paul-auster-o-acaso-e-as-mudancas-climaticas/
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