sexta-feira, 10 de maio de 2024

O olhar para o outro

Bruno Nogueira Humorista*

 

Imagem  Juan Cavia

Analisar o que nos rodeia foi a maneira que nós descobrimos de medirmos a distância que vai entre nós e alguma coisa. Fazemos o orçamento de cabeça, e é o resultado dessa medição que nos dá as contas finais que depois convertemos na opinião que temos sobre alguma coisa, ou sobre alguém.

A vida passa-nos à frente, e nós sentados numa poltrona de veludo, a avaliá-la. É confortável ver à distância, porque não nos envolve directamente com aquilo para onde estamos a olhar. Observar é um acto que dificilmente se consegue dissociar de ter uma opinião. A partir do momento em que vemos, não há como voltar atrás. É um trabalho sujo feito de uma forma limpa. Avaliamos tudo, mesmo quando achamos que estamos só a ver ao longe, sem julgamento, sem avaliação. Achamos que ninguém sabe, mas estão todos a fazer o mesmo, cada um calado no seu canto.

Analisar o que nos rodeia foi a maneira que nós descobrimos de medirmos a distância que vai entre nós e alguma coisa. Fazemos o orçamento de cabeça, e é o resultado dessa medição que nos dá as contas finais que depois convertemos na opinião que temos sobre alguma coisa, ou sobre alguém. O preconceito é a nossa primeira língua de adultos, mesmo que a queiramos esconder. Aprendemos sem nos darmos conta, vai-nos entrando nos ossos, e eis que começamos a ter opiniões formadas precipitadamente, só apoiadas no que vemos, e no que ouvimos, ainda antes de conseguirmos entrar a fundo no assunto. Estamos sempre a tirar medidas a tudo o que se passa à nossa volta; temos um computador de bordo que vai estudando tudo o que se cruza connosco, e que acumula informações que se vão somando para nos servir em avaliações futuras.

Com os anos vamos construindo uma base de dados que nos vai encurtando o tempo de espera, e apressamo-nos cada vez mais a achar que sabemos o que nem sempre sabemos. Muitas vezes nem temos de dar voltas à cabeça para saber que há pessoas que não queremos por perto, nem dadas. Às vezes criamos uma ligação com alguém que não conhecemos só pelas ideias que fomos criando na nossa cabeça sobre como ela seria. Outras vezes evitamos que ela chegue sequer a entrar na nossa vida, porque temos a arrogância de achar que já sabemos tudo o que há para saber, e onde é que isso nos vai levar. Construímos-lhe uma personalidade feita por nós, com os nossos requintes de bondade e de malvadez, e depois é uma trabalheira para que essa pessoa se consiga livrar daquilo que muitas vezes não é um fardo dela. Chega até nós já com uma mochila pesada que lhe pomos às costas sem ela ver.


Alguém que chegue até nós depois disto, tem de nos convencer que não é aquilo que nós já temos quase a certeza que é. Tem de desatar um nó complexo, muitas vezes sem saber que o está a fazer diante dos nossos olhos. Somos pequenos imperadores caprichosos, que vamos tecendo muito subtilmente uma teia na nossa cabeça na forma daquilo que queremos ou não queremos à nossa volta. Cruzamos as pernas, pousamos o queixo no ombro, levantamos a sobrancelha, e o mundo que desfile à nossa frente, que nós de bloco e caneta em riste logo tratamos de dizer o que achamos dele sem nunca termos de nos levantar. Metemos tudo em caixinhas, para não sermos apanhados de surpresa, e depois chamamos-lhe "intuição". Criamos uma fortaleza para que, o que quer que venha, já tenha um livro de recomendações que nos poupe ao sobressalto do imprevisto.

Temos pessoas que precisam de mais energia nossa do que aquela que às vezes temos – vão para esta caixinha. Há umas que estão sempre bem dispostas, e que nos conseguem tirar do pântano para onde nos arrastam os dias maus – vão para esta. Temos outras que nos puxam para baixo, e que por muito que tentem não conseguem ser leves – vão para esta. E vamos usando cada uma em conformidade com o dia em que estamos, como se fosse um guarda roupa emocional que vamos gerindo consoante o tempo que estiver dentro de nós.

Esse julgamento que fazemos não é uma arma de arremesso, é antes uma forma de nos salvaguardarmos. A roupa que veste, a maneira como fala, como se comporta com outras pessoas, como anda, como olha para o outro. Temos sensores ligados em todo o lado, e tudo à nossa volta está também de sensores ligados. Partir para alguém sem preconceitos implicava nascer outra vez e não saber nada sobre nada. A inocência é justa com o outro, porque faz com que se parta sempre do zero. Na impossibilidade desse vazio, resta-nos aceitar que somos como somos, pela soma de coisas que nos foram acontecendo ao longo da vida. Umas vezes acertamos, outras falhamos, e é no reparo dessa nossa constante precipitação que reside a virtude de tentarmos ser melhores. Avaliamos os outros, e nesse processo quase nos esquecemos que, no fundo, estamos a avaliar e a dizer ao mundo aquilo que nós próprios somos. 

*Humorista. Roteirista. Ator de TV. Cronista.

Fonte:  https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/o-olhar-para-o-outro?&utm_source=Newsletter&utm_campaign=Editorial_S%c3%a1bado_EdicaoNoite+-+Alive&utm_medium=email&sfmc_segment=Alive&sfmc_term=Alive##utm##

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