Autoria SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS
RESUMO
Vários autores têm chamado a atenção para o fato de que, com a explosão de dados, entramos em uma segunda era da internet, também chamada de era da dataficação. O caráter disruptivo inusitado, que essa explosão tem provocado nas sociedades que habitamos, à primeira vista parece indecifrável. Entretanto, tenho feito o esforço de buscar compreender alguns dos traços principais capazes de desenhar as tensões de forças do contemporâneo. Dei a esse esforço o nome de diagnóstico do contemporâneo cujas característica e suas consequências estão discutidas neste artigo.
PALAVRAS-CHAVE:
Dataficação; Diagnóstico; Contemporâneo; Consequências sociais
ABSTRACT
Several authors have drawn attention to the fact that, with the explosion of data, we have entered a second era of the internet, also called the age of datafication. The unusually disruptive character that this explosion has provoked in the societies we inhabit seems at first sight indecipherable. However, I have made an effort to seek to understand some of the main traits capable of designing the tensions of contemporary forces. I called this effort the diagnosis of the contemporary, whose characteristics and consequences are discussed in this article.
Tenho repetido em meus últimos escritos (Santaella, 2021, 2022) que entramos decididamente na era do big data, da explosão de dados, que também podemos chamar de “segunda idade da internet”, ou seja, a passagem da digitalização para o império dos dados, a dataficação (Lemos, 2021). Diante disso, defendo a tese de que a explosão de dados significa também o agigantamento da expansão da memória humana, deslocada para potentes dispositivos externos de que o Google, no estado da arte atual, é exemplar. Diante dos oceânicos acervos que transitam pelas grandes plataformas que recolhem e monitoram dados humanos, a memória de cada ser humano em particular, na sua singularidade, não passa hoje de um grãozinho de areia em um infinito areal.
Evidência empírica dessa afirmação encontra-se no fato de que, há alguns anos, em 2020, um número que, de lá para cá, certamente se avolumou, a Web, por meio das suas plataformas de serviços como redes sociais, e-comércio, mensagens etc., gerava e distribuía novos dados em quantidades exorbitantes. A produção diária de dados estava estimada em torno de 2,5 quintilhões (um número com dezoito zeros) de bytes, sendo a maior parte de dados não estruturados, como vídeos e áudios. Todos esses dados relacionam-se com atividades humanas, sentimentos, experiências e relações do dia a dia. Importante acrescentar que, sem a inteligência artificial, esses dados não passariam de dados mortos (Mueller; Massaron, 2020, p.26).
Tal estado de coisas, que não dá mostras de ser facilmente estancado, tem me levado a buscar alguns dos traços capazes de caracterizar o que passei a chamar de “diagnóstico do contemporâneo” cujo esboço será apresentado a seguir no ponto de desenvolvimento em que hoje se encontra. Certamente, trata-se de um modesto diagnóstico que toma a cultura como plataforma para o lançamento das ideias. Para que não nos percamos em nuvens de palavras relativas à cultura, parece mais apropriado aos nossos propósitos pensar a cultura como questão situada no tempo e no espaço geopolítico. Portanto, estarei aqui falando da cultura no contemporâneo, no aqui e agora, já que se trata meramente de um diagnóstico.
Por contemporâneo compreendo o amálgama em que se constitui essa era da cultura digital na sua fase dataficada (Lemos, 2021; Bruno et al., 2019), cuja potência consiste em absorver e transformar tecnologicamente, na sua própria morfogênese, todas as formas de cultura que lhe foram precedentes, a oralidade, a escrita, a gutenberguiana, a massiva, a midiática, acompanhadas das injunções político-sociais que nelas deixaram suas marcas, tudo isso muito misturado. Essas eras culturais não morrem, permanecem como camadas tectônicas da cultura. E a cada nova onda na superfície da camada digital dataficada em que hoje estamos, com suas ondas recentes da inteligência artificial e agora do metaverso e principalmente da IA generativa que tanto barulho está provocando, as camadas tectônicas se mexem, provocando confusos efeitos na superfície. Não obstante a confusão, creio ser possível diagnosticar os traços gerais do contemporâneo por meio de cinco grandes atributos.
Atributo 1: hibridismo
Do hibridismo extraio o primeiro grande atributo definidor da cultura em que vivemos: o amálgama, as misturas em uma cultura de todas as culturas. Há algumas décadas, desde a inseminação da digitalização nas sociedades e na vida humana, tornou-se praticamente impossível deixar de usar o termo “hibridismo” para caracterizar tudo que diz respeito às culturas. Não foi casual o prêmio concedido pela Latin American Studies Association, em 2002, ao melhor livro sobre a América Latina para Néstor García Canclini (1997), antropólogo argentino, há algum tempo radicado no México. Sua obra Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade marcou época pela agudeza com que analisou as instabilidades e constantes reorganizações dos cenários culturais, os deslocamentos e contradições, os desenhos móveis da heterogeneidade temporal e espacial das sociedades latino-americanas. Com isso, o livro prenunciou a enorme expansão pelas quais as várias formas de hibridismo iriam passar daí para a frente.
Conforme já discuti em diversas ocasiões, no campo da cultura, hibridismo inclui as noções de mestiçagem, grupos étnicos misturados, miscigenação, sincretismo, fusões religiosas de símbolos africanos e americanos, referindo-se ainda a muitas outras espécies de misturas interculturais, contatos culturais densos, trocas e cruzamentos de temporalidades históricas altamente diversas. No seu emprego do termo, Canclini preferiu “híbrido” aos vocábulos correlatos “sincretismo” e “mestiçagem” porque “híbrido” abrange várias mesclas interculturais - não apenas raciais como o termo “mestiçagem” - e porque permite incluir as formas contemporâneas de hibridização melhor do que “sincretismo” que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais.
De fato, com o diagnóstico do hibridismo, Canclini deu um tiro na mosca, pois de 1990 para cá, a hibridização se tornou a marca registrada da cultura em que vivemos, na qual proliferam múltiplas plataformas, aplicativos e telas, povoa- das de dilúvios de signos heterogêneos.
Atributo 2: Emaranhado temporal
O segundo atributo de que lanço mão para caracterizar o contemporâneo é aquilo que passei a chamar de emaranhado temporal. Octavio Paz (2012) fez uma sábia afirmação, há alguns anos, de que uma civilização se define pela concepção de tempo que a anima. “Cada civilização é uma visão do tempo. Instituições, obras de arte, técnicas, filosofias, tudo o que fazemos ou sonhamos é um tecido do tempo”. De fato, a questão do tempo é crucial para se compreender a quebra, a ruptura que acionou a passagem para a pós-modernidade, como uma era cujo substrato maior encontra-se no abandono da visão linear do tempo de que a modernidade se alimentou. É a linearidade do tempo que sempre esteve na base da noção de progresso que dá sustento ideológico ao capitalismo. “O progresso deixou de ser uma ideia e se converteu em uma fé. Mudou o mundo e as almas. Não se redime de nossa contingência; o exalta como uma aventura que sem cessar recomeça” (ibidem).
O abandono da linearidade temporal, de certa forma, foi impelido pelo advento da cultura digital que já se anunciava nitidamente nos anos 1980. Acompanhada pela escalabilidade dos sistemas computacionais e das redes (algoritmos e protocolos) em sua capacidade de melhorar seu desempenho na proporcionalidade do que lhe é adicionado, o digital veio para embaralhar todas as cartas no jogo do tempo: simultaneidade, sincronicidade, o passado no presente, o presente de muitos passados, futuros antecipados pelas simulações computacionais etc. Isso que apenas se anunciava há poucas décadas intensificou-se cada vez mais.
É, portanto, o emaranhado temporal do contemporâneo que tomo como o segundo atributo relevante para o diagnóstico da contemporaneidade. Como me dirijo muitas vezes aos artistas, sou levada a repetir o que já devem ter me ouvido dizer sobre aquilo que aprendi com Pierre Boulez, a saber, que são os artistas que sabem para onde sopram os ventos da criação na direção do futuro, com o cuidado, entretanto, de reconhecer que o curso de nossa existência nos atribui uma época, de modo que só podemos sonhar com o futuro a partir daquilo que o passado poderia ter sido e que ainda não foi. É nesse sonho que os artistas são exímios.
Portanto, para ser fiel ao emaranhado temporal do qual parto, não há apoio mais propício do que aquele que Walter Benjamin nos fornece na sua filosofia da história, quando diz que articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo (Benjamin 1987, p.224).
O passado, portanto, não é algo definitivamente concluído e fixo ao qual podemos recorrer, mas, sim, o que acontece tem que se referir ao que aconteceu anteriormente, em uma linha vetorial projetada para a frente. A linha deve ser revertida para poder ser projetada. Essa concepção de Benjamin sintoniza com a lição maior da psicanálise: a ressignificação. Só compreendemos o nó do presente, quando ressignificado pelo passado e é dessa ressignificacão que se pode apontar para os prenúncios do futuro.
A concepção tensionada do tempo em nada se assemelha à noção de utopia que, sabidamente, quando projetada sobre a realidade sociopolítica, acaba por redundar não só em autocracias, mas também em matanças coletivas. Não faltam exemplos disso na história que foram magistralmente retratados no romance Bend Sinister, de Vladimir Nabokov (2010). Mas para ficarmos com Benjamin, o passado que relampeja, no instante do perigo presente, é aquilo que a revolução digital poderia ter sido, e que não foi, instalando a humanidade no vórtice de tensões, ambivalências e desafios cruciais.
Atributo 3: Interatividade onipresente
De 2010 para cá, a chamada Internet das coisas (IoT, Internet of Things, em inglês) por meio de sensores e outros meios conectivos, foi transformando aquilo que costumávamos chamar de coisas em seres sencientes e comunicantes. Processos de comunicação máquinas e máquinas, máquinas e humanos, humanos e humanos, coisas e humanos, máquinas e coisas foram, cada vez mais, cobrindo a superfície da Terra, e inclusive escapando em direção ao cosmos, em uma fina malha interconectiva.
Autor que tem se destacado na discussão conceitualmente fundamentada dessa questão é Massimo Di Felice. Para Felice (2020, p.25-31), a partir do processo de incremento da conexão da Web 2.0 ou internet pós-computador, a liberação dos fios abriu caminho para um terceiro modelo de rede, que estendeu o processo interativo até as coisas e objetos e que passou a ser chamado de “internet das coisas”. Com isso, todo tipo de superfície adquiriu a possibilidade de transmitir dados na internet “a partir da aplicação de sensores e etiquetas, capazes de enviar informações via rádio frequência (RFID). Estradas, árvores, rios, pontes e geleiras começaram, então, a transmitir dados, a se comunicar e a interagir entre si e conosco, criando um novo tipo de rede não mais limitado às pessoas”. Essas novas condições provocaram mudanças profundas em nossa ecologia ao transformar potencialmente todos os tipos de mercadoria e objetos em entidades comunicantes, alterando o nosso hábitat, ao introduzir não humanos no interior do nosso mundo e torná-los parte do nosso convívio.
Como consequência, a ontologia antropocêntrica passa por um grande desafio com a emergência de um novo tipo de materialidade, “um novo tipo de matéria informatizada, nem apenas física, nem apenas informação, mas transorganicamente comunicante enquanto parte e membro de uma nova ecologia informativa”. Desse modo, a internet social, a internet das coisas e a internet dos dados formam redes conjuntas e interdependentes na composição de uma internet of everything (Felici, 2020, p.32-3). Tudo isso nos obriga a reconsiderar nossa ideia de humano que, segundo Felice (2020, p.59), transfigura-se em um ser distribuído, disseminado em fluxos e dados de redes na constituição de uma nova forma de política, a cosmopolítica, aliás, necessária em tempos de Antropoceno.
Atributo 4: Aceleração
O quarto atributo a que recorro para o diagnóstico do contemporâneo encontra-se na mudança do ritmo da própria mudança, ou seja, na cultura da aceleração. O tema da “grande aceleração” vem sendo tratado no âmbito das discussões sobre o Antropoceno, no contexto da geologia, das mudanças climáticas e da crise ecológica do planeta. O termo foi enunciado por Will Stephen da Universidade Nacional da Austrália, em uma entrevista para a BBC (Falcon-Lang, 2011). Não existe um consenso relativo ao ponto exato de início desse novo período geológico. Poucos acreditam que tenha se iniciado com o advento da agricultura há 8 mil anos e que levou hoje à cobertura de uma extensão de 38% da terra não gelada do planeta. A maioria dos especialistas se distribui entre duas opções: final do século XVIII, com a Revolução Industrial, ou então 1945, depois da Segunda Guerra Mundial. No primeiro caso, a análise do ar mostra o início da concentração global crescente do dióxido de carbono e metano, o que coincide com a invenção da máquina a vapor, 1784, por James Watt. É a partir dessa data também que a expansão do ser humano, que, então, estava na margem de um bilhão, se fez acompanhar pela exploração dos recursos da Terra a ponto de se esperar que neste século a população chegue a 10 bilhões de pessoas. As florestas tropicais desaparecem em um ritmo alarmante soltando dióxido de carbono e levando à extinção de várias espécies.
É no segundo caso que a expressão “grande aceleração” cabe com justeza. Trata-se da data de 1945 que é sinalizada como marco definitivo do Antropoceno. Foi essa época que determinou o surgimento da era nuclear e a assinatura radioativa que ela deixou sobre a superfície da Terra. Paralelamente, a economia global cresceu dez vezes em apenas algumas décadas. Mas uma das grandes preocupações nessa aceleração encontra-se na perda da biodiversidade, quando o ritmo de extinção das espécies da biosfera está correndo ao passo de cem a mil vezes mais rapidamente. Enfim, o grande problema é que, acompanhando esse ritmo, estamos consumindo exponencialmente mais recursos da natureza (Santaella, 2015).
Se a mudança da própria mudança já deixa marcas na própria geologia do planeta, ela não poderia deixar de estar presente e se fazer notar em outras tantas realidades humanas. Para tomarmos como exemplo uma realidade que está bem próxima da nossa experiência cotidiana, tenho tomado a vivência das redes sociais como uma camada muito visível da cultura capaz de servir de exemplo palpável para a constatação de que vivemos em ritmo de aceleração. Dei a isso o nome de giros copernicanos das redes sociais. De fato, de quando em quando, e muito rapidamente, as redes promovem verdadeiros giros copernicanos de mudanças nos seus modos de funcionamento. Para tornar isso evidente, basta marcar algumas grandes conjunturas.
Conjuntura inicial: quando a internet começou a disseminar o computador como mídia comunicacional interativa e planetária, sob o nome de cibercultura, essa condição foi recebida com grande euforia. Embora já houvesse vozes distópicas, predominavam discursos sobre a democratização da informação. De fato, não era pouco o encantamento diante das formas emergentes de socialização, de trabalhos em equipe, dos portais, dos sites, dos buscadores que, aliás, não nos levavam muito longe e do ainda incipiente acesso à informação.
Primeiro giro copernicano: segundo Kleiner e Wyrick (2007, s.p.), ao invés do modelo tradicional de um provedor de conteúdo na Web que publicava seu próprio conteúdo para o consumo de um usuário final, surgiu um novo modelo. Já em 1999, o consultor de arquitetura da informação, Darcy DiNucci, havia cunhado o termo Web 2.0 que se popularizou a partir da Conferência 2.0 da O´Reilly Media, em 2004. (Yasar s.d.). Embora não seja possível marcar com um número preciso a passagem de uma Web a outra, pois uma fase não acaba para que outra tome o seu lugar, é certo que a entrada do novo milênio inaugurou algumas mudanças significativas em um modelo que passou a permitir que o site de uma empresa atue como um portal centralizador entre os usuários que passam a ser os criadores e consumidores. Trata-se, pois, do momento em que, graças às novas plataformas de relacionamento, X (Twitter), Facebook e outras mais, o usuário tomou o poder sobre as redes, facilitado pelos dispositivos móveis. Reinavam, então, as wikis, os blogs que atraíam as comunidades sociais de usuários como abelhas ao mel. Estávamos na primeira década deste século, apenas uma década atrás, uma espécie de idade da inocência. “Publicávamos coisas simples, do dia a dia: fotos das pessoas que amamos, de animais de estimação, cenas caseiras e até coisas engraçadas e absurdamente tolas. Sem a patrulha ideológica, as pessoas se sentiam protegidas em um grupo restrito de amigos de verdade” (Caetano, 2018, s.p.).
Segundo giro copernicano: deu-se, então, a entrada das redes na era do anticlímax. “A coisa pegou fogo. Lacradores de direita, de esquerda, de centro e de todos os matizes”, que, ao fim e ao cabo, terminam sempre por se aproximar dos extremos maniqueístas, “sem constrangimento ou qualquer autocrítica, xingam-se pelas redes sociais, sendo que o Facebook, com excelentes recursos visuais e de interação”, parece ser o lugar ideal para isso. “Essa fase louca das argumentações lacradoras, que marcou o processo político brasileiro nos últimos anos (ibidem), continua muito presente hoje em dia”, especialmente porque as redes converteram-se em fontes inesgotáveis de desmedida disseminação de fake news, instalando nossa visão da realidade em uma era da pós-verdade. Ao mesmo tempo, isso convive com muitas outras coisas, como games, e-comércio, contextos geoespaciais etc.; convive ainda com o incremento da conectividade graças aos metadados semânticos, com a ubiquidade que permite a conexão de quaisquer recursos à Web de modo que os mais variados serviços podem ser utilizados em todos os lugares.
Terceiro giro copernicano: embora as redes digitais continuem a provocar muitíssimo frisson, tanto quanto posso ver, elas se constituem hoje apenas na ponta do iceberg, pois as sociedades humanas entraram decididamente em uma nova era. Alguns a chamam de segunda era da internet. É tamanha a variedade atual dos recursos digitais que parece justa a nomenclatura da Web 4.0 e mesmo 5.0 para abrigar os grandes temas do momento, cuja sequência não custa repetir: computação na nuvem, internet das coisas ou comunicação máquina-máquina, internet dos corpos, big data, cidades inteligentes, tudo isso incrementado pela Inteligência Artificial (IA). Há autores que consideram as numerações da Web como estratégias meramente mercadológicas. Sem negar que elas funcionam bem para isso, não se pode igualmente negar que essas marcações servem para identificar nítidos saltos na evolução da Web. Tanto é assim que, embora tenha sido crítico da nomenclatura Web 2.0, Tim Barners Lee, o criador da WWW, apoiou a nomenclatura Web 3.0, assim batizada por John Marckff, em 2006, na pressuposição de uma terceira geração de serviços da Web que recebeu o nome de Web semântica (Sabino, 2007, s.p.).
Atributo 5: Estilhaçamento discursivo
A explosão do identitarismo e das reivindicações ativistas, a que hoje assistimos, apresenta raízes históricas que é preciso resgatar. Conforme já desenvolvido em Santaella (2013, p.93-110; 2017, p.61-78), a tradição do ativismo político teve suas origens nos movimentos operários no nascedouro do capitalismo industrial, quando as jornadas de trabalho chegavam a 20 horas diárias sem descanso semanal. Esses movimentos, com as transformações que lhes eram específicas, inseriram-se na tradição dos movimentos populares dos escravos, artesões, camponeses e plebeus.
Assim, até os anos 1970, os movimentos sociais eram entendidos como ações coletivas de caráter revolucionário contra as relações de produção contraditórias do sistema capitalista. Equalizavam-se, portanto, à luta de classes na ação histórica da sociedade. Já a partir dos anos 1980, com o fim da guerra fria, sob o manto da pós-modernidade, os movimentos sociais se tornaram mais heterogêneos e complexos, configurados no meio urbano, com estruturas e linhas de ação diversificadas ambientalistas, feministas, pacifistas, pelos direitos dos animais etc. Sob o título de novos movimentos sociais que, na maioria das vezes, ocorrem na forma de associacionismo civil, o que os unia na heterogeneidade era a oposição à ordem predominante por meio de estratégias de mobilização. Nesse novo contexto, mudou e ampliou-se também a concepção de movimentos sociais, anteriormente atrelada estritamente ao marxismo.
A grande mudança, entretanto, viria a partir da Web, quando as estratégias dos movimentos sociais passaram a tirar proveito dos aparatos das redes, crescendo e se diversificando pari passu ao desenvolvimento das redes. Antes estritamente dependentes das praças públicas, bloqueios de estradas e de avenidas etc., hoje, os movimentos sociais ganharam aceleração e amplitude graças às tecnologias computacionais interativas, especialmente as nômades que se desvencilharam dos limites impostos pelos fios.
Desse modo, começou a se espraiar pelo ciberespaço uma pluralidade de grupos com preocupações, interesses e comprometimentos comuns. Esses grupos, com a nova nomenclatura de ciberativismo e netativismo, passaram a defender os direitos humanos das minorias, apoiando, entre outras, as causas ambientais, ecologia, desenvolvimento sustentável, reforma agrária, educação, arte e cultura com formas de atuação e abrangência - local, regional, nacional ou internacional - e limite de tempo - curto, médio e longo prazos - igualmente plurais.
A partir do ano 2015, a tendência ao pluralismo, em função do desdobramento constante das redes sociais, hoje acrescidas pelo TikTok e Telegram, acentuou-se até o ponto de estilhaçar o pluralismo em uma gigantesca colcha de fragmentos. Tomando por base o cuidadoso estudo levado a cabo por Salgado (2022), multiplicaram-se os ativismos relativos aos oprimidos e às minorias. Esse status costuma ser percebido como de vitimização e desfavorecimento ligado a uma dimensão politizada de identidade cujas principais camadas incluem sexo, gênero, sexualidade, raça, etnia etc.
Para se ter uma ideia dos desmembramentos multiplicadores, basta citar as variações dos feminismos, entre eles: o feminismo radical, marxista, liberal, socialista, negro, psicanalítico, igualitário, pós-estruturalista e ciberfeminismo (ibidem, p.233). Atualmente, a terceira onda do feminismo está unida ao pós-colonial, ou melhor, decolonial, em que as críticas de gênero se municiam da crítica ao neoliberalismo e ao legado eurocêntrico da epistemologia ocidental.
Infelizmente, a legitimidade dos movimentos identitários acaba por se dissipar em um oceano de mal querer em que se converteram as redes e seus sucedâneos, mergulhadas em ambientes de ódio, racismo, antissemitismo, homofobia e todos os riscos neofascistas associados. Isso leva à constituição de guerras culturais que prefiro chamar de estilhaçamento discursivo. Em 1979, Lyotard já havia diagnosticado a dissolução das grandes narrativas. Embora aí estivesse uma chispa de antecipação, mal podia ele supor que hoje estaríamos desorientados entre estilhaços de representações de mundo.
Consequências sociopolíticas e psíquicas
A caracterização quíntupla da cultura contemporânea, aqui esboçada - híbrida, emaranhada temporalmente, conectada, acelerada e discursivamente estilhaçada - parece-me necessária para apalpar as condições que ora vivemos cujas consequências sociais e políticas abalam todas as camadas tectônicas da cultura. Infelizmente essas camadas tectônicas costumam ficar esquecidas devido ao frenesi em relação àquilo que está na crista da onda, o que aumenta a confusão generalizada. A moda é cair na moda do presentismo ou da agoridade, algo que é intensificado pelo sensacionalismo não só das redes, mas também do próprio jornalismo dito qualificado, no qual igualmente todas as fontes se evaporam e se perdem. Só vale o que está na crista.
Consequência ainda mais problemática encontra-se no costumeiro esquecimento da questão da exclusão muito especialmente em países do Sul Global estruturados em hierarquias nítidas cujo topo minoritário goza de privilégios despudoradamente ostentados enquanto na base maioritária perduram condições que avançam da exclusão digital até a tendência à precariedade, à marginalidade gerando a impiedosa espiral da exclusão de grupos sociais em direção do “bas-fond” (Zione, 2006, p.27).
Por outro lado, quando buscamos penetrar no emaranhado em que o ser humano está envolvido, no campo empresarial, aquele que, queira-se ou não, em sociedades neoliberais, funciona como a grande locomotiva, com todos os efeitos colaterais que provoca, o relatório de metatendências para 2022-2023 (Casa Firjan, 2022) apresenta uma série impressionante de novidades de curto prazo, acompanhadas por algumas palavras grandiloquentes: cibertopia, altermundo, manutenção do legado ambiental e cultural com inúmeros componentes não menos grandiloquentes. Entre eles, a nova crista da onda é o figital, a mistura indissolúvel do físico com o digital, uma abordagem pela qual “empresas, sobretudo as que atuam no varejo, se propõem a oferecer mais que produtos, mas experiências memoráveis” (Future com, 2022). Para evitar a ausência do biológico que, de fato, não interessa às empresas, voto pelo uso de fibiogital em lugar de figital. Isso está desenvolvido em meu livro, sob o título de Neo humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens (Santaella, 2022).
A outra crista que está tomando conta do sensacionalismo, até há pouco devotado à inteligência artificial, é o metaverso (Gabriel, 2022). Essa nova onda de chamar de Web 3.0 à corrida do ouro empresarial em que estão envolvidos o Metaverso e todos os seus coadjuvantes, blockchain, moedas virtuais, fintechs etc., produz um nevoeiro confuso contra aqueles que têm pesquisado há anos o desenvolvimento acelerado das tecnologias digitais. O retorno dessa numeração, algum tempo depois de a crítica cultural, mais preocupada com o uso humano das tecnologias, já haver chegado à Web 5.0 (quer dizer da inlife e inteligência contínua), só vem comprovar o quanto as numerações da Web mais confundem do que ajudam. Em suma, só servem para comprovar que vivemos em um inescrutável mundo em que cada um de nós encontra dificuldade para buscar o seu lugar.
As consequências políticas, culturais e psíquicas dessas disrupções são muitíssimas e profundas. Entre elas assistimos à fragmentação e dispersão dos antigos conceitos de povo, populismo, público, espaço público, debate público etc. Democracia é um valor ético, um princípio jurídico e um ideal coletivo inquestionável. Mas o modo como ela opera não pode ser pensado nos moldes em que operava no mundo pré-digital. Exemplo disso encontra-se no susto internacional de 2016 e nacional de 2018.
Tudo isso dá origem a uma oposição conflitiva entre, de um lado, o modo descentrado, submetido a uma nova economia da atenção (Santaella 2010, p.297-310) com que as pessoas pensam e agem na continuidade on/off de suas vidas e, de outro lado, o modo com que as estruturas lineares e hierarquizadas do passado, cujo apogeu se deu na cultura do livro, ainda teimam em permanecer tanto nas organizações sociais e políticas, quanto também nas formas de pensamento e de discurso alimentadas por expectativas conservadoras que a hibridização das linguagens e culturas não é mais capaz de preencher. Para Sterling (apud Galloway 2004, p.158), estamos em um momento de transformação de um paradigma de controle moderno baseado em centralização e hierarquia para um paradigma pós-moderno, baseado em flexibilidade e horizontalidade, hoje em uma fase profundamente fragmentada.
Embora os antigos valores ainda persistam em nossas cabeças, eles não são mais operativos no real. Pior do que sonhar com esses conceitos inoperantes, é usar novos conceitos, mas preenchidos de ideias velhas. Isso não significa que valores, especialmente éticos que são o orgulho que resta ao humano, devam ser abandonados, mas sim, readaptados ante a nova constituição do humano, essa a tarefa mais crucial da educação nesta temporalidade emaranhada. Para isso, entretanto, é preciso constatar que a ascensão da vida digital se fez acompanhar pelo crescimento de efeitos colaterais desafiadores, entre eles, é preciso constatar, de acordo com Sloterdjik (1999, p.70), “que sociedades que já pareciam civilizações sofrivelmente integradas regrediram a tribos neuróticas após a perda de suas próteses políticas imaginárias”.
No plano psíquico estão aí estabelecidos alguns princípios para que comecemos a perceber que hoje, na cultura dos dados, por mais que isso doa aos nossos hábitos adquiridos de compreensão, os corpos humanos vivos não têm muito mais a ver com uma “essência imaterial, ou almas, ou o que se queira, mas sim, com quantificação, registro e codificação (Galloway, 2004, p.113). Vivemos em um tipo paradoxal de consonância dissonante com agentes inteligentes que permitem predizer características, particularmente nossos desejos, tendo por base a materialidade dos dados sob o incremento dos algoritmos.
Sobram razões para que cada um de nós se veja imerso em incerteza, desorientação, saturação, ansiedade. Diante disso, o que fazer? Digo que o sensacionalismo mal-informado, retórico e saudosista em nada ajuda a enfrentar os desafios. Na minha posição de militante para o avanço do conhecimento, posição que tenho mantido vida afora, sustento o lema do bem entender para melhor agir, por mais que isso implique o engajamento na ética do intelecto que custa em tempo, dedicação e muito estudo aquilo que vale contra as farsas intelectuais que procriam no gregarismo autocomplacente.
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