Mino Carta *
Ilustração: daniele doneda. Foto: José Cruz/ABr
Se Caravaggio conhecesse a ministra Cármen Lúcia, creio que a escolheria como modelo de uma de suas obras
Durma-se com um pesadelo destes...
Caravaggio
escolhia seus modelos nas ruas, desde um grupo de jogadores de baralho
reunidos à volta da mesa de uma estalagem do arrabalde até a cortesã
Fillide Melandroni, iguaria de príncipes e cardeais, personagem de
várias telas, entre elas Judite e Olofernes.
De outro nível era a prostituta com a qual viveu por dois anos, modelo para duas Madonne,
a dos palafreneiros e a dos peregrinos. Formosa de traços
mediterrâneos, tinha um filho dos seus 5 ou 6 anos, em nada parecido com
o icônico Menino Jesus e, no entanto, designado para o papel pelo
pintor. Não sei da modelo da Medusa conservada em Florença nos Uffizi,
mas ouso supor que a presidente do Supremo Tribunal Federal funcionaria a
contento.
A ministra Cármen Lúcia de tudo faz para
me espantar. Na segunda 11, no seminário “Trinta anos sem censura: a
Constituição de 1988 e a liberdade de imprensa”, disse impávida que “sem
imprensa livre a Justiça não funciona bem, o Estado não funciona bem”.
Com candura, perguntei aos meus atônitos
botões se porventura, em um repente de sinceridade e insólita sabedoria,
teria apresentado as razões da tragédia em que o Brasil precipita como
em um abismo sem fundo. Quem se faz de bobo, resmungaram os meus
soturnos interlocutores, você ou ela?
A mídia nativa, é do conhecimento até do mundo mineral,
defende os interesses da casa-grande, mesmo porque seus patrões são
inquilinos da mansão. Esta não é liberdade de imprensa, e sim a
obrigação de informar da maneira mais conveniente aos donos do poder.
Certo é que no momento a Justiça e o Estado de fato não funcionam.
Melhor, foram demolidos pelo estado de exceção gerado pelo golpe de 2016.
A ministra Cármen Lúcia, que preside também o CNJ,
promotor do seminário, deita falação sobre um Constituição enxovalhada
faz mais de dois anos, brutalmente rasgada, a turvar o sono eterno de
Ulysses Guimarães. Há momentos em que a argumentação dos meus botões me
soa de total coerência.
A presidente do STF acredita realmente
que o Brasil vive hoje uma “democracia plena”, onde cada cidadão exerce
“sua liberdade de forma crítica e bem informada?” Trata-se de um
bestialógico arrepiante, de sorte a justificar sérias dúvidas em relação
à saúde mental de quem o desenrola de cara lavada.
Em artigo recente, publicado na Época,
Conrado Hubner Mendes, professor de Direito da USP, escreve com rara
felicidade: “O estilo de Cármen Lúcia escancarou um costume perverso do
STF: a total arbitrariedade do que entra e do que sai da pauta (...) A
agenda constitucional do País tornou-se agenda do STF, e quem manda nela
é uma única pessoa”.
O professor refere-se explicitamente,
entre outras situações, ao caso da execução da pena em segunda instância
cuja ação deixou de pautar para que a questão viesse à tona “por
ocasião do habeas corpus de Lula”. Agora, a ministra Cármen Lúcia
aventa a necessidade de uma reinterpretação da Constituição para
adequar-se “às transformações vividas nas últimas décadas”.
Quem sabe cogite de uma reformulação capaz de consagrar o estado de exceção, o impeachment conforme a vontade da casa-grande, as condenações sem prova, o loteamento do País para entregá-lo ao capital estrangeiro.
A Medusa transformava em pedra quem a
encarasse, mas Perseu soube como enfrentá-la instruído por Palas Atena, e
a deusa da sabedoria cuidou de presenteá-lo com uma espada e um escudo
destinado a refletir o olhar funesto da criatura monstruosa.
Protegido desta forma, Perseu em
segurança avançou contra a Medusa e a decapitou com sua cabeleira de
serpentes. Um herói mitológico, mais Hércules do que Perseu, talvez
pudesse enfrentar a enésima fadiga para consertar o Brasil reduzido a
escombros política, econômica e moralmente. Mas, se viesse Perseu,
Sergio Moro já o teria condenado e encarcerado antes que ele recebesse
os presentes da deusa da sabedoria.
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*Jornalista, editor, escritor e pintor ítalo-brasileiro.
Fonte:https://www.cartacapital.com.br/revista/1008/a-medusa?utm_campaign=newsletter_rd_-_18062018&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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