José de Souza Matins*
O
caminhonaço que parou o país nos últimos dias e provavelmente causou prejuízos
de bilhões de reais, tanto ao próprio governo quanto à economia privada, é um
desses episódios reveladores do que é a crise atual da sociedade brasileira. As
revelações são várias, tanto dos seus níveis ocultos quanto dos seus níveis
explícitos.
Uma delas
é a do vazio do poder. O Estado brasileiro passou por transformações profundas
nas últimas décadas: na redemocratização de 1946, no golpe de 1964, no fim do
regime militar em 1985 e com a Constituição de 1988. Progressivamente, a
representação política popular foi sendo descaracterizada e esvaziada. Os partidos
deixaram de representar ideias e doutrinas e decorrentes projetos alternativos
de nação. Passaram a representar grupos de interesses, secundarizaram os
diferentes grupos de identidade e classes sociais que constituem a diversidade
do que é propriamente o povo brasileiro.
O vazio
ganhou visibilidade e intensidade nos movimentos de rua de 2013, cujos atores
levaram ao mpedimento da presidente da República. Até então, o Partido dos
Trabalhadores havia cooptado os movimentos populares surgidos à margem do
sistema partidário e lhes servira de mediação política. Permitiu-lhes atuar
como sujeitos, ainda que adjetivos, da estrutura política do Estado. A partir
de então ficou evidente que a margem vinha para o centro do processo político,
escapava do controle do PT e escapava da própria política.
Não
obstante, uma pobre concepção binária da política cegou as esquerdas, sobretudo
o próprio PT, para a nova realidade social e política do país, complexa,
diversificada, povoada de sujeitos com nova cara, novas funções sociais e econômicas,
novas modalidades de consciência, novas carências. Enquanto isso, políticos de
carreira permaneceram agarrados ao poder e a uma visão de mundo atrasada em
meio século ou mais.
Fora o PT
o único conglomerado partidário, com função de partido pós-moderno, que
compreendeu a nova realidade do país. O que se deveu, em boa parte, a que sua
organização política já não era nem é a de verdadeiro partido. Era e é uma
colagem. Foi eficaz durante o curto tempo do primeiro mandato de Luiz Inácio,
antes do desastre do mensalão, abrindo brecha num sistema político impermeável
aos novos sujeitos e dominado por agrupamentos de interesse e de famílias
radicados em nosso provincianismo. Ou nas corporações econômicas, como a dos proprietários
de terra.
Hoje a
proporção de fazendeiros na composição do Congresso Nacional é superior à da
sua proporção no conjunto da população brasileira. Extensas parcelas do povo
sequer estão representadas no Legislativo e no governo.
Como se
vê também na multiplicação de agentes religiosos na representação política, os
atributos identitários de segundo plano, extrapolíticos, como os confessionais,
emergiram no primeiro plano da ação política para ocupar o vazio e o
esvaziamento do Estado e o derretimento da política.
Não é
estranho, pois, que em face dos impasses do momento atual, de supressão dessa
mediação precária, o governo não tenha conseguido, prontamente, identificar os
interlocutores do protesto e estabelecer com eles uma pauta de negociação que
superasse a crise. Deixou que o bloqueio se arrastasse, se multiplicasse e,
mesmo, se deixasse manipular por interesses e vontades invisíveis, em poucas
horas tornando complicado o entendimento.
A
tentativa tardia de negociar revelou que se sentaram à mesa da negociação
pessoas que pouco ou nada representam, os autônomos do setor de transportes.
Eles não falam em nome das forças ocultas que parecem manipular o movimento e
suas demandas. O que parecia uma greve ganhou forma de locaute de supostos
grupos poderosos, que usurparam a causa dos autônomos. Ficou problemático
negociar com as forças ocultas do protesto.
A maior
revelação do episódio é a do espontaneísmo dos descontentes que viabilizou o
protagonismo explícito dos autônomos, mas também um enigmático protagonismo
oculto. Pode-se ver que na disseminação do espontaneísmo político no Brasil a
política agoniza, sacrificada tanto pelos próprios políticos quanto pelo povo
partidarizado e sectarizado, mas despolitizado.
Nas manifestações destes dias, o apelo explícito à intervenção militar no governo mostra que a militância tosca e ingênua concebe a política como instrumento do retrocesso ao passado, e não como progresso e superação de problemas e de atrasos.
Nas manifestações destes dias, o apelo explícito à intervenção militar no governo mostra que a militância tosca e ingênua concebe a política como instrumento do retrocesso ao passado, e não como progresso e superação de problemas e de atrasos.
O caminhonaço é o indício de que, na falta de
governo, qualquer grupo pode se apossar do país, impor a todos as suas
conveniências e impedir o livre e justo exercício dos direitos de cada qual.
Nossa democracia unidimensional anseia por autoritarismo.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” ( Ateliê
Editorial)Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5562929/o-caminhonaco 01/06/2018
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