Herança literária - Steiner: toda a sua vida é uma nota de rodapé à primeira
leitura que fez de Homero (Gloria Rodriguez/Contour/Getty Images)
Em duas reedições e um ensaio recém-lançado, o grande crítico francês George Steiner convida a revisitar a beleza que só se encontra na melhor literatura
George Steiner não havia completado ainda 6
anos quando o pai, em certa noite de inverno, o levou ao seu escritório
e, com a alegria costumeira com que lhe contava a Ilíada, leu o episódio
em que a fúria do grego Aquiles se volta contra o pobre Licaon, um dos
filhos de Príamo, rei de Troia. Eletrizado com a narrativa, com o
desespero do jovem troiano implorando por sua vida diante do vingativo
Aquiles, o menino aguardava o desfecho da cena. Licaon será poupado ou
morto pelo inimigo? Nesse passo, a narração é interrompida: a tradução
de Homero que estavam lendo não trazia o final! Aliás, nenhuma tradução
escapara dessa falha, informou o pai. Enquanto o menino tremia de
excitação com o episódio, o pai apontava para a edição com o texto
grego, que repousava estrategicamente na escrivaninha, ao lado de um
dicionário: “Vamos tentar decifrar essa passagem?”. E assim, conduzindo
os dedos do menino pelas letras do texto grego, traduzindo-as para
renovado encantamento da criança, aquele pai acendia uma paixão
imorredoura. “O resto de minha vida é talvez uma nota de rodapé àquele
momento”, escreveria Steiner em suas memórias.
Não é exagero afirmar que o parisiense George Steiner, hoje com 88
anos, passou a vida inteira reencenando aquele momento duplamente: como
leitor, foi sempre aquele menino fascinado com o poder da palavra, das
ideias e das imagens humanas; como professor, dedicou mais de cinco
décadas a conduzir os nossos dedos pelas letras mágicas dos textos mais
importantes da cultura ocidental. O mais célebre professor de literatura
comparada do século XX, o polímata versado em física e matemática com a
mesma paixão com que domina a filosofia e as letras, o mais incomum
entre os leitores está de volta ao mercado editorial brasileiro com a
reedição de Nenhuma Paixão Desperdiçada e Lições dos Mestres e com o lançamento do ensaio breve Aqueles que Queimam Livros. (Errata, o livro de memórias em que se conta o episódio da leitura de Homero, segue tristemente inédito no Brasil.)
“O Leitor Incomum”, que abre Nenhuma Paixão Desperdiçada, é
uma profissão de fé na leitura. Compartilhando com o leitor, nesse
ensaio, a erudição assombrosa que caracteriza seus trabalhos de grande
fôlego (A Morte da Tragédia, Depois de Babel, Tolstói ou Dostoiévski), Steiner desenvolve uma rica leitura do quadro O Filósofo Lendo
(1734), do pintor francês Jean-Baptiste Simeon Chardin. O tema do homem
e seu livro, com suas evocações das iluminuras medievais, é
interpretado em cada minúcia: o traje formal com que o leitor vai ao
encontro da obra, demonstrando toda a sua cortesia; a ampulheta que
marca a passagem do tempo que nos determina e iguala a todos, e, por
contraste, destaca a natureza em tudo distinta do livro, que
permanecerá, triunfando com o passar dos séculos; o compromisso do
leitor, que, de pena em punho, responde ao que lê — nada escapa à
interpretação de Steiner, ela própria um ato de criação.
Percebe-se, na obra de Steiner, a alegria de quem conhece para ensinar. Sua erudição não é mobilizada para humilhar o leitor, mas para servi-lo
Essa leitura benfeita, com toda a sua paixão, entrega e
responsabilidade, Steiner reconhece, é um ideal — e foi um ideal
partilhado pelas culturas que moldaram o que chamamos de Ocidente, mas
não mais pela sociedade de consumo. Tal é o argumento que o autor
desenvolve, em sutil mas vigorosa polêmica, no ensaio “Os Arquivos do
Éden”, no qual a sociedade americana (vale dizer, a sociedade de
consumo, industrial e de massas) é apresentada como eficaz guardiã da
alta cultura que o Ocidente (leia-se “Europa”) produziu — mas não mais
do que isso. A grande democracia de massas não seria capaz, aos olhos de
Steiner, de produzir as mais altas aventuras do espírito humano em
matéria de arte e pensamento. A tese é mais do que controversa — que
fazer da poesia de Emily Dickinson ou do pensamento de Thoreau? —, e o
próprio Steiner o admite quando afirma no prefácio do livro que este é o
seu texto que mais suscitou rejeição e “reações violentas”.
O ideal de leitura devotada encarnado no quadro de Chardin, porém,
não poderia morrer sem defesa — e seja escrevendo sobre a Torá ou sobre
Shakespeare, o ensaísta de Nenhuma Paixão Desperdiçada
apresenta-se como seu defensor. Intelectual judeu nascido na França,
educado nos Estados Unidos e na Inglaterra, professor por décadas na
Universidade de Genebra, ex-crítico titular da revista The New Yorker,
George Steiner pratica, em todos e em cada um de seus textos, a leitura
integral, que respeita o texto acima de tudo e é informada pelo
conhecimento profundo da vida dos autores, de seus contextos
histórico-políticos, das dimensões filosóficas, religiosas e
existenciais presentes em cada obra — tudo, enfim, que precisa ser
mobilizado como instrumento de trabalho do crítico. As mesmas obsessões e
angústias com a arte da leitura figuram em Aqueles que Queimam Livros,
ensaio no qual Steiner examina o encontro entre texto e percepção,
livro e leitor. Não, não são tolos os que queimam livros, diz o crítico,
pois eles reconhecem o imenso poder dos objetos que destroem.
Em Lições dos Mestres, produto de seu trabalho na cátedra
Charles Eliot Norton da Universidade Harvard, entre 2001 e 2002, o
professor que tanto se dedicou à transmissão do que a humanidade já
produziu de mais belo faz um tour de force ainda não igualado em matéria
de reflexão sobre a relação mestre-discípulo na cultura ocidental. Das
disposições intelectuais e espirituais de Sócrates e Jesus Cristo com
seus discípulos e apóstolos às censuras que a infantil e estridente
correção política impõe à universidade americana, Steiner conduz o
leitor pelo erotismo, contido ou explosivo, e pelas devoções, fanáticas
ou justas, que marcaram nossa cultura. E ele mesmo é um mestre:
percebe-se, em cada texto seu, a alegria generosa de quem conhece para
ensinar. É para nos entregar a mensagem de um Paul Célan, de um Dante,
de um Homero que esse eterno menino afoito com a alegria do conhecimento
nos diz: “Conheçam isto! Amem isto como eu amo!”. Sua erudição não é
mobilizada para humilhar o leitor, mas para melhor servi-lo.
Que foi feito de Licaon no episódio da Ilíada que transformou George
Steiner em leitor? Para saber isso, o leitor fica convidado a seguir a
lição de Steiner — e a abrir a Ilíada para dar vida, uma vez mais, à
fúria de Aquiles, à humanidade dos troianos, à grandeza de Homero. O pai
do futuro crítico usou um ardil para levar o filho ao grego original:
as traduções trazem, sim, a conclusão da história.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/o-mais-incomum-dos-leitores/
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