Nos
tempos atuais, a democracia é um assunto cada vez mais discutido. No Brasil e
no mundo, não faltam vozes para alertar sobre os perigos que a ameaçam. Para o
renomado filósofo francês Jacques Rancière, aquilo comumente entendido como
democracia hoje é, no fundo, uma ilusão, já que "os cidadãos não têm poder
efetivo sobre as decisões que lhes dizem respeito”.
Seu livro "O Desentendimento" (Editora 34, trad. Ângela Leite Lopes, 160 págs., R$ 45) faz duras críticas às democracias contemporâneas, onde os governos consideram que o "povo" se resume a estatísticas e pesquisas de opinião. Intelectual de esquerda, o filósofo de 78 anos se formou na prestigiosa École Normale Supérieur, especializada em ciências e letras. Professor emérito de política e estética da Universidade Paris VIII, ele já publicou mais de 40 obras.
Sua
concepção de democracia é inspirada nos tempos da Grécia Antiga e suas
assembleias deliberativas, onde os cidadãos se reuniam para debater assuntos de
interesse geral. Época em que as palavras do povo eram levadas em conta. Para alguns,
uma visão nostálgica ou até mesmo utópica.
Rancière
critica os sistemas representativos, tanto parlamentarista quanto
presidencialista, que, na sua opinião, confiscam a soberania do povo e
beneficiam apenas as elites. Para ele, "não existe real vida
democrática" - há apenas uma "casta de políticos profissionais que se
autorreproduz e cuida de seus próprios interesses". A seguir, os
principais trechos da entrevista.
Valor: Em "O
Desentendimento", o senhor constata a impotência da democracia em chegar a
um consenso. É uma crise conjuntural ou o fracasso de um modelo?
Jacques Rancière: Eu constato sobretudo a confusão estabelecida entre democracia e consenso. Fazemos como se a democracia fosse um regime em que todos estivessem de acordo para discutir juntos e chamamos isso de "consenso". Mas "consenso" quer dizer outra coisa: que é preciso estar de acordo sobre o fato de que não há nada para se discutir porque a realidade impõe as decisões a serem tomadas. É o que nossos governos fazem. Eles impõem como realidade indiscutível a descrição do mundo imposta pela ideologia neoliberal, que submete todas as formas da vida comum às exigências do lucro capitalista. Baseado nisso, a ideia de um poder de decisão exercido pelo povo, ou seja, a ideia mesmo de democracia, desaparece.
Valor: Se o ideal democrático
fracassou, devemos perder qualquer esperança em relação à política? É preciso
inventar um modelo alternativo, outra utopia?
Rancière: O ideal democrático não
fracassou. Quisemos identificar a democracia ao sistema de representação que
significa o contrário disso, ou seja, o governo de elites sociais que se reduz finalmente
ao poder dos ricos. Essa identificação provocou o descrédito do princípio
democrático e favoreceu formas autoritárias que supostamente representam o povo
desprezado por governos oligárquicos. O que chamamos de populismo se situa
nessa lógica onde o poder do líder que diz encarnar diretamente o povo se opõe
ao sistema de representação falsamente batizado de democrático.
Valor: "O Fim da
História" profetizado por Francis Fukuyama indicava o triunfo da
democracia sobre as outras ideologias políticas. Mas vemos o surgimento de um
novo conceito, as "democraturas", como Turquia e Rússia. Qual é a sua
análise disso?
Rancière: Essa profecia se baseava na identificação da democracia à forma de governo oligárquica dos países ricos. Eu me lembro de um intelectual francês ligado aos meios dominantes que disse, em uma conferência no Haiti, em 1994, que a democracia pode ser reconhecida em função de dois critérios: o sistema eleitoral e o livre mercado. Se nos contentarmos com essa definição, concluímos efetivamente que Vladimir Putin e Recep Erdogan [líderes da Rússia e da Turquia, respectivamente] são bons democratas. E a Europa "democrática" é totalmente impotente diante da expansão de poderes autoritários e racistas no continente, como na Hungria e Polônia.
Rancière: Essa profecia se baseava na identificação da democracia à forma de governo oligárquica dos países ricos. Eu me lembro de um intelectual francês ligado aos meios dominantes que disse, em uma conferência no Haiti, em 1994, que a democracia pode ser reconhecida em função de dois critérios: o sistema eleitoral e o livre mercado. Se nos contentarmos com essa definição, concluímos efetivamente que Vladimir Putin e Recep Erdogan [líderes da Rússia e da Turquia, respectivamente] são bons democratas. E a Europa "democrática" é totalmente impotente diante da expansão de poderes autoritários e racistas no continente, como na Hungria e Polônia.
Valor: Até que ponto a ascensão
de regimes autoritários e populistas ameaça a democracia?
Rancière: Perguntar se as
democracias estão ameaçadas é repetir a confusão entre democracia e sistema de
representação oligárquico. É essa confusão que ameaça o ideal democrático. Ela
atribui à democracia as práticas dos nossos governos oligárquicos. E favorece,
ao mesmo tempo, as ideologias e os governos autoritários dos que alegam
encarnar o povo desprezado pelas elites. A democracia não é uma realidade
sujeita a ameaças. É um princípio praticamente negado ou reduzido em toda a
parte, inclusive pelos Estados que se autodenominam democráticos.
"A democracia não é
uma realidade sujeita a ameaças. É princípio praticamente negado ou reduzido em
toda a parte, inclusive pelos Estados Unidos"
Valor: Sua definição de
democracia seria aplicável nas sociedades modernas?
Rancière: Entendo como democracia a
ação de iguais enquanto iguais. Dessa forma, o princípio democrático não pode
jamais se identificar à forma de um Estado. Não é um sistema de instituições,
mas sim um princípio que as vitaliza. É uma força que se exerce por meio de
formas de ações variadas que vêm se opor à tendência oligárquica de qualquer
poder. Nesse sentido, ela continua atual.
Valor: De que forma o sistema
representativo abala a soberania do povo? É o fato de que os governos delegam
poderes a agências e instituições?
Rancière: O que mina o poder do povo
é, antes de tudo, o fato de não existir real vida democrática, ou seja, um
poder efetivo exercido por cidadãos sobre as decisões que lhes dizem respeito,
e não simplesmente a escolha feita entre ofertas apresentadas de candidatos ao
poder. Isso implica delegação de poderes de curta duração e submetida a
controle constante. Mas o que temos hoje é o oposto: uma casta de políticos
profissionais que se autorreproduz e que cuida primeiro de seus próprios interesses.
Valor: A globalização econômica é
uma realidade, mas, segundo o senhor, não existe política mundial. A ideia de
uma governança mundial é cada vez mais irrealista com o enfraquecimento da ONU
e a multiplicação de conflitos?
Rancière: A globalização econômica não é um fato ao qual a política teria de se adaptar. É o resultado de uma certa política, que desde o tempo de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan [ex-primeira-ministra britânica e ex-presidente americano] tirou o movimento de capitais do controle dos povos e buscou construir o conjunto das relações sociais inspirado no modelo do mercado. O governo mundial já existia de fato, evidentemente não com a ONU, mas com as organizações internacionais onde representantes dos poderes do Estado e das potências financeiras estão cada vez mais misturados. É o caso, por exemplo, da Comissão Europeia, cujo antigo presidente [José Manuel Durão Barroso] foi contratado pelo banco Goldman Sachs.
Valor: O que a eleição de Donald
Trump à Presidência dos EUA revela sobre a política?
Rancière: Essa eleição ilustra
perfeitamente o funcionamento que descrevo. Os Estados Unidos são governados
por uma casta de políticos profissionais dificilmente penetrável e em ligação
estreita com as potências financeiras. Esse funcionamento autárquico cria o
fantasma de um "verdadeiro povo" desprezado pela classe política e,
ao mesmo tempo, cria o lugar de quem vai representar o "verdadeiro
povo" contra as elites. Ocupar essa vaga exige evidentemente grandes meios
financeiros e, então, é um bilionário quem vai desempenhar o papel de defensor
do povo desprezado.
Valor: No Brasil, toda a classe
política sofre repúdio em razão dos escândalos de corrupção. Isso vem afetando
a confiança em instituições, como a Justiça. Qual é a sua análise dessa crise?
Rancière: Conheço mal a situação
brasileira para validar ou invalidar as acusações de corrupção contra o PT ou
contra seus acusadores. Constato simplesmente que no Brasil, como em outros
países, há uma forma de corrupção que está ligada à ocupação do poder de
Estado. Quando ela se prolonga, transforma os "representantes" do
povo em membros de uma oligarquia que segue seus próprios objetivos e
interesses. Quanto à Justiça, é claro que a independência de instituições
judiciárias nomeadas pela classe política para julgar a classe política só pode
ser bem relativa.
Valor: Por que as pesquisas de
opinião são, na sua avaliação, um instrumento contestável do exercício do
poder?
Rancière: As pesquisas de opinião
fazem parte da eliminação do princípio democrático. Sob o pretexto de registrar
as escolhas da população, elas as predeterminam. Elas dizem: veja quais são as
descrições das situações pensáveis, as opiniões disponíveis, as decisões e as
pessoas entre as quais devemos optar. As pesquisas criam antecipadamente o
campo do possível. É exatamente isso o que chamo de "polícia": a
configuração de um mundo onde as situações, a maneira de compreendê-las e as
possibilidades que elas autorizam são predeterminadas.
Valor: O senhor escreveu "Ler o Capital" com seu professor Louis Althusser, filósofo marxista estruturalista. As previsões de Karl Marx sobre o aumento das desigualdades se realizaram. Dois séculos após seu nascimento, celebrado atualmente, Marx ainda seria um visionário?
Rancière: Marx previu que o sistema
capitalista pereceria de suas contradições. A experiência nos mostra que
infelizmente esse sistema encontrou o meio de fazer com que outros paguem o
preço de suas contradições. Se Marx for um visionário, não é no sentido de que
ele teria acertado o futuro, mas sim no fato de que ele fixou seu olhar e o
nosso no centro do sistema de exploração. É por isso que seu pensamento continua
central, apesar de ter fracassado em sua tentativa de construir um mundo
emancipado. Sua reflexão nos obriga a recusar a ordem do mundo sem nos dar os
meios de derrubá-la.
Valor: O que explica a derrocada
dos partidos de esquerda e sindicatos na Europa em um momento em que os
protestos sociais continuam fortes, sobretudo na França?
Rancière: Os partidos de esquerda
sofreram o duplo efeito da queda do bloco soviético e do triunfo de políticas
neoliberais. A esquerda parlamentar, eleita com os votos de um povo órfão de
perspectivas revolucionárias, se alinhou com a visão thatcheriana de um mundo
onde "não há alternativa". Em todos os lugares onde governou na
Europa, a esquerda fez a mesma política da direita e contribuiu duplamente ao
enfraquecimento do movimento sindical. Ela aplicou medidas que levaram a
transferências de fábricas e desmantelou serviços públicos que pulverizaram o
movimento operário. Ao mesmo tempo, desmoralizou forças militantes confrontadas
às mentiras de governos "socialistas" que conduziram política
antissociais.
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Reportagem
Por Daniela Fernandes | Para o Valor, de Paris
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5612447/democracia-de-fachada
22/06/2018
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