Luiz Felipe Pondé*
O povo é confiável? Não. Se olharmos pra história,
a resposta é ambivalente
O que é fetichizar o povo? É assumir que cada
passo, cada escarro, cada suspiro, cada berro, cada loja quebrada, cada
refrão cantado em jogral, cada polarização das mídias sociais significa
algo de sublime.
O fetiche começa com a revolução francesa de 1789 (um “massacre
sublime”) e passa pelos movimentos operários do século 19, que Marx
(1818-1883) viu de perto.
Esses movimentos garantiram o estado de bem-estar social europeu, às
custas, é claro, do resto do mundo, que os europeus exploram até hoje e
que não se constitui, “ainda bem”, no mesmo parque temático de direitos
que é a Europa ocidental —alguém já viu a Europa querer exportar seu
modelo de parque temático para o mundo?
O mais ridículo é que os idiotas da política daqui olham para esse
parque temático como algo possível sem homogeneidade étnica (olha só o
pau que está rolando por conta dos imigrantes), sem riqueza sobrando (se
a Europa ficar pobre vira África), sem imobilidade ascendente na
estrutura social (ninguém ganha dinheiro, só os mesmos de sempre), sem
portas fechadas aos desgraçados que queriam entrar.
Fetichizar o povo é uma forma de mentalidade hegeliano-marxista
diluída. Uma espécie de gozo primitivo narcísico. Um tipo de sentimento
oceânico, como diria o velho Freud (1856-1839).
Nesta forma degradada de concepção hegeliano-marxista, existem
“forças democráticas” latentes no povo ou forças “isso” e “aquilo”
prontas a agir a partir de intenções que tendem a uma organização cada
vez mais imanente ao objetivo de justiça cósmico-política.
Nesse delírio, essas forças “querem x”, para isso se “organizam de
forma y”. Quando, na verdade, o povo, ou “as massas”, age de modo
confuso, impulsivo e, quando articulado, o faz a partir de grupos de
comando com agendas próprias, movidas pelos interesses de grupos
específicos que pretendem tomar o poder e pronto. E para isso usam da
linguagem “o povo quer x”, as “forças democráticas amadurecem no
combate” e por aí vai. Os canalhas da política adoram esse tipo de
linguagem.
O povo, sim, é capaz de muito. De ficar puto e quebrar tudo a se
manifestar de forma (des)organizada a partir das redes ou de grupos de
liderança. As pessoas (unidades reais do povo) se movem pelos mais
variados interesses, inclusive pela inércia diante dos conflitos que
rasgam a sociedade.
O tempo desgasta todas as formas de organização. Era o povo na
Bastilha, era o povo gozando com a guilhotina, era o povo nos comícios
nazistas, fascistas e comunistas, era o povo na “noite dos cristais”
esmagando judeus, era o povo esmagando gente na Guerra Civil americana,
era o povo na Guerra Civil russa pós-Revolução Bolchevique, era o povo
gozando nos autos de fé na Inquisição, era o povo nos linchamentos, era o
povo pedindo intervenção militar na greve dos caminhoneiros.
O povo é um substantivo abstrato na violência qualitativa das teorias
políticas e, ao mesmo tempo, um substantivo concreto na violência
quantitativa nas ruas.
O povo é confiável? Não. Se olharmos pra história, a resposta é
ambivalente. É confiável se você quiser gerar violência social. O sinal
positivo ou negativo dessa violência é decidido por quem narrar essa
violência.
Alguns setores mais à esquerda reclamaram que faltou ao Brasil a
coragem política de usar a crise dos caminhoneiros para derrubar o
governo e, quem sabe, instalar um regime de secessão que preparasse
formas mais “democráticas” de participação popular, levando à frente o
embrião de um regime mais civilizado, sustentado numa vontade popular
(ou soberania popular, tratarei aqui como sinônimos).
Esses setores à esquerda são claramente defensores do que se chama
“destruição criadora”. “Vontade popular” é outro fetiche nas teorias
políticas que veem no povo uma entidade que carrega sobre o si o sinal
da graça hegeliano-marxista de evolução política e social.
No meu entendimento primário dessa posição, não a vejo muito distante
de meninos esquisitos brincando de Jedis com uma realidade
potencialmente violenta, quando o mundo vai às vias do fato. O pecado
maior é que são intelectuais públicos irresponsáveis.
Esses Jedis da política projetam sobre a sociedade sua vaidade intelectual.
No primeiro berro, correm para Paris com medo. Dizem que as rupturas
políticas podem “ser levadas para o lado do bem”. O sentido verdadeiro
dessa frase é “matar as pessoas certas”. Quem plantar violência colherá
violência.
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Luiz Felipe Pondé é filósofo e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamentos (+Um)’ e ‘Marketing Existencial’
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