Na fotografia: Eduardo Galeano escritor uruguaio e referência intelectual da América Latina e da esquerda mundial.
O adepto de futebol por Eduardo Galeano
Embora o adepto possa
contemplar o milagre, mais comodamente, na tela da sua televisão,
prefere cumprir a peregrinação até ao lugar onde possa ver em carne e
osso os seus anjos a lutar num duelo contra os demónios da jornada. Por
Eduardo Galeano.
O adepto
Uma vez por semana, o adepto foge de casa e vai ao estádio.
Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores,
chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina
esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião
que não tem ateus exibe as suas divindades. Embora o adepto possa
contemplar o milagre, mais comodamente, na tela da sua televisão,
prefere cumprir a peregrinação até ao lugar onde possa ver em carne e
osso os seus anjos a lutar num duelo contra os demónios da jornada.
Aqui o adepto agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o
boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta
numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita golo
ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o adepto é muita coisa.
Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores,
todos os árbitros foram comprados, todos os rivais são trapaceiros.
É raro o adepto que diz: “A minha equipa joga hoje”. Diz sempre: “Nós
jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem
sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, da mesma
forma que os outros onze jogadores sabem que jogar sem claque é como
dançar sem música.
Quando o jogo termina, o adepto, que não saiu da arquibancada,
celebra a sua vitória, que goleada fizemos, que coça que nós demos, ou
chora a sua derrota, roubaram-nos outra vez, árbitro ladrão. E então o
sol vai embora, e o adepto vai-se. Caem as sombras sobre o estádio que
se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras
de fogo fugaz, enquanto se vão apagando as luzes e as vozes. O estádio
fica sozinho e o adepto também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o
adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico
transformado numa quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.
Texto extraído do livro Futebol ao Sol e à Sombra de Eduardo Galeano.
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Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/o-adepto-de-futebol-por-eduardo-galeano/55832 25/06/2018
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