1 Penso que ficou bem clara na outra crónica com este título
a dramaticidade da perseguição dos cristãos no mundo. Quando se fala em
cristãos não se pense apenas em católicos ou protestantes, pois é
preciso incluir as várias famílias do cristianismo: coptas, assírios,
siríacos, ortodoxos de várias liturgias, sofrendo todas actualmente o
estigma da cruz. Só mais um exemplo terrível, apresentado na obra de
Pilar Rahola: os fiéis da Igreja Ortodoxa Siríaca, que remonta ao século
I e falando uma variante do aramaico, a língua de Jesus, eram uns 500
mil no início do século XX no Curdistão turco, mas hoje não vão além dos
dois mil e tudo indica que a sua erradicação total está para breve.
2 Porque são perseguidos os cristãos? O sociólogo Javier Elzo, em Morir
para Renacer, avança com algumas razões. Em primeiro lugar, porque o
cristianismo é a religião com maior número de fiéis no planeta: 2300
milhões, sendo os muçulmanos 1700. Foi num século, entre 1910 e 2010,
que este crescimento se deu, em detrimento, não apenas percentual, da
Europa. Este aumento fora do Ocidente é visto em alguns países como uma
ameaça: por exemplo, a China e a Arábia Saudita vêem--no como
perturbador dos seus regimes. Os cristãos, minoria religiosa, étnica,
social e cultural, são vistos como adversários da ascensão social da
população autóctone, como acontece na Birmânia ou na Índia. Os cristãos
são considerados como ligados ao Ocidente, sofrendo o antieuropeísmo e
sobretudo o antiamericanismo, nem sempre sem razões para isso (pense-se
na invasão do Iraque...). "A presença dos cristãos que adoptem como lei
moral o amor gratuito e universal, não só para com os seus, e que
prefiram o martírio a abjurar do seu deus, o Deus que professam, o Deus
revelado em Jesus Cristo, pode tornar--se insuportável."
3
E o silêncio do Ocidente? A maior parte das pessoas desconhece o drama,
por falta de informação. A perseguição religiosa está associada
sobretudo às cruzadas, à Inquisição, à colonização. Há, na expressão
justa de J. Elzo, uma "exculturação social da religião" por parte de
certa esquerda europeia. E o filósofo mediólogo Régis Debray foi
certeiro, quando já em 2007, num congresso realizado em Paris sobre o
futuro dos cristãos do Oriente, denunciou a situação: "Os cristãos do
Oriente são o ângulo-morto da nossa visão do mundo: são demasiado
cristãos para os altermundialistas e demasiado orientais para os
ocidentalistas." Mas recentemente o presidente francês, E. Macron,
levantou a voz: "Penso nos cristãos do Oriente. O político partilha com a
Igreja a responsabilidade destes perseguidos, porque não só herdámos
historicamente o dever de protegê-los como sabemos que em todo lado onde
estão são o emblema da tolerância religiosa. (...) O futuro desta parte
do mundo (Médio Oriente) não se fará sem a participação de todas as
minorias, de todas as religiões e em particular dos cristãos do Oriente.
Sacrificá--los, como alguns quereriam, esquecê-los é ficar certo de que
nenhuma estabilidade, nenhum projecto se construirá de modo duradouro
nesta região."
4 Segundo J. Elzo, "o
islão radical é na actualidade o principal causador do ódio aos
cristãos, embora não se deva esquecer que os primeiros que sofrem o ódio
destes islamistas são outros muçulmanos, em nada fundamentalistas".
Isto não significa que, se o radicalismo islamista desaparecesse, os
cristãos encontrariam a segurança, pois há a Coreia do Norte, a China,
os narcotraficantes latino-americanos...
De
qualquer modo, neste contexto, o islão ocupa um lugar central. De
facto, as condições do seu nascimento e da sua história configuram, como
escreveu o grande islamólogo Rachid Benzine, uma realidade que não
permite, frente à "acumulação de comportamentos bárbaros", repetir:
"Tudo isto não é o islão." Como se "o islamismo nada tivesse que ver com
o islão e o jihadismo fosse estranho à jihad", escreveu J. Birnbaum em
Un Silence Religieux. J. Elzo conta que em 2004, no hall da Universidade
de Deusto, Dalil Boubakeur, reitor da Grande Mesquita de Paris, lhe
confessou: "Não se esqueça, professor, de que o islão nasceu no sangue,
como muitas vezes esquecemos, nós, os muçulmanos." Depois do ataque às
Torres Gémeas, o grande filósofo J. Derrida escreveu num livro publicado
com outro grande filósofo, J. Habermas, Le Concept du 11 Septembre: "É
preciso ajudar o que se denomina islão, o que se denomina árabe, a
libertar-se de dogmatismos violentos. É preciso ajudar os que lutam
heroicamente nesse sentido a partir do interior."
O
diálogo exige reciprocidade. E repito sempre: há duas condições
essenciais para a paz entre as religiões: a leitura histórico-crítica
dos textos sagrados e a laicidade do Estado, mais difíceis para o islão.
5 No meio desta situação dramática,
há histórias como esta, tão comovente como carregada de esperança,
contada pelo Papa Francisco a 22 de Abril de 2017, na Basílica de São
Bartolomeu em Roma, numa liturgia da palavra em memória dos novos
mártires dos séculos XX e XXI, com a Comunidade de Santo Egídio:
"Quereria hoje acrescentar mais um ícone a esta igreja. Uma mulher. Não
sei o nome dela. Mas ela olha do céu para nós. Estava eu em Lesbos,
saudando os refugiados, e encontrei um homem de 30 anos, com três
filhos. Olhou para mim e disse-me: "Padre, eu sou muçulmano. A minha
mulher era cristã. Os terroristas chegaram ao nosso país, olharam para
nós e perguntaram-nos qual a nossa religião e viram-na a ela com o
crucifixo e disseram-lhe para o atirar ao chão. Ela não o fez e
degolaram-na diante de mim. Amávamo-nos muito!" Este é o ícone que trago
como presente para aqui. Não sei se este homem ainda está em Lesbos ou
se conseguiu ir para outro lado. Mas este homem não tinha rancor: ele,
muçulmano, tinha esta cruz da dor carregada sem rancor. Refugiava-se no
amor da mulher, salva pelo martírio."
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* Padre católico, professor universitário e ensaísta português.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/sos-cristaos-2-9496147.html?utm_term=Tensao+no+aeroporto%3A+10+funcionarios+agredidos&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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