Juremir Machado da Silva*
Eles nunca foram amados tanto quanto
gostariam. Têm sido diabolizados por seus inimigos e por boa parte do
mundo. Donald já chamou Kim de gordinho fogueteiro. Kim já rotulou
Donald de paquiderme americano. Finalmente, em Cingapura, eles se
encontraram, trocaram sorrisos, amabilidades e apertos de mão. Assinaram
um documento. As imagens dos dois juntos dizem mais do que milhões de
palavras, mas não dizem o essencial: qual é o jogo do ditador
norte-coreano? Que carta ele esconde nas largas mangas daquelas suas
roupas folgadas? Mistério.
Juntos eles poderão empalmar o Nobel da paz e virar série da Netflix.
O negócio até aqui é ótimo para ambos. Kim saiu da clausura do seu país
considerado anacrônico e tornou-se protagonista na cena diplomática
mundial. Donald, depois de quebrar pratos por todo lado, surge como um
homem de negociação e de estratégias ousadas. A jogada de Donald é óbvia
como os seus discursos: fazer a paz, eliminar o arsenal nuclear de Kim e
empurrar as duas Coreias para um abraço apertado. A questão é: o que
Kim ganha com isso? Ele meteu o pé no acelerador e consolidou o seu
projeto nuclear. Com isso, virou um player – essa palavra tem charme
especial – capaz de atrair Donald para o seu tabuleiro. Dotou-se de
armas nucleares para entregá-las no minuto seguinte? O que ele poderá
ganhar abrindo mão do seu trunfo?
Estamos diante do duelo pós-moderno. O vencedor não será aquele que
atirar ou piscar primeiro, mas o que tiver um objetivo realizável por
trás das aparências. Kim está vivendo os seus momentos de glória. Se der
tudo certo, entra para a história. Se der errado, poderá levar o seu
país ao destino da Líbia, do Iraque ou do Irã, que cederam à tentação do
diálogo, com poderios diferentes em contextos diferentes, e bateram de
cara no muro. Estará o sinuoso Kim enrolando o truculento Donald em rede
mundial? Entregará o bolo sabendo que tem a receita para produzir
outros quando for necessário? Ou só produziu um fato para cair de pé? O
homenzinho de preto surpreende o mundo todo dia.
Superou o irmão mais velho na luta pelo poder, mandou executar o tio,
falou grosso com os Estados Unidos e, quando menos se esperava, acenou
para o inimigo chamando-o para o diálogo. O roteiro é simples. A equipe
de produção faz a pergunta que não pode ser esquecida: e agora? O que
ele faz? Mais: como se desenvolve a relação? Qual o próximo passo?
Possibilidades: Donald convida Kim para uma visita à Casa Branca. O
norte-coreano vai e não comete uma só gafe à mesa. O anfitrião quer
servir a desnuclearização da península coreana como sobremesa. Kim não
tem pressa. Mastiga lentamente. Esconde o jogo.
Hipóteses não faltam para explicar os movimentos de Kim: ele está
fazendo o que a China manda; ele quer obter o maior número possível de
favores; ele pretende arrancar dos Estados Unidos um tíquete permanente
para a Disney; ele só está ganhando tempo; ele nada tem a perder. Uma
coisa fica clara: só ele conhece o jogo que joga.
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* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/06/10938/dois-seres-bizarros/
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