(Charlie Forgham-Bailey/eyevine/Glow Images/.)
Professor Jan-Werner Müller diz que a ameaça populista tem sido menosprezada e que suas presas mais fáceis não são os desvalidos
Entre os muitos clichês em torno do populismo
está o de que os apoiadores dessa forma de fazer política são mais
pobres e menos racionais que outros eleitores. Para o alemão Jan-Werner
Müller, professor de ciências políticas da Universidade Princeton, tais
conceitos são não apenas falsos, como servem para anabolizar uma prática
que, por recusar o pluralismo de ideias, representa uma ameaça real à
democracia. Müller analisou a chegada ao poder de políticos como Hugo
Chávez, Recep Erdogan e Donald Trump. Em comum, disse a VEJA, os três
exercitaram a retórica da unificação popular, enquanto, paradoxalmente,
se mostraram determinados a excluir os que não compartilham de sua visão
de mundo.
O
senhor afirmou que nenhum populista chega ao poder sem o apoio de uma
elite conservadora. Isso significa que o peso das camadas populares
nesse processo é menor do que se imagina? O que eu quis dizer é
que, ainda que haja forte adesão popular a esse discurso, a história
recente, especialmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mostra
que parte do establishment tem uma participação importante na aprovação
de um pleito ou na condução de um populista ao poder. No caso do Brexit e
da eleição de Donald Trump, isso é muito patente. Michael Gove,
secretário de Meio Ambiente do Reino Unido, foi um dos articuladores do
Brexit e integra a elite intelectual do Partido Conservador. Não era um
outsider a dizer loucuras — era alguém “de dentro”. Já Trump se elegeu
por um partido do establishment, com apoio de nomes importantes, como
Rudy Giuliani e Newt Gingrich, esse último, professor universitário e
membro atuante de uma elite intelectual. O populismo não pode ser
tratado como um fenômeno isolado e irracional dentro de uma sociedade.
Ele existe porque pessoas muito influentes se beneficiam dele política e
economicamente, sobretudo economicamente.
Isso ajudaria a explicar, por exemplo, por que num país como
a Áustria, com alto nível de renda e desenvolvimento, o populismo
obteve uma vitória tão expressiva na eleição parlamentar? As
explicações para o populismo nunca são muito simples. A história de um
país e seu contexto nacional têm grande peso. No caso da Áustria, o
Partido da Liberdade tornou-se relevante nos anos 1980. Não apareceu do
nada, por causa do fluxo de refugiados. Ele se tornou um partido
populista forte principalmente porque a Áustria vinha sendo governada
pelas mesmas grandes coalizões por um longo período, durante todo o
pós-guerra. A sigla cresceu como contraponto a essas coalizões
centristas. E é sempre muito fácil criticar grandes coalizões políticas e
encontrar eco entre a população.
Então é possível dizer que o populismo é um movimento cíclico que se fortalece após grandes períodos governados por coalizões?
Talvez o melhor termo seja ocasional, não cíclico. O populismo aparece
como uma contingência — quando determinado grupo político, que possui
uma liderança, está insatisfeito com o status quo e prega ser o
único motor com legitimidade para representar o povo em um novo
governo. É característico do líder populista pregar a unificação
popular, quando, na realidade, quem não compartilhar de sua visão de
mundo será excluído, no sentido de não ser representado por seu governo.
Na prática, o líder populista divide, mas o discurso é invariavelmente
de unificação. Trump fez uma campanha com esse tom. Erdogan e Chávez
tinham a mesma retórica. Também é interessante notar que o populista,
apesar de prometer representar o povo, não necessariamente diz que faz
parte do povo. Ajuda, aliás, na narrativa do populismo o argumento de
que o candidato é tão rico que não “precisa” ser corrupto, e de que vai
governar o país como se governa uma empresa. Silvio Berlusconi fez isso
na Itália nos anos 1990: prontificou-se a ser o empresário que “limparia
a sujeira”.
“O discurso do populista é sempre de unificação, mas
quem não concordar com sua visão de mundo será excluído. Trump fez
campanha nesse tom. Erdogan e Chávez
usaram a mesma retórica”
As redes sociais tiveram influência no fortalecimento do populismo?
Sim, porque permitem um link direto entre o populista e os cidadãos,
sem poderes intermediários, sem a imprensa. Ao dispor de ferramentas de
comunicação direta, o populista passa a crer que a mediação é distorção.
E transmite essa mensagem aos seus apoiadores. Em outro aspecto, o
populista tem a possibilidade de, via redes sociais, modular o discurso
para falar diretamente àqueles que lhe interessam, dizer exatamente o
que esses indivíduos querem ouvir. Trump fez isso com maestria ao usar o
Twitter para escantear a imprensa profissional e criar essa impressão
de conexão direta com seus eleitores. Antes, era preciso ir a uma
convenção partidária para ter uma experiência parecida. Hoje, o contato
se dá 24 horas por dia. Essa ressonância ininterrupta é a grande
novidade do nosso tempo.
Como se desmonta um discurso populista? Primeiro, é
preciso abandonar os clichês sobre o populismo, que são muitos e
equivocados. Depois, é necessário deixar de menosprezar os partidos
populistas. Falamos dos “eleitores dos candidatos populistas” como se
eles tivessem todos o mesmo perfil. Cremos saber o que eles sentem, o
que pensam, e também acreditamos que são dominados pela emoção na hora
do voto. Ocorre que tais convicções são velhas. São clichês da
psicologia de massas do século XIX, que prega que estas são
“irracionais” e que, por isso, se deixam levar por demagogos. Trata-se
de uma tese ultrapassada. Um exemplo é a questão da imigração. Em uma
democracia, há pessoas com posição clara e racional: “Não queremos
muitos imigrantes em nosso país”. Partindo apenas dessa afirmação, não
há evidências para concluir que todas as pessoas que pensam dessa forma
são irracionais ou, por exemplo, contra gays ou qualquer outra minoria.
Isso não é verdade. Há muita racionalidade na raiva e na insatisfação
com o status quo. Quando se põem todos no mesmo saco,
favorece-se o discurso populista, que, via de regra, tem um tom de
antipluralismo. Os críticos da imigração podem não ser necessariamente
homofóbicos ou misóginos, mas são empurrados a aderir ao candidato
populista por se se sentirem excluídos de outros círculos. Em última
instância, o populismo é um movimento que rechaça a diversidade de
ideias, que é um componente forte de uma sociedade democrática.
Combatê-lo com mais intolerância não resolverá o problema. Só vai
agravá-lo.
Há alguma diferença entre o populismo de esquerda e o de direita?
Não. O que os diferencia são as razões que fizeram o líder populista
chegar até ali. Em especial na América do Sul, tende-se a classificar o
populismo como um movimento estático, quando, na verdade, ele é muito
dinâmico, e por isso tomou o caminho da esquerda em determinados países.
A Venezuela, por exemplo, não era um paraíso na terra quando Hugo
Chávez surgiu. Havia espaço na sociedade venezuelana para o surgimento
de um líder com discurso socialista. Na Turquia de Erdogan, o fenômeno é
parecido. O país não era um modelo global de liberdade antes de ele
ascender e restringi-la ainda mais.
O que mudou no discurso dos populistas do século XXI em relação àqueles do passado?
A grande diferença é a presença de uma narrativa que antes não existia,
a da abertura — e não só a econômica. Hoje, num país, há aqueles que
advogam pelas minorias étnicas, religiosas e sexuais. E há aqueles que
querem restringir essa abertura. Esse conflito facilita o surgimento de
populistas, já que eles rapidamente captam que a grande questão é quem
pertence e quem não pertence a tal grupo. Se os grandes conflitos fossem
apenas sobre aquecimento global, bioética ou aborto, populistas não
teriam tanto espaço para crescer.
A aversão aos políticos é um combustível para o populismo? É combustível para votos de protesto ao status quo.
Mas nem todo partido de protesto, como os movimentos que surgiram na
Europa nos últimos anos, se torna necessariamente populista. Na Espanha,
o Podemos e o Ciudadanos canalizaram bem a insatisfação dos espanhóis, e
não há evidência de que sejam populistas. Partidos de protesto são
saudáveis para a democracia.
Por que o discurso populista sempre é nacionalista?
Já que todos os populistas dizem ter o monopólio da representatividade
popular, é preciso que consigam preencher esse discurso com argumentos.
Em geral, apontam o dedo para um determinado grupo dizendo que esse
grupo não pode representar o povo porque é corrupto ou inadequado. E a
retórica do nacionalismo é, em muitos casos, conveniente para justificar
a razão de eles serem os únicos legítimos para essa tarefa. Uma
retórica frequente é: “Eu amo o meu país, por isso não sou corrupto.
‘Eles’ não amam”. Esse discurso contrapõe diretamente o nacionalismo à
corrupção. Mas é importante notar que ele é usado conforme a
necessidade. Chávez, quando ascendeu ao poder, não defendia
prioritariamente o nacionalismo. Apoiá-lo implicava necessariamente ser a
favor do socialismo no século XXI.
Alguns cientistas políticos e historiadores relacionam o
aumento da desigualdade ao surgimento do populismo. O senhor concorda
com isso? A desigualdade é um problema mundial. Mas não há
evidência científica de uma relação direta entre renda e populismo. O
que existe, com alguma plausibilidade acadêmica, é o conceito de que a
“ansiedade por status” leva ao populismo. Ansiedade por status é a
expressão que define a angústia que um indivíduo sente em sua busca
incessante por status, seja ele econômico, cultural, social ou
profissional. E isso não tem nada a ver com renda. Curiosamente, o
discurso populista encontra mais eco entre aqueles que sentem que estão
sendo, de certa forma, roubados do que entre a população economicamente
desfavorecida. Quem vive em situação materialmente precária tende a
aderir a promessas assistencialistas, e nem sempre o assistencialismo é
populista. Há muitas evidências para afirmarmos que o populismo atrai
aquele indivíduo que acha que o país está caminhando de uma forma que
prejudica suas aspirações e as expectativas futuras de seus filhos, e
que o grupo no poder “rouba” aquilo que ele hipoteticamente poderia
alcançar. Quem se prontifica a impedir esse “roubo” tem chance de
conquistar essa fatia da sociedade.
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Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/o-risco-do-populismo/ 08/06/2018
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