– 11 de junho de 2018
Luiz
Gonzaga Belluzzo vê, no documento do
Vaticano sobre o sistema
financeiro,
a crítica radical ao capitalismo contemporâneo e uma
proximidade às formulações do filósofo alemã
No IHU
O que está exposto no documento
Oeconomicae et pecuniariae quaestiones – Considerações para um
discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema
econômico-financeiro, publicado pelo Vaticano, “é o
descolamento do funcionamento da economia capitalista, comandada pela
finança, da vida concreta das pessoas”, diz o economista Luiz Gonzaga
Belluzzo. “Há no texto um tratamento muito interessante dessas relações
entre o que podemos chamar de a ‘ética cristã’, particularmente
católica, e o movimento da economia hoje, e as dificuldades que há na
vida das pessoas por causa do funcionamento da economia. É uma
combinação muito rica do ethos moral católico da igualdade e da
fraternidade, que se retomou pelo Iluminismo”, frisa.
De acordo com o economista, o documento chama atenção, de um lado,
para o fato de que “a despeito da ação dos bancos centrais para impedir
que houvesse um colapso, a vida das pessoas, sobretudo das camadas mais
baixas — aproximadamente 90% —, piorou muito, ou seja, se agravou a
situação de penúria, de carência e insatisfação com as necessidades mais
básicas”. E sugere, de outro lado, que sejam feitas taxações à economia
financeira, de modo que se desenvolva uma economia que permita às
pessoas viverem com mais liberdade e segurança, como foi possível com o
modelo do estado de bem-estar social. “Depois de um período turbulento
da Grande Depressão e da Guerra, os conservadores europeus e Roosevelt
nos Estados Unidos pensaram em colocar a economia a serviço da vida, e
isso é o estado de bem-estar: a criação de um sistema de coordenação da
economia com aumento da carga tributária, com uma tributação
progressiva, o controle do movimento de capitais, as políticas de
previdência social, que estão sendo destruídas agora e não estão sendo
reconstruídas, a segurança e o conforto do cidadão, os salários
crescendo de acordo com a produtividade, o investimento público criando
infraestrutura. Foi uma experiência tão bem-sucedida que é chamada de os
‘30 anos gloriosos’. O documento rememora um pouco dessa experiência”,
explica.
Confira a entrevista:
Qual sua avaliação do documento Oeconomicae et
pecuniariae questione – Considerações para um discernimento ético sobre
alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro, publicado
recentemente pelo Vaticano? Por que, na sua avaliação, o Vaticano volta a
se pronunciar sobre esse tema neste momento?
Se lembrarmos do primeiro texto publicado pelo Papa Francisco – Evangelii Gaudium
-, diria que as sementes desse texto mais crítico estão lá. O que está
exposto ali é o descolamento do funcionamento da economia capitalista,
comandada pela finança da vida concreta das pessoas; o documento trata
da crise e da pós-crise recente. Nos últimos anos, a despeito da ação
dos bancos centrais para impedir que houvesse um colapso, a vida das
pessoas, sobretudo das camadas mais baixas — aproximadamente 90% —,
piorou muito, ou seja, se agravou a situação de penúria, de carência e
insatisfação com as necessidades mais básicas.
Acaba de ser publicado um estudo nos Estados Unidos mostrando que
cerca de 43% das famílias americanas não têm o suficiente para pagar os
aluguéis e para comer. Por outro lado, vejamos o que está acontecendo na
Itália: vive-se um momento de crise econômica grave, de penúria e
insatisfação, que se reflete em duas coisas e, sobretudo, está expresso
na contradição de ter o Movimento 5 Estrelas (M5S – MoVimento 5 Stelle),
que se considera um partido mais à esquerda, junto com a Liga Norte
(Lega Nord) (extrema-direita) para enfrentar uma situação econômica
difícil e também de oposição às regras da União Europeia.
Em suma, há no texto um tratamento muito interessante dessas relações
entre o que podemos chamar de a “ética cristã”, particularmente
católica, e o movimento da economia hoje, e as dificuldades que há na
vida das pessoas por causa do funcionamento da economia. É uma
combinação muito rica do ethos moral católico da igualdade e da
fraternidade, que se retomou pelo Iluminismo. As pessoas não sabem que o
Iluminismo tem uma base cristã do cristianismo primitivo, daquele que
nasce da deterioração do mundo antigo, e que está muito ligado ao
Mistério da Encarnação. O Mistério da Encarnação tem uma marca que é a
do Deus que se fez homem e sofreu como os homens. Essa é uma mensagem
muito importante, porque a religião do mundo ideal é transposta para o
mundo da vida. Aliás, essa é a marca das várias manifestações do papa
Francisco, as quais dizem “tudo bem a vida eterna, o paraíso” e até
sobre o inferno ele diz que “é melhor não pensar muito nisso”, mas o que
ele está dizendo é que precisamos realizar esse ideal da felicidade, da
bondade, da esperança, na Terra, nas comunidades, ou seja, precisamos
fazer com que os homens vivam comunitariamente.
O interessante do documento é que ele não sugere algo regressivo, no
sentido de propor uma volta ao comunitarismo primitivo. Diz, ao
contrário, que é até possível que nós tenhamos uma relação entre a
economia e o mundo da vida de forma mais profícua, porque no fundo o
documento reconhece que o capitalismo cria esse potencial, porém não o
entrega; ele se entrega a um automatismo e a um movimento
autorreferencial — aliás, essa palavra está no texto — que, na verdade,
acaba desconhecendo ou ignorando ou passando por cima das necessidades
concretas. Nesse sentido o capitalismo tem a capacidade de criar bens da
vida pela evolução da indústria e da tecnologia, mas tudo isso é
capturado pela apropriação desses benefícios pela finança; é isso que o
documento diz. O texto é muito bonito e vale a pena lê-lo.
O senhor mencionou semelhanças deste documento com a Evangelii Gaudium.
Que aproximações percebe entre o texto e outros discursos do Papa, como
aquele feito em Santa Cruz de La Sierra, sobre a economia que mata?
O papa Francisco sempre fala que, quando o capital se transforma em
um ídolo, ele começa a massacrar as pessoas – acredito que Francisco
falou nisso em uma das reuniões com movimentos populares
e foi nesta que ele disse que o dinheiro deve servir e não dominar. Em
quase todo esse documento, que é da Congregação da Doutrina para a Fé,
se segue e confirma a visão de Francisco a respeito das dificuldades do
mundo moderno. Ele falou isso em Santa Cruz de La Sierra, e repetiu em
outros momentos. Ele tem insistido sob vários ângulos nesta questão como
uma questão central para o mundo moderno. Eu não tenho nenhuma dúvida
de que ele é o estadista – porque afinal de contas ele é o soberano do
Vaticano – mais importante do mundo, e faz isso com uma gentileza e uma
delicadeza que são típicas de uma verdadeira moral cristã, que ele
representa como poucos.
Além do ponto central do documento, que é essa crítica das
finanças sobre a economia real, quais são os três pontos mais relevantes
do documento?
O documento faz uma avaliação competente sobre a dinâmica da
economia. Portanto, existe uma dinâmica autorreferencial que se afasta,
desconhece e acaba abalando as necessidades concretas. O documento diz
que, a despeito de todos os esforços para conter os efeitos da crise, a
vida das pessoas piorou. E menciona várias dimensões dessa piora, entre
elas, a dependência crescente de situações muito negativas.
O interessante do documento é que faz uma análise técnica muito
competente das questões financeiras: mostra como é o processo de
securitização, como funcionam os derivativos. É uma combinação — e é
muito raro ver isso — entre uma visão cristã e ética e uma dimensão
propriamente técnica, ou seja, o documento sabe o que está dizendo, e
não desconhece que esses fenômenos são constitutivos e orgânicos desse
capitalismo. O documento pede e sugere uma transformação muito mais
profunda.
Quando o documento fala em “economia real”, não está falando no
sentido que os economistas falam, que é a economia da produção, mas sim
da “economia real” como a economia que deve reger a vida das pessoas, a
vida real — nesse sentido a tradução para o português não ficou bem
exata. De todo modo, não estão falando da economia real no sentido que
os economistas falam. Temos no capitalismo uma contradição entre o real e
o financeiro, e esse é um movimento interno da dinâmica capitalista
atual, que tem contradição com a finança como forma de apropriação, e
com o incrível avanço tecnológico e a situação das pessoas. Essa é, na
minha avaliação, a questão central.
O documento também critica as operações offshore, porque,
segundo o texto, esse tipo de operação favoreceu uma enorme saída de
capitais de muitos países de baixa renda e agravou o débito público dos
países pobres. Como vê esse tipo de crítica em relação às operações
offshore? Que tipo de mudanças poderiam ser feitas nessas operações para
agregar as críticas apontadas pelo documento?
Isso é algo que decorre da globalização financeira tal como ela está
ocorrendo. Essas operações offshore significam a perda de recursos pelos
sistemas fiscais. Esses recursos que escapam aos sistemas fiscais de
todos os países poderiam ser utilizados para melhorar a vida das
pessoas. Mais uma vez a questão das operações offshore aparece porque
ela está ligada exatamente à globalização financeira: com a permissão
absoluta do movimento de capitais, se facilitou muito essas operações de
evasão fiscal, de fuga das responsabilidades fiscais, que esconde o
dinheiro nos paraísos fiscais. Essa é uma dimensão importante do
documento, porque isso está ligado à globalização financeira, que nada
mais é do que um sistema de controle daqueles que operam esse sistema ou
se beneficiam dele, sob a situação de vida concreta das pessoas. Um
autor que tratou disso foi Marx, ao tratar da aceleração do tempo e da
destruição do espaço. É disso que o documento trata. É isso que está
acontecendo.
Que tipo de política os Estados poderiam adotar para evitar essa situação?
O documento recomenda fazer um tipo de taxação ao movimento de
capitais, coisa que é proposta por Piketty e vários autores que sabem
que se não fizermos um controle estrito, continuaremos assistindo a uma
série de dados causados pelo movimento de capitais, que não são tratados
de maneira adequada, porque as camadas dominantes, que são as que
acabam decidindo as políticas, não chegam ao ponto central.
Veja o caso do Brasil recentemente: tivemos uma pressão sobre o
câmbio e a política de metas acabou se mostrando irrelevante ou
impotente para resolver o problema, e não se chega à questão central,
que é a seguinte: temos um sistema financeiro e monetário — o documento
trata lateralmente disso — que é assimétrico, porque a moeda reserva
acaba determinando o destino de todas as outras e nunca se toca na
questão da reestruturação e na imposição de limites da circulação de
capitais.
Neste documento se vê implicitamente que o Vaticano admite que esse
tipo de controle já aconteceu no imediato pós-guerra. Estava implícito
nas regras de Bretton Woods que deveria haver um controle de capitais.
No fundo, o documento mostra que já vivemos uma situação diferente, em
que a economia estava mais colada na vida das pessoas e que a partir de
um determinado momento isso passou a se deteriorar e se passou a essa
hostilidade do capitalismo financeiro.
O documento também chama atenção para a responsabilização dos
Estados, em particular para as situações de crise pelas quais passam
seus países, os quais devem ser chamados a fazer gestões adequadas do
sistema público e sábias reformas estruturais. É possível identificar
que tipo de políticas esses países costumam desenvolver, as quais têm
como implicações as suas crises e o déficit público?
O documento está tratando da submissão das políticas econômicas e
estratégias nacionais a esse sistema de abstração real, como dizia Marx.
Ou seja, você vai abstraindo o espaço em que as pessoas moram e há um
enfraquecimento das políticas nacionais e do Estado nacional sem que se
tenha uma capacidade de coordenação global que permita que os espaços
nacionais sejam protegidos dessa turbulência. Nesse sentido, o que o
documento sugere é que as políticas nacionais são capazes de responder a
isso sem uma coordenação, sem uma mudança no regime internacional. Essa
mudança depende muito do poder do país hegemônico ou que é mais
poderoso. Então, o documento se refere ao fato de que há um
enfraquecimento dos Estados nacionais, que estão sendo reduzidos à
impotência.
Com esse sistema internacional, os países nacionais podem fazer
políticas diferentes? É um pouco arriscado. O que acontece é que a
globalização é exatamente isto: assimétrica, desigual e combinada.
Então, alguns países têm mais poder do que outros. Vamos tomar o caso da
China como exemplo. Você pode considerar que na verdade não é um
sistema democrático à ocidental, porque tem um controle do Partido
Comunista, que estabelece as estratégias do país, mas a China se ajustou
a isso a partir da sua estratégia nacional. Mas estamos falando de um
caso muito particular dado o tamanho, o peso e a organização política e
social que tem lá, além de uma articulação entre o Estado e o setor
privado; o caso da China é uma exceção.
Se olharmos para o resto dos países emergentes, veremos que estão —
inclusive os países do leste europeu e os países periféricos como a
Itália e a Espanha — sofrendo com isso, mas não conseguem desenvolver
uma saída. Esse fenômeno da Itália que mencionei exprime essa tentativa
de escapar dessas determinações, dessas imposições. As pessoas chamam
isso de populismo, mas não é populismo; é a reação do povo que está
sofrendo com este modo de funcionamento desta economia.
O documento reitera, como já apareceu na Laudato si’,
que “hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em
diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida, especialmente da
vida humana”. Como o senhor compreende essa noção de economia em serviço
da vida?
É uma economia que permita às pessoas viver em liberdade e segurança;
o estado de bem-estar social foi isso. Depois de um período turbulento
da Grande Depressão e da Guerra, os conservadores europeus e Roosevelt
nos Estados Unidos pensaram em colocar a economia a serviço da vida e
isso é o estado de bem-estar: a criação de um sistema de coordenação da
economia com aumento da carga tributária, com uma tributação
progressiva, o controle do movimento de capitais, as políticas de
previdência social, que estão sendo destruídas agora e não estão sendo
reconstruídas, a segurança e o conforto do cidadão, os salários
crescendo de acordo com a produtividade, o investimento público criando
infraestrutura. Foi uma experiência tão bem-sucedida que é chamada de os
“30 anos gloriosos”.
O documento rememora um pouco dessa experiência. Foi essa experiência
que também suscitou a industrialização dos países da periferia,
sobretudo do Brasil, que não cuidou com muito empenho das questões
sociais a despeito da lei trabalhista. Mas se olharmos isso na Alemanha,
com a economia social de mercado, na Itália e na França, veremos
desempenho, emprego das pessoas, o emprego público segurando o emprego
agregado. Portanto, esse é um modelo que funcionou maravilhosamente bem.
Agora, a partir dos anos 1980 isso foi sendo dissolvido e mudado pela
ideia de que há uma crise desse modelo, mas a resolução disso poderia
ter tido outro encaminhamento. No entanto, partiram para estratégias
neoliberais que estão aí.
O documento também fala da necessidade de se construir uma
economia atenta aos princípios éticos. O que seria uma economia desse
tipo?
O que é a ética cristã? É a ética do afeto com o outro — ame ao
próximo como a ti mesmo. O documento também faz uma crítica, que é
várias vezes mencionada, acerca do egoísmo exacerbado. Isso é a ética
cristã. A ética cristã é da inclinação em relação ao outro, o amor ao
próximo.
Como a visão católica sobre a economia é vista entre os economistas, de modo geral?
Essa visão vem desde Leão XIII, e tem vários momentos da história da
Igreja em que isso é reiterado, mas a economia que os economistas
aprendem é impermeável a isso, porque ela parte de pressupostos éticos
ou de noções como “uma economia nacional que maximiza a sua utilidade”,
“um verdadeiro desequilíbrio geral que costumam dizer que resulta no bem
comum”. Essas noções são impermeáveis a isso porque são exatamente o
contrário. Os economistas raciocinam, estão informados e pensam as
questões sociais desse ponto de vista. Então, é antitético, são duas
coisas que não se combinam, são visões completamente distintas.
O documento também sugere que as universidades compreendam a
economia e as finanças à luz de uma visão completa e integral do homem.
Para atender a essa demanda, que tipo de discussões deveriam ser
acrescidas aos estudos de economia nas universidades?
Essa que estamos fazendo agora. Esse texto, que é riquíssimo na minha
opinião, poderia ser levado às universidades para ser discutido, como
muitos fazem ou devem fazer. Agora, eu fiquei impressionado com as
pouquíssimas matérias que saíram na imprensa. Alguém viu a Juliana Rosa
da Globo News falando sobre isso? Não.
Algum tipo de teoria econômica se aproxima das propostas do
documento? Que teóricos econômicos sugerem visões aproximadas a essa
sugerida pelo documento do Vaticano?
Podemos escolher, mas vou citar o que acredito que se aproxime mais,
por incrível que pareça, apesar de as pessoas não concordarem, que é
Marx. Keynes também se aproxima muito, porque tinha uma visão ética da
economia, ele não era um economista convencional. Keynes se aproxima
muito, a despeito de não parecer, mas ele tinha uma ligação muito grande
com George Edward Moore, que foi professor dele, então, tinham uma
visão muito parecida.
Além disso, ele tinha uma visão muito parecida quando discute — o que
texto também discute — a questão das condições econômicas da liberdade e
da igualdade. É engraçado porque o Keynes era um pouco desconfiado da
sabedoria das massas, mas era a favor do bem-estar de todos. Keynes tem
um texto chamado “As perspectivas econômicas dos nossos netos”, em que
fala para sairmos dessa economia aquisitiva, para parar com a
acumulação, e sugere vivermos a vida.
Marx também tinha uma preocupação com o homem, o homem concreto e com
seu projeto de liberdade. Mesmo em relação à crítica à religião de
Ludwig Feuerbach, ele dizia que “era preciso levar as questões para a
vida concreta dos homens”, e dizia que Feuerbach estava circulando em um
mundo ideal. É interessante que Francisco e esse documento procuram
trazer para dentro da vida das pessoas essa ética, tirá-la um pouco das
nuvens e trazê-la para a vida cotidiana.
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Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/um-texto-de-francisco-proximo-de-marx/ 11/06/2018
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