Polêmica em torno do VAR na Copa ilustra nossa crença absoluta na
tecnologia e nossa sede justiceira, enquanto enxugamos diariamente o
gelo das injustiças
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Viramos todos Árbitros de Vídeo. Corajosíssimos. E não somente em
relação à Copa do Mundo. Foi o que nos restou, neste mundo de violências
e desigualdades brutais: julgar casos pontuais de cidadãos flagrados –
diante de câmeras – dando cotoveladas, cometendo uma sequência de faltas
machistas, impedindo uma criança de comer. A partir dessa crença
inabalável na tecnologia, em uma Grande Verdade das Cenas Registradas,
satisfazemos nossa sede de justiça, imaginando um combate adequado à
Fome, ao Patriarcado e a cada lance profundamente injusto (ou que
julgamos profundamente injustos) de um jogo de futebol.
Os alvos dessa sanha virtual representam o novo ápice da maldade
imputável. Mesmo que o movimento de massa seja movido pela mesma lógica
medieval das chibatadas imediatistas. A lógica é a de crucificar apenas o
segurança que impediu a criança de comer (como se os patrões não o
instruíssem a isso, e como se não houvesse previsão de aumento da
mortalidade infantil por fome nos próximos anos), empalar o árbitro do
jogo do Brasil em praça pública – todos subitamente muito entendidos em
regras de futebol – e aguardar uma punição exemplar do Vladimir Putin em
relação aos inglórios machistas brasileiros em Moscou.
FLAGRADO VIRTUALMENTE É FLAGRADO MORTO
O caso do grupo de jovens que tomou uma jovem russa como se fosse um
títere – colocando palavras chulas, em português, em sua boca – torna-se
um dos mais delicados dessa enumeração porque, obviamente, a atitude
dos rapazes é indefensável. O problema está no decorrente espraiamento
de uma justiça virtual à “bandido bom é bandido morto”. O desejo de uma
punição mundial, geral e irrestrita àqueles que, não mais do que de
repente (e em função da própria evasão confessa de suas violências),
tornaram-se os Grandes Símbolos de Tudo o Que Está Errado Neste Mundo.
Movimentos de linchamento, por definição, não se percebem como
linchamento – percebem-se como justiça. E é assim que todos precisamos,
ao mesmo tempo agora, por uma causa pactuada como justa, “evidentemente”
justa (porque registrada em vídeo), correr para as embaixadas,
identificar cada centímetro da vida pessoal daqueles jovens, até que o
último machista seja pendurado no último poste da justiça virtual. Em
uma justiça onde não existirá habeas corpus. Ninguém estará a salvo do
próximo movimento de crucificação – com as proporcionalidades enviadas
às favas.
NO MUNDO DOS VERDUGOS GOURMET
É claro que é mais fácil participar desse movimento do que
criticá-lo. Cada cidadão do mundo que considere essa movimentação
infrutífera ou injusta ou contraproducente ou mesmo conveniente (para
aqueles que promovem violências e tungas em escala) será igualmente
candidato a ser pendurado no poste seguinte da justiça virtual, como se
estivéssemos construindo um telégrafo paralelo dos condenados possíveis.
Enquanto o poder político e econômico continua perpetuando seus raptos
cotidianos – não necessariamente disponíveis para gravações
instantâneas.
Nós, que nos tornamos esses Árbitros Inapeláveis de Vídeo, esses
verdugos gourmet, simplesmente não conseguimos perceber que esse
movimento geral – independente da indignação legítima contra cada
injustiça específica – nos remete muito mais ao nível daqueles que
pretendemos combater do que a um mundo onde não aconteçam aquelas coisas
que supostamente estamos combatendo. As teclas, nesse caso, são
regressivas. São um doping. Digitamos a nova proclamação de justiça como
se precisássemos de punidos cíclicos, punidos possíveis. Em uma espécie
de delirium tremens da justiça pós-moderna.
RENÉ GOSCINNY ESTAVA CERTO
Curiosamente, um dos grandes autores a identificar movimentos
coletivos de coragem súbita foi um roteirista de história em quadrinhos,
o francês René Goscinny. Mais conhecido pelas aventuras de Asterix, o
Gaulês, ele escreveu para o belga Morris algumas dezenas de roteiros
para a série Lucky Luke, onde um cowboy se vê às voltas não somente com
os bandidos do Velho Oeste, mas também com os valentões de plantão,
prontos a enforcar todos aqueles que atravessarem o caminho dos
justiceiros (mesmo que hipócritas, mesmo que covardes).
Não cito o Velho Oeste à toa. A lógica em curso não está tão distante
daquela do tempo dos Irmãos Dalton e da Calamity Jane. De ações
aparentemente inofensivas (ofender um juiz que não deu o pênalti tal) a
outras nem tanto (criminalizar para a eternidade atos que deveriam estar
em outros tribunais), estamos nos movendo a partir de uma lógica
parecida com aquela dos caçadores de recompensas. A disparamos mais
rápido que a própria sombra – expressão consagrada por Goscinny – o
nosso Senso Inabalável de Justiça.
MUITO ALÉM DO VAR
No centro desse tribunal mundial, vídeos.
E que, portanto, as nossas elites espertalhonas tratem de espalhar
mais vídeos incontestáveis e mais bodes expiatórios, convenientes para
perpetuar o mundo brutal que está aí – um tanto mais complexo do que
aquele identificável em nossos segundos justiceiros.
Esse mundo é composto de um punhado de gente que rouba terras,
destrói nosso planeta e tunga diariamente nosso trabalho nas fábricas e
nas contas correntes. Vende os bens naturais, mata presos e presas de
tuberculose, despeja veneno em camponeses, confina indígenas, assassina
nossas crianças e jovens de periferia com “balas perdidas” e “autos de
resistência”.
A luta diante desse arsenal e desse genocídio é muito mais complexa.
Não dá para chamar Putin, apelar para a embaixada (as bravatas têm pouca
eficácia), o vilão tem muito mais poder que o do segurança no shopping.
E é por isso que será mais fácil brincar de VAR. Os donos do poder
têm advogados graúdos (os reais e os midiáticos), suficientemente
espertos para impugnar os vídeos ou simplesmente alterar o foco –
enquanto o Neymar dá mais um salto no ar.
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