A entrevista em Roma
acontece numa confeitaria de bairro próxima à praça Bolonha, no começo
de maio. Esse lugar sem pompa nem história, perfeitamente comum e
anônimo, parece aumentar o mistério que cerca o escritor Domenico
Starnone (Nápoles, 1943). Afinal de contas, ele argumenta que o
supérfluo não existe: “O banal é a superfície à qual nos acostumamos,
mas se a gente arranhar aparecem coisas incríveis. O banal é um modo de
não contar, de estacionar as coisas. O trabalho de um escritor é mostrar
que o óbvio não é tão óbvio”. Os detalhes na literatura importam, e é
difícil esquecer isso ao iniciar uma conversa com Starnone,
recém-chegado de uma viagem de divulgação pelos EUA com Jhumpa Lahiri,
sua tradutora ao inglês.
Ganhador do Prêmio Strega de 2001, Starnone se mostra discreto,
reflexivo e paciente, como o bom professor de escola que foi durante 30
anos. Publicou seu primeiro livro aos 42 anos e é autor de 20 romances,
além de roteiros, peças de teatro e artigos. Em Laços (Editora Todavia, 2018),
seu primeiro romance lançado no Brasil, o detalhe ínfimo são os
cadarços de um sapato de criança, os fios que se enlaçam até recomporem
uma família partida. “No mundo civilizado tende-se a pensar que há
recursos como o psicólogo para arrumar as coisas. O que este livro diz é
que nada se arruma. A dor é a dor, e quando não há maneira de contê-la
reage-se com raiva.”
“Eu não sou Elena Ferrante. Seria muito fácil
ser ela por ter escrito 19 páginas em
que uma mulher se lamenta”
O mistério que cerca Starnone tem nome de mulher e, transcorrida uma
hora de entrevista, ele mesmo o pronuncia enfaticamente: “Eu não sou Elena Ferrante.
Seria muito fácil ser ela por ter escrito 19 páginas em que uma mulher
se lamenta”. Sua afirmação busca resolver as comparações que a crítica
italiana e anglo-saxã fazem entre o primeiro romance de Ferrante, Dias de Abandono, e Laços.
A obra de Ferrante é protagonizada por uma mulher na faixa dos 30 anos,
abandonada por seu marido e mãe de dois filhos, que narra seu calvário;
a de Starnone começa com as nove cartas que ao longo de alguns anos uma
mãe de duas crianças, também na faixa dos 30, dirige ao marido que a
deixou. “É uma história sobre uma falsa reconciliação, com 19 páginas
que falam do desespero de uma mulher. Também teria podido copiar Medeia. Este tema tem uma longa tradição que só o gosto da imprensa por fofocas reduz à sua conexão com Dias de Abandono”, insiste. Em Laços,
Starnone engasta outras duas vozes em uma poliédrica história familiar.
“Há três vozes independentes, três livros que poderiam ser lidos
separadamente. A experiência ocorre na cabeça do leitor que, ao lê-los
todos, compõe a história”. O desespero feminino é um grande filão? “É um
tema universal. Mas, no meu livro, não acredito que a reação da esposa
seja exclusivamente feminina, é a que tem uma pessoa que descobre que as
coisas nas quais acreditou, que são a sua vida, se esfumaram. É a mesma
que teria um camponês de quem tiram a terra.”
O fato é que a sombra de Ferrante persegue Starnone há quase duas
décadas. Seria esse napolitano quem se escondia detrás do pseudônimo? Era sua segunda esposa, Anita Raja, tradutora da editora que publica Ferrante, quem assinava esses livros? Escreviam a quatro mãos? O fenômeno em torno da misteriosa autora da tetralogia Duas Amigas
crescia internacionalmente, e a intriga também. O apelido de Starnone
era Nino, como o personagem da saga de Ferrante (Nino Sarratore), e ele
também é filho de um ferroviário. O Corriere della Sera
chegou a publicar um quadro comparativo para demonstrar que a prosa de
Starnone tinha uma semelhança além do razoável com a da escritora. Uma
investigação jornalística de 2016 buscou encerrar o caso: seguindo as
faturas da editora de Ferrante, afirmava que Anita Raja, a esposa de
Starnone, estava por trás do pseudônimo. Eclodiu um debate sobre o
direito ao anonimato. Nem Starnone nem Raja se pronunciaram.
Embora quisesse ser escritor desde a adolescência, Starnone
estacionou a literatura e se dedicou ao ensino. Décadas depois, começou a
escrever no jornal IlManifesto, fundado por Rossana
Rossanda e Luigi Pintor. Aquelas colunas dos anos setenta sobre o
cotidiano na escola o empurraram de novo à literatura, foram o detalhe
banal que acabou sendo transcendental na sua vida. “Agora não sei se sou
um professor ou um escritor”, confessa. O que a literatura deve
ensinar? “Deve mostrar aquilo que resistimos a ver, ou que escondemos
porque nos dá medo. Com a escola, todos dizem como é péssimo o ensino
que se oferece hoje em comparação com o que eles receberam, não analisam
honestamente sua experiência. Com a literatura corre-se o risco de que
aconteça o mesmo: a que não funciona mostra o mal e o bem em lugares
onde é fácil vê-lo. Mas é preciso contar a verdade da própria
experiência, isso é a única coisa que um escritor tem. E isto não
significa fazer autobiografia, e sim usar a experiência para traçar as
histórias.”
O escritor deve impor uma distância? “Como dizia Flannery O’Connor,
eu quando escrevo, se meu personagem corre, eu corro; se ele ama, eu
amo; e se ele se zanga, eu me zango. A escrita é algo mimético, mas não é
um trabalho de mero registro”, explica. “Um escritor é um mímico que
acumula detalhes. Pouco a pouco, isto se transforma num hábito, e esses
detalhes no momento oportuno servem para retratar o modo de pensar de um
personagem”. O romancista fala de casos “afortunados” de um único e
maravilhoso livro, como os de Manzoni e Lampedusa, mas ele sente que a
literatura, mais que uma longa escada – como a que sobe seu personagem
Aldo em uma cena de Laços –, é um conjunto de cômodos: “Um
livro sempre fica parcialmente completo, porque abre uma porta que leva
você a outra coisa, a outra possibilidade de relato. Por isso, se você
escreve, escreve para toda a vida”.
“Um escritor é um mímico que acumula detalhes. Pouco a pouco isto se transforma em um hábito, e esses detalhes no momento oportuno servirão para retratar um personagem”
Starnone fala da revolução educacional ocorrida a partir de 1968 e
como ela ficou no meio do caminho: “Minha geração queria melhorá-la, mas
não encontramos tempo nem a forma de fazê-lo. O mesmo ocorre com o
casamento do meu romance, a mudança fica bloqueada”. O começo de Laços
tem como pano de fundo o feminismo dos anos setenta: a esposa que não
concebe o divórcio, e a jovem amante que tem um forte senso de
individualidade. “Hoje o feminismo deveria estar ainda mais forte”,
observa Starnone, apontando um movimento no campo literário: “As coisas
estão mudando muito rapidamente. Os homens têm vergonha de dizerem que
leem romances, e temos cada vez mais dificuldade para nos narrar. O
personagem de Aldo, no meu romance, é negativo. Não pode ser amado pelos
leitores; se o amarmos, somos culpados”. Laços foi adaptada
pelo próprio Starnone para o teatro e já soma quase 200 apresentações, e
também está em preparação uma versão cinematográfica. “Dizem que o meu
livro é sobre o abandono, mas é sobre a falsa reconciliação baseada na
mentira. A esposa o aceita de volta para fazer represálias, não porque
precise dele. Ele volta porque se sente fraco, mas não para de trair. Os
dois são totalmente culpados. Quando uma família se rompe é como se se
rompesse a própria ideia de convivência.”
Que dificuldade ele tem para criar uma voz feminina crível? “Nenhuma.
Se você tiver capacidade, escreve vozes de homens, mulheres, crianças,
idosos. Escritores de todos os tempos criaram vozes femininas críveis.
Eurípides já fez isso. Um escritor hábil conta tudo, não só o seu ponto
de vista. O problema é como os leitores ouvem essas vozes.” As suas têm
um tom às vezes desgarrado, tipicamente napolitano? Starnone responde
citando as culturas que há séculos se sobrepõem nessa cidade. “A
napolitana é uma mulher apaixonada e em muitos aspectos mais liberada
que a média, mais explícita em seu discurso, que mostra seus sentimentos
e dramatiza. Em Nápoles há um tipo de teatro particular, a sceneggiata,
e é esse mostrar sem filtro, algo característico do sul”. Sua cidade,
argumenta, é um lugar complexo, que não pode se encaixar em um
estereótipo: “Sobre Nápoles sempre há algo mais a dizer”. Sobre
Starnone, cabe imaginar que também. Como nessas cavernas habitadas, os bassi napolitanos, neste autor se adivinha uma história subterrânea, um enigma tão real como literário.
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Reportagem por Andrea Aguilar
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/cultura/1529323384_034585.html
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