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Arte: Rodolfo Almeida/Nexo
Professor
do Departamento de História da USP, Elias Thomé Saliba analisa, em livro,
dilemas de identidade do comediante no Brasil e os códigos que explicam nossas
piadas, sátiras e chistes
Quando o
viajante alemão Alexander Von Papen passou pelo Brasil, em 1912, contaram-lhe
que no processo de construção da Avenida Central, em 1906, no Rio, então
capital federal, o único prédio que desabou foi o do Clube de Engenharia,
graças a um erro de cálculo.
“O fidalgo alemão sorriu diante da ficção da
anedota – mas disseram-lhe, em seguida, que o caso não era para rir, pois havia
realmente acontecido”, descreve o historiador e professor da USP Elias Thomé
Saliba no livro “Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários”, lançado em
junho de 2018.
A
história ilustra uma das interrogações centrais do livro: a existência, no
Brasil, de um humorismo involuntário e indissociável da realidade, incorporado
ao cotidiano.
Saliba
analisa, em quatro ensaios, o que há nas piadas, sátiras e chistes desta
“autêntica galáxia, composta por incomensuráveis planetas de órbitas
anárquicas” que é o humor, manifestado de maneira verbal, gráfica ou corporal,
para criticar ou acariciar, entre outras tantas variações de estrutura ou
propósito.
O livro
passa por questões pouco exploradas da história cultural do humor, começando
por uma análise de piadas e caricaturas soviéticas da revista Krokodil, fundada
em 1922. Os demais ensaios são dedicados a questões suscitadas pela produção
humorística brasileira, como a sátira de Lima Barreto e o humor pouco divulgado
na obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda e do poeta Murilo Mendes.
Algumas indagações já haviam sido levantadas pelo autor em “Raízes do Riso”,
sobre o humor entre as últimas décadas do Império e os anos 1940 no Brasil.
Em
“Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários”, o professor aponta, ainda,
o que mudou no humor sob a influência da cultura digital. E analisa o antigo
hábito de atribuir a humoristas consagrados textos que nunca sequer passaram
por suas mãos – apesar de ser uma prática com a cara da internet, escritores
passaram por isso antes mesmo de sonharmos com as redes sociais.
Em
entrevista ao Nexo, por email, Elias
Thomé Saliba falou sobre as particularidades do humor brasileiro e os desafios
de comediantes (e de estudiosos da piada) quando a realidade supera a anedota.
No livro,
você fala que, diante da dificuldade em estabelecer um pacto no cenário
político brasileiro, “parece que o único pacto que funciona nestas plagas é o
humorístico”. Como se estabeleceu esse pacto humorístico no Brasil? O que há de
particular nele?
Elias
Thomé Saliba Os
estudiosos da história cultural do humor costumam datar o surgimento de um
“pacto humorístico”, nas sociedades europeias, no momento no qual se constitui
uma esfera pública que coincide com o momento em que o humor começa a ser
produzido intencionalmente (o teatro cômico de Molière [1622-1673] é um dos
exemplos). No caso brasileiro, como é duvidoso que se tenha constituído uma
esfera pública, com todas as suas implicações de distanciamento e
impessoalidade, passa a vigorar um pacto humorístico, ou seja, um acordo tácito
e emocional no universo dos comportamentos e das relações pessoais.
Do ponto de vista da
linguagem humorística, o que é característico no Brasil?
Elias
Thomé Saliba São
linguagens muito variadas, que nasceram do cruzamento inusitado dos confrontos
e das misturas entre as culturas cultas e as culturas populares. O humor
radiofônico, que estudei no meu livro “Raízes do Riso”, é um dos exemplos.
Contudo, todas as formas de humor (paródia, sátira, burla etc) adquirem por
aqui tonalidades próprias. A paródia brasileira, por exemplo, foi certa vez
definida por Paulo Emilio Salles Gomes como “resultado de nossa incapacidade
criativa de copiar”.
Qual o
papel da figura do humorista quando o cômico é parte indistinguível da vida
cotidiana?
Elias
Thomé Saliba
Geralmente é baixo e pouco valorizado, justamente porque a sociedade brasileira
percebe que não se precisa de muita competência para retratar uma realidade que
já é engraçada – até mesmo antes de ser trágica. O que é preciso para ser
humorista no Brasil? A melhor resposta foi a do crítico Mário da Silva Brito:
“Simples. Levar tudo a sério”.
Você
analisa a produção humorística de Lima Barreto, Sérgio Buarque de Holanda e a
do poeta Murilo Mendes. A que se deve o ocultamento da faceta humorística
desses e de outros autores?
Elias
Thomé Saliba Além do
natural desprezo ao cômico, relegado ao prosaico e ao frívolo, entra aí também
o humor como parte indistinguível da vida social e política. No caso de Lima
Barreto, minha análise é bastante restrita: como se exerce o distanciamento
satírico do escritor, nas crônicas que ele publicou no final de sua vida. Já o
obscuro “Sérgio Buarque dos Países Baixos” serve de exemplo para mostrar o
quanto o modernismo brasileiro deixou o melhor da produção humorística nas mãos
da (então) nascente indústria cultural.
A cultura
digital mudou as configurações do nosso pacto humorístico?
Elias
Thomé Saliba É
difícil avaliar. Hoje o humor – aliás, como quaisquer outros tipos de
informações virtuais – alcança uma divulgação instantânea, abrangente e viral
em centenas de sites, blogs, tuítes, redes sociais – numa frenética voragem,
transformando-nos, a todos, também em comediantes ou produtores de humor.
Por outro lado, a banalização do humor para as mais variadas esferas da
vida cotidiana – dos anúncios publicitários ao telejornais, estes últimos
dominados pelo “infotainment” – também vem embaralhando nossa compreensão do
amplo universo da comicidade, do seu alcance e dos seus limites.
Até que ponto nossas sociedades, impactadas com esse fenômeno da
hipermediatização, mostram-se ainda capazes de perceber as modalidades mais
sofisticadas de humor, tais como a ironia, a alusão indireta, a autoderrisão
[rir de si mesmo] ou o estranhamento – que exigem um contexto de duração e
lentidão intrínsecas –, quase sempre incompatíveis com a velocidade e a voragem
do cômico produzido ou difundido pela internet?
A falsa
atribuição de piadas a humoristas consagrados é uma prática antiga que se
intensificou com a internet. A própria recorrência já virou piada nas redes
sociais. O que isso diz sobre o nosso humor?
Elias
Thomé Saliba A
internet faz o milagre da multiplicação não dos pães, mas dos autores
apócrifos...
No caso do universo cômico, os internautas se apropriam indevidamente do
nome do humorista para postar aquilo que os faz rir. Na história do humor
brasileiro, essa apropriação ocorreu (claro que, numa era pré-internet, numa
proporção e escala muito menores) com humoristas como Cornélio Pires, Aparício
Torelly, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes.
Luis Fernando Veríssimo não é apenas um dos cronistas mais populares do
Brasil. É também o campeão dos textos apócrifos na internet e uma das maiores
vítimas das atribuições indevidas neste milagroso universo da multiplicação dos
pães que é a web.
São uma
febre na internet páginas em que os brasileiros riem de si mesmos, como “O
melhor do Brasil é o brasileiro” e “O Brasil que deu certo”, que acumulam
milhões de seguidores no Facebook. Qual o lugar da piada autoderrisória na
história do humor brasileiro?
Elias
Thomé Saliba As
piadas autoderrisórias revelam um uso superior do humor, pois produzem a
catexia, que é o contrário da catarse, confrontam o poder, desatam ansiedades
ou aliviam a carga de uma identidade pesada ou a falta dela.
O humor soviético da Krokodil, que estudo no livro, estaria mais próximo
do primeiro caso. O humor judaico mais ligado ao segundo tipo, o da identidade
carga pesada. E o humor brasileiro resvala numa espécie de crise de identidade.
Mas que ainda produz o riso e, quiçá, nossa salvação ou, pelo menos, alívio.
Nelson Rodrigues escreveu que “aquele que faz rir
neste país é um benfeitor. E, se não temos um vampiro, é a piada que torna
inviável qualquer Drácula brasileiro”. É bom lembrar que Nelson Rodrigues
morreu em 1980...-------------------
Reportagem por Laura Capelhuchnik 26 Jun 2018
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/06/26/Uma-hist%C3%B3ria-cultural-do-humor-brasileiro-segundo-este-pesquisador?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo
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