quinta-feira, 28 de junho de 2018

Elias Thomé Saliba - Uma história cultural do humor brasileiro, segundo este pesquisador

 Foto: Arte: Rodolfo Almeida/Nexo

Professor do Departamento de História da USP, Elias Thomé Saliba analisa, em livro, dilemas de identidade do comediante no Brasil e os códigos que explicam nossas piadas, sátiras e chistes

Quando o viajante alemão Alexander Von Papen passou pelo Brasil, em 1912, contaram-lhe que no processo de construção da Avenida Central, em 1906, no Rio, então capital federal, o único prédio que desabou foi o do Clube de Engenharia, graças a um erro de cálculo.

 “O fidalgo alemão sorriu diante da ficção da anedota – mas disseram-lhe, em seguida, que o caso não era para rir, pois havia realmente acontecido”, descreve o historiador e professor da USP Elias Thomé Saliba no livro “Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários”, lançado em junho de 2018.

A história ilustra uma das interrogações centrais do livro: a existência, no Brasil, de um humorismo involuntário e indissociável da realidade, incorporado ao cotidiano.

Saliba analisa, em quatro ensaios, o que há nas piadas, sátiras e chistes desta “autêntica galáxia, composta por incomensuráveis planetas de órbitas anárquicas” que é o humor, manifestado de maneira verbal, gráfica ou corporal, para criticar ou acariciar, entre outras tantas variações de estrutura ou propósito.

O livro passa por questões pouco exploradas da história cultural do humor, começando por uma análise de piadas e caricaturas soviéticas da revista Krokodil, fundada em 1922. Os demais ensaios são dedicados a questões suscitadas pela produção humorística brasileira, como a sátira de Lima Barreto e o humor pouco divulgado na obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda e do poeta Murilo Mendes. Algumas indagações já haviam sido levantadas pelo autor em “Raízes do Riso”, sobre o humor entre as últimas décadas do Império e os anos 1940 no Brasil.

Em “Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários”, o professor aponta, ainda, o que mudou no humor sob a influência da cultura digital. E analisa o antigo hábito de atribuir a humoristas consagrados textos que nunca sequer passaram por suas mãos – apesar de ser uma prática com a cara da internet, escritores passaram por isso antes mesmo de sonharmos com as redes sociais.

Em entrevista ao Nexo, por email, Elias Thomé Saliba falou sobre as particularidades do humor brasileiro e os desafios de comediantes (e de estudiosos da piada) quando a realidade supera a anedota.

No livro, você fala que, diante da dificuldade em estabelecer um pacto no cenário político brasileiro, “parece que o único pacto que funciona nestas plagas é o humorístico”. Como se estabeleceu esse pacto humorístico no Brasil? O que há de particular nele?
Elias Thomé Saliba Os estudiosos da história cultural do humor costumam datar o surgimento de um “pacto humorístico”, nas sociedades europeias, no momento no qual se constitui uma esfera pública que coincide com o momento em que o humor começa a ser produzido intencionalmente (o teatro cômico de Molière [1622-1673] é um dos exemplos). No caso brasileiro, como é duvidoso que se tenha constituído uma esfera pública, com todas as suas implicações de distanciamento e impessoalidade, passa a vigorar um pacto humorístico, ou seja, um acordo tácito e emocional no universo dos comportamentos e das relações pessoais.

Do ponto de vista da linguagem humorística, o que é característico no Brasil?

Elias Thomé Saliba São linguagens muito variadas, que nasceram do cruzamento inusitado dos confrontos e das misturas entre as culturas cultas e as culturas populares. O humor radiofônico, que estudei no meu livro “Raízes do Riso”, é um dos exemplos. Contudo, todas as formas de humor (paródia, sátira, burla etc) adquirem por aqui tonalidades próprias. A paródia brasileira, por exemplo, foi certa vez definida por Paulo Emilio Salles Gomes como “resultado de nossa incapacidade criativa de copiar”.

Qual o papel da figura do humorista quando o cômico é parte indistinguível da vida cotidiana?

Elias Thomé Saliba Geralmente é baixo e pouco valorizado, justamente porque a sociedade brasileira percebe que não se precisa de muita competência para retratar uma realidade que já é engraçada – até mesmo antes de ser trágica. O que é preciso para ser humorista no Brasil? A melhor resposta foi a do crítico Mário da Silva Brito: “Simples. Levar tudo a sério”.

Você analisa a produção humorística de Lima Barreto, Sérgio Buarque de Holanda e a do poeta Murilo Mendes. A que se deve o ocultamento da faceta humorística desses e de outros autores?

Elias Thomé Saliba Além do natural desprezo ao cômico, relegado ao prosaico e ao frívolo, entra aí também o humor como parte indistinguível da vida social e política. No caso de Lima Barreto, minha análise é bastante restrita: como se exerce o distanciamento satírico do escritor, nas crônicas que ele publicou no final de sua vida. Já o obscuro “Sérgio Buarque dos Países Baixos” serve de exemplo para mostrar o quanto o modernismo brasileiro deixou o melhor da produção humorística nas mãos da (então) nascente indústria cultural.



A cultura digital mudou as configurações do nosso pacto humorístico?

Elias Thomé Saliba É difícil avaliar. Hoje o humor – aliás, como quaisquer outros tipos de informações virtuais – alcança uma divulgação instantânea, abrangente e viral em centenas de sites, blogs, tuítes, redes sociais – numa frenética voragem, transformando-nos, a todos, também em comediantes ou produtores de humor.

Por outro lado, a banalização do humor para as mais variadas esferas da vida cotidiana – dos anúncios publicitários ao telejornais, estes últimos dominados pelo “infotainment” – também vem embaralhando nossa compreensão do amplo universo da comicidade, do seu alcance e dos seus limites.

Até que ponto nossas sociedades, impactadas com esse fenômeno da hipermediatização, mostram-se ainda capazes de perceber as modalidades mais sofisticadas de humor, tais como a ironia, a alusão indireta, a autoderrisão [rir de si mesmo] ou o estranhamento – que exigem um contexto de duração e lentidão intrínsecas –, quase sempre incompatíveis com a velocidade e a voragem do cômico produzido ou difundido pela internet?

A falsa atribuição de piadas a humoristas consagrados é uma prática antiga que se intensificou com a internet. A própria recorrência já virou piada nas redes sociais. O que isso diz sobre o nosso humor?

Elias Thomé Saliba A internet faz o milagre da multiplicação não dos pães, mas dos autores apócrifos...
No caso do universo cômico, os internautas se apropriam indevidamente do nome do humorista para postar aquilo que os faz rir. Na história do humor brasileiro, essa apropriação ocorreu (claro que, numa era pré-internet, numa proporção e escala muito menores) com humoristas como Cornélio Pires, Aparício Torelly, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes.

Luis Fernando Veríssimo não é apenas um dos cronistas mais populares do Brasil. É também o campeão dos textos apócrifos na internet e uma das maiores vítimas das atribuições indevidas neste milagroso universo da multiplicação dos pães que é a web.

São uma febre na internet páginas em que os brasileiros riem de si mesmos, como “O melhor do Brasil é o brasileiro” e “O Brasil que deu certo”, que acumulam milhões de seguidores no Facebook. Qual o lugar da piada autoderrisória na história do humor brasileiro?

Elias Thomé Saliba As piadas autoderrisórias revelam um uso superior do humor, pois produzem a catexia, que é o contrário da catarse, confrontam o poder, desatam ansiedades ou aliviam a carga de uma identidade pesada ou a falta dela.
O humor soviético da Krokodil, que estudo no livro, estaria mais próximo do primeiro caso. O humor judaico mais ligado ao segundo tipo, o da identidade carga pesada. E o humor brasileiro resvala numa espécie de crise de identidade. Mas que ainda produz o riso e, quiçá, nossa salvação ou, pelo menos, alívio.
Nelson Rodrigues escreveu que “aquele que faz rir neste país é um benfeitor. E, se não temos um vampiro, é a piada que torna inviável qualquer Drácula brasileiro”. É bom lembrar que Nelson Rodrigues morreu em 1980...
-------------------

Reportagem por Laura Capelhuchnik 26 Jun 2018 
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/06/26/Uma-hist%C3%B3ria-cultural-do-humor-brasileiro-segundo-este-pesquisador?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo

Nenhum comentário:

Postar um comentário