Fui convidado
para fazer parte de um programa chamado Amor & Sexo, conduzido por
Fernanda Lima. Em meio a demonstrações elaboradas de música e dança,
houve um bom debate sobre masculinidade. Foi trazido à tona o conceito
de “masculinidade tóxica”.
A toxidade do masculino é autoevidente. Estupros,
pedofilia, acidentes de trânsito com mortes, homicídios, feminicídios,
latrocínios, misoginia, assédio, brigas de bar e muitas coisas mais são
exclusivas ou dominantes do planeta Marte, o deus cujo escudo se tornou o
símbolo dos homens. Sim, há mulheres que assediam e que matam. No
planeta Vênus (cujo espelho é o símbolo do feminino), a toxidade existe,
porém de forma muito mais esporádica. Os símbolos são eloquentes: Marte
é o deus da guerra e Vênus preside o amor. Dado importante: toda doença
venérea é derivada de Vênus, ou seja, traz a ideia errada de que a
mulher seria sempre fonte da contaminação.
Como acontece em períodos pós-ditaduras, os que fizeram a
derrubada do sistema antigo associam todo o mal ao autoritarismo
anterior. A ditadura do masculino não terminou, porém apresenta brechas
feitas pela consciência feminina que cresce década a década.
O machismo parece ser similar à inveja: erro que todos sofrem,
mas ninguém inflige. Um dos convidados perguntou à plateia se alguém era
machista e nem um único braço se levantou. O ambiente era de crítica à
noção de macho predador, porém houve maior constrangimento do que
verdade na imobilidade dos braços.
Todos somos machistas em variados graus. Não poderia ser
diferente. Fomos criados assim desde o começo. Nosso vocabulário, nossas
ideias culturais, nossas regras morais e até nossos textos religiosos
reforçam as práticas misóginas. Ninguém nasceu no Sol, todos viemos de
Marte ou de Vênus. Não somos neutros. Militantes feministas são (ou
seriam) aquelas e aqueles que mais conseguiram se afastar do molde
cultural misógino. Homens conscientes e críticos da masculinidade tóxica
também lutam bem contra sua identidade marcada pela misoginia. No
entanto, uns e outras precisamos de atenção constante. O uso do cachimbo
entortou a boca. Nós lemos Madame Bovary e Ana Karenina e não Senhor
Bovary ou Ivan Karenino. Nós perguntamos sobre a fidelidade de Capitu,
nunca sobre a chatice paranoica de Bentinho. Em algum momento da
juventude, nossa boca julgou o mesmo comportamento sexual com dois
animais distintos: piranha e garanhão. O depreciativo implícito do peixe
e o elogio ao mamífero estão além da zoologia, inserem-se no campo do
discurso tóxico que homens e mulheres aprenderam cedo. Levamos milênios
para construir uma identidade masculina dominante nas sociedades;
provavelmente, não resolveremos a questão em seis meses.
A existência de mulheres apoiando candidatos misóginos à
Presidência mostra que a jornada é longa e a luta intestina. Não basta
o/a candidato/a ter evitado frases machistas pelos seus treinadores
midiáticos. É necessário identificar na sua biografia e ação um genuíno
pensamento feminista. Ética, luta contra o racismo e combate à misoginia
e homofobia não são adereços desejáveis na mulher ou no homem que
pretende a Presidência (e o Congresso!) em 2019, porém condições
indispensáveis e totais para que ela ou ele possam (sequer) concorrer.
Quase todos fomos criados em ambientes misóginos. Quase todos
fomos educados com a crença de que certas afirmações de machismo eram
virtuosas. A cultura masculina é tão forte que mulheres incorporam o
preconceito. Não estamos tratando de um suposto mimimi, estamos lidando
com assassinatos e estupros. A mulher negra de classe social mais baixa é
a vítima por excelência, mas o risco recai sobre todas. Como dissemos
várias vezes no programa citado, também precisamos libertar nós, homens,
do peso do machismo, que institui um papel pesado e muitas vezes
limitador. A toxidade atinge os homens, inclusive, ainda que as vítimas
reais dela sejam mulheres e população LGBTI.
Algumas coisas do passado ficaram mais evidentes e claras com o
passar dos anos. Quem hoje, de sã consciência, acharia justificável a
escravização de um ser humano por outro? Quem aceitaria ver na rua uma
pessoa atada em ferros ou um capitão do mato perseguindo um indivíduo
pelo Ibirapuera? Até o mais empedernido conservador lutaria contra.
Curiosamente, a misoginia e a violência contra as mulheres pertencem ao
mesmo momento da escravidão. Conseguimos dar um passo abolindo o
trabalho compulsório e ficamos lá, nos séculos anteriores, quando o tema
é o feminino. Mais uma vez, não estamos debatendo biquínis ou cabelos
soltos, falamos de assassinatos e de espancamento.
É preciso reformular nossa linguagem, nosso pensamento e nossa
ação. Todos já utilizamos expressões como “é preciso ser macho para”,
associando coragem e resistência ao masculino. Por que nunca “é preciso
ser muito fêmea” para enfrentar tal problema?
Enquanto houver um homem orgulhoso de “ajudar” a esposa ao trocar
a fralda ainda estaremos no campo do estereótipo e das obrigações
sociais assumidas como naturais ou biológicas. Sem que nos atentemos,
essas concepções machistas, naturalizadas em nossas vidas, param na lei.
Enquanto a licença-paternidade não equivaler à feminina, um pai sempre
terá menos tempo na primeira infância do filho. Isso para o pai que não
se furta à responsabilidade do título. Discute-se previdência, prevendo
menos anos de trabalho para as mulheres do que para os homens, por conta
de sua “dupla jornada”: no lugar do ofício e em casa. Por que não
discutimos a dupla jornada masculina?
Enfim, a preservação da vida e a própria felicidade podem ganhar
com o fim da masculinidade tóxica e a emersão de um homem diferente,
capaz de se entregar a um prazer um pouco além da bravata com
testosterona. É preciso manter a esperança.
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* Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em História da América. Escritor de auto ajuda.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/colunas/leandro-karnal 08/08/2018
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