Não esperem nada da linha verde, a salvação virá da azul e da vermelha
Outro dia eu conversava com um amigo meu, médico
homeopata, e ele, num arroubo sociológico, afirmou: “Não esperemos nada
do pessoal da linha verde, a salvação virá das linhas azul e vermelha!”
Para quem não conhece o metrô de São Paulo, as linhas estão divididas
por cores, como é comum se fazer pelo mundo afora. Quando meu amigo fez
esse comentário, me chamou a atenção o caráter absolutamente científico
da sua empreitada: havia algo de um espírito sociológico selvagem na
sua fala.
Eu sei que a linha amarela ficou de fora dessa sociologia. Vou ser
fiel à minha fonte e nada direi acerca da linha amarela, mas suspeito
que pelo menos parte dela cairia na classificação da linha verde.
Devo esclarecer o contexto da conversa em que surgiu essa observação
fundamental acerca de nosso futuro. Falávamos de um certo sentimento de
falta de esperança, não só para com o Brasil, mas para com nosso mundo
ocidental –tema já banal. O resumo era o termo “snowflake”. Você
conhece?
O termo é muito comum na Inglaterra. A tradução é floquinho de neve. A
expressão é usada para designar pessoas que se ofendem facilmente. Como
caráter epidêmico, é usado para descrever gente que, a partir de 2010,
virou adulto jovem. Qual a relação entre a linha verde do metrô e a
personalidade “snowflake”?
A linha verde corre, em grande parte, pela zona oeste e avenida
Paulista –que, por sua vez, corre da zona oeste em direção à zona sul (e
vice-versa, claro, não quero ofender ninguém!). Atende, portanto, em
grande parte, a uma população floquinho de neve.
Sei que há nessa afirmação muito de uma generalização selvagem. Mas o
que seria da sociologia sem uma razoável dose de generalizações
selvagens? Nem o velho Marx ficaria de pé.
A linha verde do metrô (pelas regiões que percorre) serve como
metáfora de gente que perdeu um pouco a noção de como a vida é, devido
às garantias materiais com as quais vive. Tipo: você nasceu com suíte
para você desde bebê, logo, você acha que suítes deveriam ser um direito
de todo cidadão.
A linha verde aqui, e sua “zona oeste paulistana”, representaria, em
grande parte, o pessoal que acha possível salvar o mundo com alimento
orgânico produzido na sua varanda. Ou gente que sofre de “síndrome
traumática Trump” (nova síndrome descrita entre pessoas que nunca
lavaram um tanque de roupa suja ou um banheiro na vida). Essa síndrome,
de fato descrita nos EUA, é apenas um exemplo da condição floquinho de
neve.
Gente assim se ofende se você a convida para jantar e oferece frango. “Seu frango me ofende”, diria um floquinho de neve.
Já as linhas azul e vermelha representam, nessa generalização
sociológica selvagem, a moçada que cresceu com um banheiro para dez
pessoas em casa.
Suspeito que uma situação como essa educa mais do que dez anos de
aulas de felicidade, autoestima e empatia nas escolas. Uma fila no
banheiro, de manhã, em casa, é mais poderosa, no sentido civilizador, do
que escolas que ensinam respeito às diferenças. À medida que o mundo
vai ficando confortável, vamos perdendo a forma.
Pelas regiões geográficas que essas linhas percorrem (zonas norte,
leste e sul profunda), elas seriam a metáfora de gente que não perdeu
(ainda) a noção da realidade. Sabe o quanto as coisas custam, e que,
normalmente, você sangra até morrer sem conseguir a maior parte delas.
Acho que o “horror ao sangue” que marca a moçada na linha verde
representa a perda dessa noção.
Uma das razões que me leva a suspeitar da chamada “esquerda” é que,
em vez de enxergar os danos inexoráveis que a riqueza instalada está
causando às pessoas, ela (à semelhança de seu profeta maior) acha que a
solução é universalizar essa riqueza instalada, declarando que suítes
devem ser um direito de todo cidadão. E mais: que as suítes devem cair
do céu.
Portanto, voltando ao meu sábio amigo, não esperemos nada da linha
verde. Quem salvará o mundo é o pessoal das linhas azul e vermelha
porque, sangrando todo dia, eles ainda mantêm uma mínima lucidez em meio
a esse parque temático que o mundo virou.
Eis um dos maiores paradoxos da condição humana: devemos fugir do
sofrimento, mas, quando conseguimos, viramos floquinhos de neve.
Eis um dos maiores erros dos utilitaristas ao determinarem que gerar
felicidade em larga escala seria nossa “salvação”. Pelo contrário, a
lucidez parece continuar habitando o território da dor. Esse fato
essencial nenhum autor de autoajuda ousa enfrentar.
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Brilhante como sempre.
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