Por Amália Safatle/ Valor de São Paulo
Uma
gastrite leva o ex-ministro da Educação do governo Dilma a escolher o
restaurante português A Bela Sintra, no bairro paulistano dos Jardins, para
este "À Mesa com o Valor". Com curta, mas intensa passagem de seis
meses pela pasta em 2015, o professor de filosofia Renato Janine Ribeiro, de 68
anos, foi aconselhado a evitar carnes vermelhas. Como o bacalhau ocupa o
segundo lugar em sua preferência, segue com prazer a recomendação médica. Mas
não abre mão do vinho. "In vino veritas", recita, ao abrir a
conversa. Na leitura atenta da carta, a decisão: um Papa Figos, nome de ave
rara da região do Douro.
É raro ver pessoas com passagem pelo poder público descrevendo para a sociedade seus erros e acertos com riqueza de detalhes - no máximo, publica-se um relatório formal. Em "A Pátria Educadora em Colapso" (Três Estrelas), Janine, escritor profícuo, conta as agruras da área de educação no momento em que as torneiras do investimento público secavam frente à crise fiscal galopante e as bases de sustentação política da presidente ruíam. O livro é o 19º de sua autoria, somando-se a títulos como "Ao Leitor Sem Medo" (1985), "A Sociedade Contra o Social" (2001, Prêmio Jabuti de ensaios) e "A Boa Política" (2017).
É raro ver pessoas com passagem pelo poder público descrevendo para a sociedade seus erros e acertos com riqueza de detalhes - no máximo, publica-se um relatório formal. Em "A Pátria Educadora em Colapso" (Três Estrelas), Janine, escritor profícuo, conta as agruras da área de educação no momento em que as torneiras do investimento público secavam frente à crise fiscal galopante e as bases de sustentação política da presidente ruíam. O livro é o 19º de sua autoria, somando-se a títulos como "Ao Leitor Sem Medo" (1985), "A Sociedade Contra o Social" (2001, Prêmio Jabuti de ensaios) e "A Boa Política" (2017).
No livro
recém-publicado, o intelectual de esquerda não poupa críticas nem mesmo à atuação
de grupos ditos progressistas naqueles tempos fervilhantes que antecederam o
impeachment de Dilma Rousseff. Seja no governo, seja nas páginas da obra, o
professor de ética e filosofia política da USP, aposentado desde 2011, reafirma
o compromisso em dizer a verdade, até mesmo para desfazer o estereótipo do
político mentiroso. Hoje professor visitante na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), onde contribui para formar o Instituto de Estudos Avançados,
prepara um curso de pós-graduação sobre utopia versus redução de danos.
No vinho
mora a verdade, e então Janine revela uma passagem que acabou omitida do livro.
O episódio deu-se quando um jornalista o questionou sobre o fato de a então
presidente Dilma não recebê-lo no gabinete. Apesar de o lema do segundo governo
ter sido "Pátria Educadora", houve apenas três audiências do ministro
da Educação com ela, "o que é bizarro", diz.
Janine
respondeu ao repórter de modo furtivo, dizendo que durante as viagens do
Dialoga Brasil, programa de prestação de contas à sociedade que incluía
encontros presenciais nas capitais brasileiras, mantinha com Dilma conversas
constantes sobre os assuntos do ministério. Não era verdade. "Não gostei
de ter dito. O ruim é que menti muito mais para proteger o governo do que me
proteger. Eu me dou por contente de que tenha sido somente uma vez. Na
política, mentir é o normal."
O surpreendente, diz ele, é que as pessoas gostem de acreditar nas mentiras. "Em 2014, as promessas de Dilma eram impraticáveis, e no entanto ela ganhou. A sociedade estava feliz de ouvir ilusões. Por que na campanha queremos tanto que nos mintam?", pergunta.
O surpreendente, diz ele, é que as pessoas gostem de acreditar nas mentiras. "Em 2014, as promessas de Dilma eram impraticáveis, e no entanto ela ganhou. A sociedade estava feliz de ouvir ilusões. Por que na campanha queremos tanto que nos mintam?", pergunta.
O
ex-ministro arrisca uma explicação falando da tendência do brasileiro ao
messianismo, a cegueira que se opõe à luz da razão. Vê na filosofia a
oportunidade não só de responder a indagações, mas de melhorar a qualidade da
pergunta. É mais ou menos o que o moveu ao propor o curso "Merlí",
inspirado na série que "bomba" na Netflix e ajuda a popularizar a
filosofia. Ministrado no Casa do Saber no primeiro semestre, o curso teve três
aulas, cada uma sobre um episódio. A receptividade foi tanta que os alunos
pediram a continuidade. Assim, ele já prepara um "Merlí 2", sobre
mais três episódios.
Mas a sede pelas perguntas, avalia o filósofo, não está ainda disseminada na sociedade brasileira de forma geral, talvez por deficiências que vêm da formação cultural e educacional. Não é curiosa, questionadora. Ao contrário: aceita, resigna-se, espera a salvação externa, especialmente em períodos de crise profunda e desesperança. Com isso, observa Janine, todas as aberrações são possíveis, como a que ele vê em parte das intenções de voto para as eleições presidenciais, a menos de três meses do pleito.
Mas a sede pelas perguntas, avalia o filósofo, não está ainda disseminada na sociedade brasileira de forma geral, talvez por deficiências que vêm da formação cultural e educacional. Não é curiosa, questionadora. Ao contrário: aceita, resigna-se, espera a salvação externa, especialmente em períodos de crise profunda e desesperança. Com isso, observa Janine, todas as aberrações são possíveis, como a que ele vê em parte das intenções de voto para as eleições presidenciais, a menos de três meses do pleito.
"Existe
essa coisa do sebastianismo, o rei que sumiu no deserto e voltará para resgatar
Portugal para sua grandeza. O Brasil tem isso no imaginário pela figura do
milagre. Crê justamente porque é absurdo, pois é assim que a fé se manifesta: o
pão que vira corpo, o vinho que vira sangue."
Regados
ao vinho português, chegam os pratos. Janine escolheu um bacalhau à lagareiro,
posta levemente empanada e frita, levada ao forno com azeite, cebola e alho,
servida com batatas ao murro, brócolis e azeitonas.
A crítica do professor em meio às garfadas não se atém ao messianismo da direita, que, para além do Brasil, vem coalhando o mundo de populistas conservadores. Essa onda atinge também a esquerda, na figura messiânica encarnada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas, na esquerda, pontua, qualquer esperança de um messias soa como contradição ainda maior.
A crítica do professor em meio às garfadas não se atém ao messianismo da direita, que, para além do Brasil, vem coalhando o mundo de populistas conservadores. Essa onda atinge também a esquerda, na figura messiânica encarnada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas, na esquerda, pontua, qualquer esperança de um messias soa como contradição ainda maior.
"Temos
esse problema porque Lula assumiu o papel do salvador, dado que é uma pessoa
fora de esquadro, um líder carismático como poucos na história do Brasil. O
[ex-governador Leonel] Brizola [1922-2004] era um pouco, mas muito menos que
Lula."
Janine
chama esse fenômeno de contradição porque, segundo ele, nenhuma política na
esquerda funciona caso não emerja de baixo para cima. Era o que o PT fazia por
meio de conferências nacionais, nas quais mobilizava as bases da sociedade para
debater os temas que virariam políticas públicas. Ao definir uma política de
amamentação, por exemplo, primeiro eram ouvidas as mães e as mulheres grávidas
nos municípios, Estados, até chegar a Brasília. "Era algo
'grassroots'".
O garçom
completa nossos copos d'água, enquanto Janine fala de sua família, de sua casa
e de animais de estimação. Ele é pai de Rafael e Felipe, do primeiro casamento,
sendo que o mais velho entrou na faculdade, cursa ciências sociais na USP. Hoje
Janine está casado com a cientista política Juliana Fratini, que tem gêmeas de
5 anos, e mora no bairro da Aclimação.
"In
vino veritas, in acqua sanitas' é o aforismo completo atribuído a Plínio, o
Velho, escritor romano do século I. Se no vinho mora a verdade, na água reside
a saúde. Janine aposta que será a saúde a grande pauta da campanha eleitoral de
2018, ao lado de segurança. Esqueçam o bordão da educação. Isso porque, segundo
o professor, a sociedade sente-se doente, em todos os sentidos, e as soluções
no campo da saúde são quase milagrosas.
No
saneamento básico, por exemplo, a precariedade é tamanha que bastaria um
pequeno esforço para a expectativa de vida voar. Na saúde, em geral, não é
preciso mexer na mentalidade das pessoas, no máximo melhorar alguns hábitos.
Já o avanço na educação e na cultura passa por uma nova consciência, é preciso muitas vezes que a cabeça das pessoas mude, o que se choca com valores adquiridos e leva tempo. Para resolver os problemas da educação, afirma, é preciso uma grande concertação de diversas alas da sociedade, não há como ficar de fora de um debate tão complexo.
Para ele, somente a educação poderá estimular a curiosidade e iluminar um país que deseja saídas fáceis e milagrosas. Na saúde e na segurança, muitas soluções podem ser terceirizadas, o que soa bem mais cômodo para uma sociedade hoje refratária à participação na arena pública e desencantada com a política, pondera. "Além disso, ao contrário da falta de saúde, a falta de educação não dói."
Já o avanço na educação e na cultura passa por uma nova consciência, é preciso muitas vezes que a cabeça das pessoas mude, o que se choca com valores adquiridos e leva tempo. Para resolver os problemas da educação, afirma, é preciso uma grande concertação de diversas alas da sociedade, não há como ficar de fora de um debate tão complexo.
Para ele, somente a educação poderá estimular a curiosidade e iluminar um país que deseja saídas fáceis e milagrosas. Na saúde e na segurança, muitas soluções podem ser terceirizadas, o que soa bem mais cômodo para uma sociedade hoje refratária à participação na arena pública e desencantada com a política, pondera. "Além disso, ao contrário da falta de saúde, a falta de educação não dói."
O
restaurante na área nobre de São Paulo agora é só ruído, as mesas lotam em
plena quinta-feira, com executivos e famílias falando alto. A contragosto,
Janine precisa elevar o tom de sua voz macia para que o gravador a registre.
O
filósofo exaspera-se ao lembrar que um grupo de empresários da Confederação
Nacional da Indústria ovacionou o candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL).
Para ele, o mais grave foi aplaudir quando o ex-capitão reclamou de que não
podia fazer piadas depreciando minorias. Em seu entendimento, esse é o passo
para o fracasso econômico: "Se um empresário pensa desse jeito, não vai
passar em nenhuma concorrência europeia. A chance de ter sucesso fora
despenca!". Com isso, Janine não quer dizer que a homofobia, por exemplo,
impede o desenvolvimento econômico, mas quase, porque alija talentos, excluindo
pessoas que fogem ao padrão de comportamento e tendem a ser questionadoras e
criativas.
"O que muita gente não percebeu é que o sucesso daquele Brasil de mão de obra barata que entrega matéria-prima não processada está no fim. Mas, com grupos conservadores que não aceitam esse mundo novo, fica muito difícil avançar" Em sua visão, a elite brasileira é basicamente econômica, não é cultural. Até pode saber se portar em um restaurante, mas não possui formação humanística e interesse genuíno pela cultura e grandes questões civilizatórias e filosóficas, avalia o intelectual que morou na França entre 1972 e 1976 para fazer mestrado na Sorbonne e também lecionou na Universidade Columbia, em Nova York, de 2003 a 2004.
"O que muita gente não percebeu é que o sucesso daquele Brasil de mão de obra barata que entrega matéria-prima não processada está no fim. Mas, com grupos conservadores que não aceitam esse mundo novo, fica muito difícil avançar" Em sua visão, a elite brasileira é basicamente econômica, não é cultural. Até pode saber se portar em um restaurante, mas não possui formação humanística e interesse genuíno pela cultura e grandes questões civilizatórias e filosóficas, avalia o intelectual que morou na França entre 1972 e 1976 para fazer mestrado na Sorbonne e também lecionou na Universidade Columbia, em Nova York, de 2003 a 2004.
Para o
filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), objeto do mestrado e doutorado de
Janine, a grande diferença entre o ser humano e os outros animais não era a
razão, e sim a curiosidade, aquela que nos permite ir mais longe. Só o humano
faz a pergunta "por quê?". Quanto mais tem curiosidade, menos predador
possui, dizia o autor de "Leviatã". À medida que aumenta a educação,
aumenta a curiosidade.
Assim, a
ideia de um governo que tivesse como lema "Brasil, Pátria Educadora"
fazia todo sentido na cabeça do ministro Janine, cuja nomeação, em abril de
2015, havia sido bem recebida por educadores. Mas, como bem sintetiza, era a
expressão certa na hora errada. O slogan, que não foi criado em conjunto com o
Ministério da Educação, mas, sim, "em algum canto do Palácio do Planalto,
ou no cérebro de um marqueteiro", passou de bom lema a alvo perigoso. No
segundo mandato, as promessas eleitoreiras da chapa Dilma-Temer murchavam a
olhos vistos.
Com o descontrole fiscal
dos anos anteriores, somado a adversidades como o fim do ciclo de alta das
commodities, a economia iniciava o mergulho na mais profunda e duradoura
recessão da história. Obviamente não restava mais dinheiro e veio o corte no
Orçamento.
Janine no restaurante A Bela Sintra: bacalhau em vez de carne vermelha para
evitar a gastrite.
Lula até
que o aconselhou: "Dilma dirá que não tem dinheiro, mas cobre, cobre que
ela soltará". Mas como a matemática é uma ciência exata, não havia de onde
tirar. O governo ainda sofreria com efeitos da falta de diálogo e de jogo de
cintura da presidente, descritos no livro. "Sem verba e sem verbo", a
educação, que seria vitrine, virou vidraça. Tornou-se alvo dos opositores e,
surpreendentemente, dos grupos de esquerda e dos próprios educadores. Embora a
crise já estivesse estampada nos jornais, essas turmas pressionavam o
Ministério da Educação por verbas de todo tipo.
Para
economizar algum recurso que fosse, Janine mandava o ministério e as universidades
desligarem o ar-condicionado quando fazia frio e as luzes durante o dia.
Enquanto isso, era inundado com demandas para criar um novo campus, contratar
funcionários e professores, construir prédios. Os grupos eram também
intolerantes à ideia de buscar recursos para a educação em fontes que não
fossem somente o Orçamento público, como o setor privado.
Sem
dinheiro, começava o estrangulamento de sua gestão - e as decepções, que
culminaram na sua exoneração, da qual tomou conhecimento primeiramente pela imprensa.
Dilma precisava do cargo para ajudar a salvar seu mandato e o substituiu pelo
ex-senador Aloízio Mercadante (PT).
Em que
pese a dificuldade circunstancial no Orçamento, o ex-ministro rechaça um
pensamento muito comum de que o Brasil não precisa expandir os gastos em
educação, e sim gastar melhor a verba já disponível. Ele concorda que aplicar
melhor o recurso é necessário, e que só dinheiro não basta, é preciso haver
projetos inteligentes, engajamento e comprometimento. Ainda assim, em sua
visão, falta muito dinheiro para o ensino, pois a lacuna do Brasil nessa área é
secular. Sua argumentação vem com exemplos: a Alemanha investe 6% do Orçamento
na educação, como o Brasil, mas o PIB alemão é cinco vezes maior, e três vezes
superior em poder de compra. "Uma coisa é um país que tem a educação no
DNA, onde os prédios foram bem construídos, os professores são todos formados,
a população inteira é filha, neta e bisneta de pessoas alfabetizadas. Aqui há
escolas sem banheiro", compara.
Há ainda
uma ponderação estratégica para investir fortemente em educação: ampliar a
igualdade de oportunidades e desarmar a exclusão social erigida durante mais de
500 anos. "Hoje temos apenas um terço ou um quarto da população
desfrutando de todas as vantagens. Se todos passarem a ter acesso, nossa
produção poderá multiplicar por três, por quatro. O país vai explodir em
qualidade", defende.
Mas como
fazer isso com o país afundado no abismo fiscal? A saída que Janine vê é o aumento
de impostos para os mais ricos. Não considera boa a ideia de que se cobre
mensalidade no ensino superior, de modo a subsidiar a educação pública. Além de
a gratuidade do ensino superior ser prevista pela Constituição, seria preciso
estabelecer critérios, preços diferentes conforme a demanda do curso, criar
todo um aparato burocrático, o que possivelmente levaria a um ambiente de
judicialização e liminares. "Se a ideia é fazer a pessoa que tem condições
financeiras pagar pela educação, que seja recolhendo mais impostos. É muito
mais simples."
Com o
Estado quebrado e reformas não realizadas, que outras alternativas existirão? O
tema das contas públicas será especialmente desafiador para a esquerda, caso
volte ao poder, pois esta se vale da expansão de gastos para promover políticas
sociais e angariar apoio da população. "A esquerda não sabe lidar com a
falta de verba. A direita sabe, promove arrocho, políticas recessivas. Às
vezes, funciona", diz Janine. Nesse contexto, o resgate da imagem do PT,
aposta ele, dependerá muito da capacidade dos governos petistas de investirem
no social em períodos de crise profunda.
Para ele,
o discurso usado pela esquerda no episódio do impeachment da ex-presidente
Dilma é simplesmente o de que ela foi vítima de um golpe. Não fez a autocrítica
considerando os erros que levaram um governo vitorioso em quatro eleições
sucessivas ficar tão vulnerável no espaço de seis meses, diante de um partido
aparentemente sem futuro como o PSDB.
Sobre a
falta de verba, já discorremos. A de verbo, segundo Janine, tem a ver com a pouca
habilidade política da então presidente, mais que nunca necessária para
enfrentar um conluio formado por forças conservadoras.
Embora mostre por Dilma todo o apreço, ressaltando, no livro, sua sensibilidade e comprometimento com as pessoas desfavorecidas, Janine observa quão difícil é para ela o contato com os pares, as pessoas do mesmo universo cultural. Há inúmeras histórias de humilhações e broncas desmerecidas, conta. Um ministro que conheceu não queria ser recebido pela presidente, e dizem que não era o único. Eles tinham medo de ouvir uma grosseria.
Embora mostre por Dilma todo o apreço, ressaltando, no livro, sua sensibilidade e comprometimento com as pessoas desfavorecidas, Janine observa quão difícil é para ela o contato com os pares, as pessoas do mesmo universo cultural. Há inúmeras histórias de humilhações e broncas desmerecidas, conta. Um ministro que conheceu não queria ser recebido pela presidente, e dizem que não era o único. Eles tinham medo de ouvir uma grosseria.
Leitora
voraz, estudiosa, Dilma achava que entendia dos assuntos mais que o
interlocutor - diferentemente de Lula, que chamava as pessoas para fazer
exposições sobre os assuntos que queria conhecer e os aprendia ouvindo.
"Eu tenho a impressão de que a Dilma lê mais do que escuta. O Lula não
repetiria depois o detalhe do que você disse, mas entenderia o cerne da
questão. Ele é muito rápido em pegar o espírito das coisas. Essa é a arte do
estadista. Agora, se você acha que sabe tudo..."
Janine
enviou o livro a ambos, com as devidas dedicatórias. Não sabe se Lula recebeu o
exemplar na carceragem de Curitiba e ainda não tinha tido nenhum retorno de
Dilma, a quem se refere no livro como "o enigma".
O garçom
oferece uma segunda garrafa de Papa Figos, que é recusada. Seria a hora de
adoçar as bocas com os quitutes portugueses à base de açúcar e ovos, oferecidos
em carrossel sobre a mesa. O entrevistado escolhe ovos moles com canela. E o
assunto da política persiste. Ainda sobre a prática de "terceirizar os
erros", Janine lembra que o PT chegou a denunciar as Jornadas de Junho, em
2013, como a primeira etapa do golpe. "Ao contrário", discorda,
"foram um momento de muita vida e de rápida politização de uma sociedade
despolitizada".
Ele identifica aquele período com a música dos Titãs, a gente não quer só comida, quer a qualidade da educação, da saúde. Era, de certa forma, um descontentamento com a política de inclusão pelo consumo promovida desde Lula. As pessoas queriam ser mais do que compradoras girando a roda da economia interna. Elas queriam ser cidadãs. "Para meu espanto, Dilma não soube pegar isso para ela. E Marina [Silva] não quis. Em 2013, o prato foi oferecido para a Marina", avalia.
Ele identifica aquele período com a música dos Titãs, a gente não quer só comida, quer a qualidade da educação, da saúde. Era, de certa forma, um descontentamento com a política de inclusão pelo consumo promovida desde Lula. As pessoas queriam ser mais do que compradoras girando a roda da economia interna. Elas queriam ser cidadãs. "Para meu espanto, Dilma não soube pegar isso para ela. E Marina [Silva] não quis. Em 2013, o prato foi oferecido para a Marina", avalia.
Teria
tido o receio de ser chamada de oportunista? "Foi o que ela me disse. Mas
é nessas horas que a liderança realmente se mostra. Ela não teve capacidade de
se mostrar líder, tendo deixado duas vezes de fidelizar seus eleitores. Ter 20%
dos votos a partir do nada é uma façanha admirável", diz. Ele vê Marina
Silva, candidata à Presidência pelo Rede, como uma das poucas pessoas no Brasil
que poderia ter feito uma discussão de alto nível na campanha. "Tem todos
os atributos, história de vida, avidez por leitura, capacidade de escuta. Se
pareço criticar Marina, é porque ela tem uma qualidade gigantesca que não está
valorizando."
A seu
ver, um erro da campanha de Marina em 2014 foi deixar-se tomar por uma agenda
econômica "quase neoliberal", que tem pouco a ver com as causas
éticas de sua origem: meio ambiente e inclusão social. Embora não dê para
implementar política social e ambiental sem as contas públicas ajustadas, como
o próprio PT sofreu na pele, Janine acha que Marina fala demais sobre economia.
Fato é
que, passados cinco anos da efervescente participação da sociedade nas Jornadas
de Junho, chegamos a 2018 com as muitas pessoas tendo aversão à política.
"Houve um fracasso gigantesco de lá pra cá".
Com o
passar do tempo, o A Bela Sintra vai esvaziando-se. Resta apenas uma mesa
ruidosa a poucos metros, com "parabéns a você" e tudo mais. Lá fora,
o clima não é exatamente de festa. Há um mau-humor geral. O ministro que já
teve esperança avalia que o Brasil virou uma espécie de Pandora, de cuja caixa
saem todos os males.
"Vivemos
uma tragédia que precisa de um romancista ou cineasta para cobrir. Não é com o
filme 'O Processo' [de Maria Augusta Ramos, sobre o impeachment]. É realmente
ir fundo." Algo tipo o quê? "Tipo um Shakespeare. A gente tem de sair
disso, mas sair de verdade. Essa eleição está difícil de resolver porque a
discussão está muito em nomes e não em projetos de país". E então a
gastrite pede chá.
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Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5742731/brasil-virou-uma-caixa-de-pandora
Acesso 22/08/2018-----------------------------
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5742731/brasil-virou-uma-caixa-de-pandora
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