domingo, 26 de agosto de 2018

DEMOCRACIA E MÍDIAS SOCIAIS


Carlos Eduardo Lins da Silva*
 
 Vencedor em uma eleição marcada pela disseminação de notícias falsas, Trump usa o termo 'fake news' para designar 
os artigos que lhe desagradam

As mídias sociais já foram vistas como meios de disseminação da democracia. Durante os protestos contra o governo no Irã em 2009 e principalmente durante a Primavera Árabe em 2011, muitos atribuíram a elas um papel preponderante nos acontecimentos que pareciam prenunciar o fim do autoritarismo no mundo islâmico e, por extensão, em outras regiões do planeta.

Mais recentemente, em especial depois da constatação de que as eleições de 2016 nos EUA podem ter sido fortemente influenciadas por desinformação que se espalhou por meio especialmente do Facebook, elas passaram de heroínas a vilãs, e agora há receio generalizado de que possam estar destruindo, em vez de promovendo a democracia.

O mais provável é que as duas posições tenham sido extremadas. As mídias sociais são meios, como o nome diz. Sempre que um novo meio de comunicação ganhou predominância houve quem temesse que ele viesse a ser um instrumento de destruição de valores estabelecidos, muitas vezes a própria democracia entre eles. Foi assim com os jornais em massa, o rádio, a TV.

No entanto, meios são apenas meios de se transmitir conteúdo, que é o que de fato importa. Embora também seja verdade que, em certa medida, o meio seja a mensagem, como já alertava Marshall McLuhan em 1964 e como se discutirá adiante em relação especificamente às mídias sociais, na medida em que ele influencia a maneira como a mensagem é percebida pelas pessoas.

Por exemplo, uma coisa é alguém se defrontar com uma opinião contrária à sua quando está lendo, sozinho, um veículo impresso. O contexto de quem lê um ponto de vista oposto ao seu no ambiente do Facebook é muito diferente. Este se aproxima do que experimenta alguém num estádio de futebol ao lado de torcedores do seu time ao ouvir os gritos da orcida adversária.

Fazer parte de um grupo e querer parecer bem diante de seus companheiros pode superar o bom senso e a razão. O universo cognitivo do indivíduo que trafega nas mídias sociais pode não estar numa "câmara de eco" (e pesquisas demonstram que de fato não está, pois quase todo mundo recebe mensagens que diferem de suas crenças em maior ou menor escala), mas o ambiente social e emocional, sim, está numa "câmara de eco" ou "bolha".

Para sentir que pertence ao grupo, muitos não se rendem nem aos fatos, o que fez com que se criasse a impressão que se vive agora numa sociedade da "pós-verdade".

Em artigo publicado no "MIT Technology Review" no dia 18 de agosto, o professor da Universidade da Carolina do Norte Zeynep Tufecki mostra como se deu o fenômeno de retrocesso do estímulo libertário no mundo árabe após a explosão da primavera de 2011.

 
Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, em depoimento no Senado americano sobre o vazamento de dados de ao menos 87 milhões de usuários da plataforma


Os que pregavam a revolução dividiram-se em grupos menores que viraram pequenas bolhas, ao mesmo tempo em que os autoritários passaram a usar as mídias sociais, que eles antes ignoravam, de forma homogênea para atacar os inimigos como traidores da pátria vendidos a estrangeiros, o que lhes acabou rendendo prestígio entre a maioria que não participa da polarização.

Há estudos recentes, como o de Levi Boxell, da Universidade de Stanford, e seus associados, que demonstram que, mesmo nos EUA, onde o uso de mídias sociais é extensivo a quase toda a população, não é possível atribuir a elas (nem mesmo essencialmente) o nível de polarização política extrema a que se chegou lá.

Ao contrário do que a maioria poderia, eles descobriram que o grau de polarização política é maior entre não usuários das mídias sociais. É claro que esta e outras pesquisas acadêmicas ainda são embrionárias.

Um dos motivos por que o fenômeno das mídias sociais ainda engendra muitas hipóteses simplistas que se espalham como corretas apesar de serem provavelmente equivocadas é que o estudo metódico desse fenômeno, tão complexo e cheio de variáveis, ainda é incipiente.

Aparentemente há uma correlação entre a universalização da internet e a percepção de declínio da democracia no mundo. A Freedom House, que mede o índice de democracia nos países, vem registrando queda acentuada da qualidade da democracia desde 2005, tendo chegado a um registro recorde de baixa em 2017.

Nesse período, a população conectada à internet cresceu significativamente de um quarto do total para mais da metade. Mas o fato de uma coisa ocorrer concomitantemente à outra não estabelece uma relação causal.

Também há indícios de que pessoas mais jovens, que usam mais as mídias sociais, estão mais descrentes da democracia do que as que tinham a mesma idade em gerações anteriores. Yascha Mounk, da Universidade Harvard, constatou isso em seu trabalho. Mas, de novo, não é possível estabelecer que haja causalidade entre um e outro fato.

Alguns observadores notam a similaridade entre o ambiente que as mídias sociais ajudam a conformar e aquele que prevaleceu nos regimes fascistas no século XX, durante os quais sentimentos também prevaleciam sobre a razão, o "pertencimento" a grupos era valor absoluto, mentiras eram transmitidas como se fossem verdades.

Muitos não se rendem nem aos fatos, o que fez com 
que se criasse a impressão que se vive agora numa 
sociedade da "pós-verdade"


Não registram, no entanto, o óbvio: nos tempos de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar, não havia mídias sociais. O rádio foi responsabilizado por muitos pelo sucesso do discurso desses líderes. Mas ele também era apenas um meio, e embora o meio configure um ambiente que possa favorecer a aceitação de uma mensagem, ela é que realmente importa mais.

É importante a comparação dos tempos atuais com os do século passado, pois ela mostra que os problemas de hoje, em escala reduzida no que se refere à velocidade e ao alcance de número de pessoas atingidas, já ocorreram antes, e que, no fim das contas, apesar de ter demorado e custado milhões de vítimas, a democracia saiu vencedora e os fatos venceram a mentira.

Veja-se a questão das chamadas "fake news", ou notícias falsas. A utilização do termo já pode ser um erro porque notícia falsa é qualquer uma que não corresponda exatamente aos fatos, e quando ela decorre de erro de apuração ou engano não pode ser classificada como o que se discute aqui.

O que assusta muitas sociedades atualmente é a notícia fraudulenta, produzida intencionalmente para atingir um objetivo político ou monetário, como o que ocorreu na eleição americana de 2016 a favor do candidato Donald Trump, que curiosamente criou e se vale da expressão "fake news" para designar as que lhe desagradam (e este é outro motivo por que é melhor não usar esse epíteto para não confundir o trumpismo com o jornalismo).

É impossível afirmar que Trump venceu a eleição por causa da desinformação veiculada pelas mídias sociais. Como o pleito entre ele e Hillary Clinton foi muito apertado nos Estados que lhe deram a vitória no Colégio Eleitoral (em alguns casos diferenças poucas dezenas de milhares de voto em totais de milhões), diversos fatores podem ter sido decisivos.

Mas a polêmica alimentada pela intervenção do governo russo em favor de Trump (e de rapazes da Macedônia empenhados apenas em ganhar alguns dólares das mídias sociais pela repercussão de suas mensagens) vem estimulando uma reação em cadeia em diversos países que pode ser muito mais nociva à democracia do que os efeitos das notícias fraudulentas em si.

A Turquia é o mais recente de uma lista de 26 países em que se aprovou legislação para combater as "fake news" no sentido trumpista do termo, ou seja, qualquer coisa que não satisfaça o autoritário presidente Erdogan. Diversos regimes autoritários escoram-se na desculpa de impedir "fake news" para destruir o dissenso, acabar com a oposição.

Mesmo quando não é esta a intenção, o açodo para pôr fim à desinformação pode redundar em facilitação para o arbítrio. É um risco que se corre no Brasil com iniciativas e projetos de lei que apenas darão poderes excessivos a juízes e promotores para fazer calar críticas ou opiniões legítimas.

Protesto no Cairo em 2011, ano marcado por atos contra governos na chamada Primavera Árabe; para muitos, mídias sociais tiveram papel preponderante no movimento

Já há dezenas de pedidos de remoção de links nas redes sociais solicitados à Justiça por candidatos à Presidência da República sob a alegação de expressarem falsidades ou calúnias. É extremamente complicado estabelecer o que é verdade ou o que ofende ou não em assuntos de extrema subjetividade, como os de política. A possibilidade de cometer injustiças é enorme.

Veja-se o que diz o projeto de lei 538 apresentado pelo deputado Edmir Chedid (DEM) à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo: "... é vedada a divulgação ou compartilhamento, por qualquer meio, de notícia ou informação sabidamente falsa, prejudicialmente incompleta que altere, corrompa ou distorça a verdade...". Como é possível fazer valer uma lei assim redigida?

Abaladas por uma crise de confiança pública que vem corroendo sua imagem e até causando abandono de usuários e prejuízos milionários, as empresas que controlam redes sociais estão abandonando a capciosa alegação de que não eram responsáveis pelo conteúdo veiculado (eram apenas transmissoras de informação) e começaram a retirar do ar páginas e perfis, inclusive no Brasil.
Embora oficialmente elas digam que essa supressão se deu por violação das regras de autenticidade que estão no contrato com que o usuário concorda para se valer das redes, as páginas e perfis expurgados veiculavam conteúdo de polêmica e elevada carga ideológica.

É positivo que as empresas da chamada "big tech" passem a assumir sua condição de editores de conteúdo, mas a maneira como isso vem sendo feito pode perfeitamente caracterizar uma forma disfarçada de censura, e isso já está sendo explorado pelos maiores inimigos da democracia, como Trump.

Mas se o Estado não deve interferir no combate à desinformação e as ações das empresas também trazem o risco de implicar perda de liberdade, não há nada a ser feito para atenuar o problema, que, embora não seja novo, como já se viu, tem atingido proporções inéditas em termos de rapidez e alcance da disseminação de mentiras? Obviamente, há muito a fazer, e alguns caminhos promissores já vêm sendo trilhados.

Primeiro, é possível o Estado agir como regulador, mas de modo inteligente e realizável. É possível tecnicamente comprovar a utilização de robôs e trolls, e proibi-la. É viável exigir transparência em relação aos algoritmos utilizados pelas empresas para a escolha do material exibido ao público, auditá-los de modo regular e periódico e dar publicidade ao resultado dessas auditorias.

É importante a comparação dos tempos atuais com os do século passado, pois ela mostra que os problemas de hoje
 (...) já ocorreram antes


É factível preservar a privacidade dos indivíduos que têm tido suas informações pessoais utilizadas e acumuladas para torná-los alvos mais fáceis de publicidade comercial ou propaganda eleitoral. A União Europeia, com a adoção do GDPR (regulamentação geral de proteção de dados), e especificamente a Alemanha já avançaram nesse terreno, embora haja ainda muito a ser aperfeiçoado.

O Estado pode obrigar as mídias sociais a deixarem claro o que é conteúdo patrocinado, quem paga por ele, quanto ele custou e outras informações sobre os objetivos do anúncio, de modo a que ninguém se confunda sobre o que está consumindo e forme seu próprio juízo de valor.

Os cidadãos que têm seus dados privados utilizados pelas empresas que são donas das mídias sociais podem vir a ter o direito de receber remuneração por isso. As mídias sociais criaram um modelo de negócios perfeito para elas, no qual o usuário produz o conteúdo, gera dados que elas vendem, não recebe nada em troca e ainda acha que tem entretenimento grátis.

Mas cada Estado individualmente, por melhor que venha a fazer essa regulação, não terá poder suficiente para ser eficaz se não houver um esforço internacional, já que as ações nas mídias sociais não respeitam fronteiras e muitos dos bancos de dados das empresas estão fora do território de jurisdição da maioria dos países.

As empresas proprietárias das mídias sociais também podem realizar por sua própria iniciativa esse tipo de controle em vez de eliminar páginas e perfis com base em critérios ideológicos, da forma como parece vir fazendo por enquanto.

Pode ser trabalhoso e ter um enorme custo político, mas dá para desmontar o duopólio que controla o setor, como se fez no século XX em outros setores (o do petróleo no seu início e o das telecomunicações na década de 1980). Até agora a tecnologia da informação vem passando incólume por órgãos de controle de truste em quase todos os países.

Outra vereda de ações para mitigar ameaças à democracia atribuídas às mídias sociais é o fortalecimento, a renovação ou a substituição de instituições que se fragilizaram ao longo dos últimos 50 anos e que serviram de balizamento da democracia por décadas.

 
As mídias sociais influenciam a maneira como a mensagem é percebida pelas pessoas, e fazer parte de um grupo pode superar o bom senso e a razão


Um dos efeitos colaterais da universalização das mídias sociais foi o de ter feito recrudescer o processo, que antecede a elas, de corrosão de instrumentos da democracia representativa, como partido político, sindicato, governo, legislativo, empresa, judiciário, escola, universidade, funcionalismo público, ciência, imprensa.

Essas instituições foram capazes de, por muito tempo, oferecer à sociedade "verdades" lastreadas por consenso (por mais frágeis que pudessem ser na realidade), que iam além do que Timothy Snyder, professor da Universidade Yale, chamou de "babel dos nossos impulsos", que é o terreno em que as mídias sociais operam.

Há autores, como Tom Nichols, da John F. Kennedy School of Government, em Harvard, que argumentam que a morte da "expertise" é o resultado de uma campanha contra o conhecimento estabelecido permitido pelas mídias sociais.

Ao dar acesso a todos a informações que antes eram exclusividade dos especialistas em cada área do conhecimento e ao permitir que todos expressem suas opiniões para um público que pode ser grande, a internet ajudou a enfraquecer instituições como as acima mencionadas.

Muita gente confronta o diagnóstico de médicos a partir de informações sobre doenças que colhe no Google. Os chamados "repórteres-cidadãos" acham que são mais capazes de relatar os acontecimentos do que veículos jornalísticos estabelecidos. Integrantes de grupos de WhatsApp os consideram mais representativos de suas opiniões do que partidos políticos, e assim por diante.

Mas a crise da maioria dessas instituições começou antes do surgimento das mídias sociais por razões que nada têm a ver com elas e provavelmente se agravaria de qualquer modo se elas não tivessem aparecido.

Instituições envelhecem, adquirem vícios, estacionam, resistem a mudanças. A tecnologia (e não apenas a da informação) é um fator de pressão sobre elas, que, se não reagem com eficiência, correm o risco de se tornarem obsoletas. Essa obsolescência se agrava com a ação das mídias sociais.

As mídias sociais fazem aumentar o grau de incerteza das pessoas em relação aos fatos. O WhatsApp, que é especialmente importante na sociedade brasileira, tem uma característica distinta, que enfatiza o espalhamento de incertezas com efeitos potencialmente deletérios.

O que assusta muitas sociedades hoje é a notícia fraudulenta, feita intencionalmente para atingir um objetivo
político ou monetário


Como o WhatsApp funciona por meio de grupos de pessoas que se conhecem desde antes da constituição dos grupos, frequentemente familiares e/ou amigos próximos, qualquer informação que circule por eles vem com uma espécie de chancela garantidora proveniente desse conhecimento prévio. A notícia que procede de alguém que se conhece e respeita tem mais credibilidade do que a proveniente de estranhos ou instituições suspeitas.

Por isso é tão relevante a iniciativa de vários veículos jornalísticos de oferecer ao público serviços de checagem de informações para comprovar sua veracidade. Individualmente ou em consórcios (como o projeto Comprova, no Brasil), jornais, revistas e emissoras de rádio e TV ajudam a estabelecer o que é fato e o que não é. Ao mesmo tempo, fortalecem a instituição da imprensa.

Também é prioritário estimular a pesquisa metódica dos fenômenos que se relacionam com as mídias sociais e as notícias fraudulentas. Só é possível resolver problemas ou atenuar suas consequências quando eles são bem conhecidos. Universidades e institutos de pesquisa precisam enfrentar o desafio de explicar o que realmente ocorre na sociedade nesses processos.

As escolas podem se engajar para educar as crianças para que elas aprendam a ser críticas em relação ao que veem nas mídias sociais, sejam capazes de identificar notícias fraudulentas..

As mídias sociais têm prestado relevantes serviços ao público. A acessibilidade ao conhecimento proporcionado pelo Google, as redes de proteção emocional que Facebook e WhatsApp oferecem a milhões de pessoas fragilizadas e isoladas, a instantaneidade de informações em momentos de desastre ou calamidade que já salvou muitas vidas são alguns exemplos.

Mas elas também representam grandes perigos para a sociedade. Elas foram capazes de crescer demais em muito pouco tempo e sem controle, movidas aparentemente apenas pela ânsia de faturar mais e mais. Amealharam dados privados de centenas de milhões de pessoas. Foram comprovadamente pouco responsáveis ao permitir que esses dados fossem utilizados por campanhas políticas e por empresas sem que os cidadãos soubessem disso.

Demonizá-las como alguns fazem agora ou santificá-las como muitos fizeram antes em nada auxilia a resolver os problemas que elas trazem. Estudá-las, compreendê-las bem, regulá-las, fortalecer e renovar outras instituições, educar o público, especialmente as crianças, isso sim pode ajudar.
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* Carlos Eduardo Lins da Silva é professor visitante do Instituto de Relações Internacionais da USP
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/5765489/democracia-e-midias-sociais 24/08/2018

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